Ma De
13 de Novembro de 2014, 23:10Aos exatos 31 minutos de meu sono, quando viajava por escuros e sombrios túneis, viscosos aqui e áridos acolá, tocando os pés em um terreno que submetia todo o meu corpo a uma lentidão e letargia que jamais experimentara, acordei.Se alguém já acordou assim como eu, não sei. É difícil descrever. O meu despertador foi um som sólido. Como se uma lufada de ar, com uma massa em muitas vezes superior ao ar que conhecemos, entrasse por minhas narinas e subisse velozmente até meu cérebro. Foi isso o que me acordou. Um ar com a massa de um corpo. Um som sólido. De imediato, sentei na cama, com as costas eretas, como quando alguém nos puxa pelas duas mãos. Não tenho a lembrança de ter usado qualquer força para sair da posição em que estava enquanto dormia. Até porque, incondicionalmente, durmo de bruços.
Se tivesse credo em outras existências, haveria uma razão clara. Para mim, até agora, ocorreu algo inexplicável.
Assim como meu corpo se moveu para se descolar da cama, em poucos instantes estava colado à mesa no centro de uma sala que, àquela hora, com o vento balançando as cortinas das janelas e a luz do céu desenhando figuras aterrorizantes nas paredes, pareceu-me desconhecida. Mas estavam ali, à minha frente, sobre a mesa, alguns objetos, empilhados cuidadosamente.
Minhas mãos trêmulas tocaram no topo da pilha e logo algumas páginas se moveram ruidosamente. Tratava-se de documentos com sentenças de juízes de um lugar não muito distante. Ao certo, não sei do que se tratava. Minha lembrança guardou apenas as palavras dívidas e arresto. E a mais do que usada expressão de que duas pessoas encontravam-se em lugar incerto e não sabido.
Terminada a leitura com a assinatura do juiz, o leque se desfez, arrumando-se em um canto da mesa. Metade das folhas balançava para fora do tampo de madeira.
Logo a seguir um clarão vindo da janela iluminou um mapa, o próximo elemento da pilha. A princípio pensei tratar-se de um vagalume uma luzinha que parecia esmaecer e retornava com alguma energia amarela em forma de balão. Este sinal estava sobre a Ilha. E quando aproximei a ponta do dedo indicador, como uma seta, revelou-se uma data em janeiro de 2014. E o balão encheu-se de luz. Foi tamanho o brilho que ele se desfez e desapareceu. Retraí minhas mãos para bem junto de meu corpo.
O mapa se moveu, girando sobre a mesa, e durante esse movimento, do papel surgiu a Lagoa e as estradas que a margeiam, e mais adiante, o Campeche.
Fiquei ali, olhando aquele mapa que se transformava, bem diante dos meus olhos, em parte de uma região da Ilha. O ventou acalmou e as cortinas deitaram sobre as janelas. Naquelas sombras, algo se moveu entre a Lagoa e o Campeche, e depois de volta à Lagoa. Minhas pupilas, ainda em choque, saídas da claridade para a escuridão quase total, não descobriram os contornos de tal coisa em movimento.
Pelas crendices que há, poderia ser uma vassoura em voo. Ou um carro preto em movimento. Aquele vai e vem durou instantes, e quando meus olhos acostumaram-se ao escuro, o mapa girou novamente, e a estrada que na realidade há entre o morro da Lagoa e o Rio Tavares havia desaparecido. Nada havia ali, nem casas, nem pessoas, nem asfalto ou calçadas.
Se já estava atordoado com os primeiros elementos da pilha, agora então minha cabeça parecia explodir, na tentativa de encontrar algo real como resposta.
Foi então que a mesa se moveu. Por mais estranho que possa parecer, as sentenças judiciais ficaram no mesmo lugar, ao Norte. Curvei o corpo para olhar o que havia entre a madeira da mesa em movimento e as folhas de papel. Nada. Elas estavam como que coladas, com metade para fora da mesa, mas mesmo assim não se mexiam.
Assim que a mesa parou de se mexer surgiu uma luz no eixo central do móvel. Do teto começaram a escorrer letras, que mais ou menos do meio daquele tubo iluminado, formavam palavras: outro, pleno, pessoa, desejos, asas, raízes, pedra, e, por fim, vemos as coisas como somos! E logo um turbilhão de um pequeno sinal, sob a forma de um ponteiro, desceu em jorro interminável, brilhando e batendo de encontro às paredes inexistentes, e sobre a mesa, e retornando ao teto, e de novo ao tampo da mesa. Em um piscar de olhos, o tubo de luz e as coisas existentes em seu interior foram se acalmando, e quanto mais devagar giravam e se batiam, aumentava o som de dois distintos murmúrios, um grave e outro agudo.
Tentei sair. Mas algo debaixo da mesa laçou minhas pernas. A corda, fina e dura como o aço, como a corda si de uma guitarra, apertou-me abaixo dos joelhos, esmagando a pele, cortando a carne, serrando ossos e rompendo artérias.
Sobre a mesa, alguns elementos da pilha que eu não havia observado, foram engolidos por uma brisa escura que saía da lâmpada apagada.
Os vidros das janelas começaram a se partir com som dos incessantes murmúrios. Minha mente embaralhou.
Vi o relógio da parede assinalando a madrugada: 1h32min. Tombei. O meu sangue se espalhou no chão e entrou novamente em meu corpo por minhas narinas e boca. E comecei a respirá-lo até sentir que a corda si apertou tanto que separou do meu corpo parte de minhas pernas.
Aos exatos 31 minutos de meu sono, quando viajava por escuros e sombrios túneis, viscosos aqui e áridos acolá, tocando os pés em um terreno que submetia todo o meu corpo a uma lentidão e letargia que jamais experimentara, acordei.
(Ma De, segurado por um fantasma, é uma expressão da cultura vietnamita)