Atualmente, existe um consenso informal na “comunidade” de usuários de GNU/Linux nacional, principalmente na blogosfera dita especializada, o qual repousa no pressuposto de que o usuário do sistema operacional livre pode – e deve – instalar o que ele bem entender em seu computador. Embora essa seja-lhe, de fato, um direito inalienável, aqueles que discordam de tal ponto de vista, apegando-se aos valores e à filosofia do movimento do Software Livre, são taxados pejorativamente de xiitas – termo, aliás, totalmente infeliz.
Nesse cenário desolador, cabe-nos perguntar, então, se a figura de Richard Stallman ainda se faz necessária na contemporaneidade e investigar as causas de tal movimento de rejeição, o qual pode ter suas raízes em uma má compreensão no verdadeiro significado do Software Livre, nos processos de normação e de normalização descritos por Focault e, principalmente, na constatação de que o usuário sai do Windows, mas o Windows não sai do usuário.
Um mal-entendido, a raiz de todo mal

Nas redes sociais e nos blogues, é comum encontrarmos a ideia de que os sistemas operacionais baseados em GNU/Linux apenas serão plenamente utilizáveis com o auxílio de softwares e de drivers proprietários. Mais ainda, há o entendimento de que, em um sistema completamente livre, o usuário deveria digitar escabrosas linhas de comando e editar complicados arquivos de configuração a fim de realizar tarefas simples, como enviar um e-mail ou navegar na Internet.
Sinceramente, não sei de onde se originou tal mito. No entanto, é de se espantar que a maioria dos usuários considera a linha de comando como algo negativo ou ultrapassado em relação à interface gráfica. A própria História nos mostra que, na verdade, foi a interface gráfica, desenvolvida em um laboratório da Xerox, em Palo Alto, que invadiu os sistemas operacionais, tornando-se um componente quase que alienígena naquilo que já existia.
É inegável que a interface nos trouxe alguns benefícios, mas isso não significa que a linha de comando esteja já obsoleta: muitas das tarefas que podem ser realizadas de forma gráfica podem ser realizadas de forma mais rápida e eficiente na linha de comandos, muitas vezes com ferramentas nativas do sistema, sem a necessidade de se instalar programas adicionais.Para pessoas como eu, que iniciaram sua jornada computacional no MS-DOS, a linha de comando não assusta. No entanto, os usuários mais jovens não sabem o que é isso, pois suas primeiras incursões na Informática já foram gráficas. Isso é, sem dúvidas, um reflexo de nosso precário sistema de Educação, que desde a escola básica não incentiva o aluno à leitura e ao pensamento. Para o usuário contemporâneo, é mais fácil clicar em um botãozinho do que aprender uma palavra ou uma sintaxe que deve ser digitada, mesmo se essa sintaxe pudesse fazer a mesma coisa que o botãozinho de uma maneira melhor (é o caso, por exemplo, do Squeezy, o programa de compressão de arquivos do XFCE que, no meu notebook, muitas vezes fica travado vários minutos ao descompactar um arquivo, enquanto que o comando equivalente faz tudo num piscar de olhos).
De qualquer forma, a associação de que um sistema operacional 100% livre nos obrigaria a utilizar uma interface de linha de comandos para realizar nossas tarefas é um mito. Basta ver os sistemas recomendados pela FSF, como Trisquel ou GNewSense, para comprovar o que estou dizendo. Desta forma, o usuário médio tende a rejeitar tudo aquilo que diga respeito a usar sistemas totalmente livres, o que é um grave mal-entendido e um completo desserviço à comunidade.
Richard Stallman criou o movimento do Software livre porque ele advinha de uma subcultura hacker originária no MIT. Nessa subcultura, muito se valorizava o compartilhamento da informação. No entanto, com o avanço da computação pessoal, esta entrou em declínio, pois o que antes era compartilhado livremente passou a ser tratado como valosos segredos comerciais.
Stallman, então, considerou que não era ético restringir do usuário o direito a estudar e a modificar os programas de computador, bem como de distribuir suas modificações. Assim, para Stallman, os softwares proprietários não são éticos porque restringem a Liberdade do Usuário. Para atacar esse problema, ele definiu as quatro liberdades fundamentais que, em sua visão, permitiriam que o usuário pudesse estudar, modificar e compartilhar livremente seus programas de computador.
Portanto, embora seja comum, hoje, misturar indiscriminadamente softwares livres e proprietários, tal atitude é um atentado à ética definida por Stallman, pois o fato de um sistema operacional possuir ao menos um software ou driver proprietário impede que o usuário possa estudá-lo, modificá-lo e distribuí-lo. Por essa razão,os usuários ditos xiitas, mas que na verdade são mais comprometidos com a filosofia GNU, possuem uma posição específica em colocar a liberdade de software acima de qualquer conforto ou benefício que um programa proprietário poderia lhes trazer. Isso explica a polêmica declaração de Stallman de que Liberdade não é liberdade de escolha: ao falar isso, ele estava se referindo à liberdade de software e à necessidade de se dispor a fazer sacrifícios para preservá-la, algo que poucos estão dispostos hoje.
A resistência dos usuários em abdicar dos confortos trazidos pelos programas proprietários se deve, principalmente, a um processo de normalização. Conforme define Michel Focault [Fonte], a normação é o processo de se partir da norma para, em seguida, distinguir-se o normal do anormal; já a normalização é o oposto: primeiro se define o que é normal para, em seguida, assinalar as diferentes curvas de normalidade.
Ora, no mundo do software livre, a norma, obviamente, é usar programas livres. No entanto, a maioria dos usuários, em um desesperado processo de normalização, definiu que o normal é usar programas independente de sua licença e, assim, quem possui uma posição um pouco mais restrita e é incapaz de se adequar a essa norma artificial, é taxado de anormal ou, como dizem, de xiita.
O usuário sai do Windows, mas o Windows não sai do usuário
É necessário, então, investigarmos de onde vêm os novos usuários de GNU/Linux. Atualmente, posso imaginar duas principais possibilidades: a primeira são aqueles usuários curiosos, que não se contentam com o Windows e acabam pesquisando alguma alternativa a ele, acabando por chegar ao software livre; a segunda são aqueles usuários que descobrem (ou sabem) que o Windows da sua máquina é ilegal (vulgo pirata) e possuem a consciência de que necessitam ficar dentro da lei. No entanto, seu pensamento completo é, na verdade, o de que eles precisam estar dentro da lei sem gastar um centavo sequer para isso.
Assim, como os primeiros, eles acabam descobrindo o GNU/Linux, mas como uma boa parte dos primeiros, eles não aceitam o fato de que o GNU/Linux é um sistema operacional totalmente diferente do Windows (estamos falando de uma base Unix-like contra uma base MS-DOS-like) e procuram, na verdade, um Windows gratuito ou, pelo menos, um sistema operacional gratuito que lhes permita fazer as mesmas coisas que eles faziam no Windows, exatamente da mesma maneira. As diferenças arquitetônicas entre as duas plataformas, porém, mais cedo ou mais tarde (e isso geralmente significa mais cedo) acabam se revelando um empecilho. Tais diferenças foram um dos pontos fortes para o fracasso das distribuições dos computadores do programa PC Conectado, que tentavam imitar, descaradamente, a interface da Microsoft: podiam fazer um sistema visualmente idêntico, mas o usuário acabaria, de uma forma ou outra, descobrindo que havia alguma coisa errada, alguma coisa que fugia do normal.
Portanto, os usuários que querem um Windows grátis acabam se reunindo em torno da distribuição mais popular e estão nem aí para questões filosóficas e de licença. Tudo que eles querem é continuar fazendo as mesmas coisas de antes, do mesmo jeito.
E Richard Stallman, ainda precisamos dele?

A figura de Richard Stallman é polêmica, mas tal polêmica se deve, principalmente, aos fatores anteriormente mencionados. Além disso, talvez por ter a síndrome de Aspenger, ou por ser ateu e ter uma forte ligação acadêmica com a Lógica (Stallman é formado em Física), ou talvez por ambos, Stallman tenta ser coerente com aquilo que ele mesmo diz.
Pode assustar a muitos o fato de o bom doutor se recusar a fazer coisas banais, como assistir a um filme na Netflix ou usar uma gambiarra enorme para acessar um simples website, mas tudo o que ele faz está de acordo com aquilo que ele acredita e definiu. Se Stallman não tivesse tais atitudes, consideradas radicais por muitos, seu movimento do software livre provavelmente teria o mesmo destino de um restaurante vegetariano em Porto Alegre, o qual teve de fechar as portas após seus clientes descobrirem que os donos se deliciavam em uma churrascaria nos finais de semana.
Logo, guardadas as devidas proporções, Stallman exerce, para o movimento do Software Livre, um papel similar ao de Jesus Cristo para o Cristianismo: enquanto este demonstra como devem ser nossas atitudes para alcançarmos uma suposta salvação pós-mortem, aquele nos diz como devemos agir se quisermos ter liberdade de software e garantir que essa liberdade seja preservada. Assim como Jesus, Stallman é a figura que incomoda e que irrita, pois ele desafia a norma, desafia o senso comum, se contrapõe àquilo que todos acham normal.
Assim, nós precisamos de Richard Stallman para nos mostrar e nos lembrar o verdadeiro significado do software livre, principalmente no mundo atual, onde este significado foi desvalorizado e a liberdade de software deu lugar à libertinagem de software. Mas e quanto àqueles que, ao ler um texto desses, comentam raivosos e quase chorando em redes sociais e em blogues, que a única coisa que querem é um sistema fácil de usar, exaltando sua ignorância ao justificar que não são programadores? Esses, além de em nada contribuírem para o software livre, prestam um desserviço ao mesmo, ao incitar a utilização de programas e de drivers proprietários, como se o software livre precisasse de muletas para ficar de pé. A eles, seria melhor que jamais tivessem saído de onde vieram.





