Do Site Brasil247
“Sustento que o processo foi ‘devido’ e ‘legal’”, escreveu o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), sobre o julgamento da Ação Penal 470 em artigo publicado por 247 (leia aqui) que não caiu bem enre lideranças petistas. No texto, Tarso Genro diz que “Seu resultado não está manchado de ilegitimidade: os procedimentos garantiram a ampla defesa dos réus e, embora se possa discordar da apreciação das provas e da doutrina penal abraçada pelo relator (‘domínio funcional dos fatos’), a publicidade do julgamento, a ausência de coerção insuportável sobre os Juízes – inclusive levando em conta que boa parte deles foi nomeada pelo próprio Presidente Lula – dão suficiente suporte de legitimidade à decisão da Suprema Corte”.
A resposta veio em artigo do jurista Luiz Moreira, que segue abaixo:
OS EQUÍVOCOS JURÍDICOS DO GOVERNADOR TARSO GENRO
Luiz Moreira
Uma das facetas mais preocupantes do atual constitucionalismo é a tentativa de submeter o real ao jurídico. Essa tentativa de colonização do mundo da vida pelo jurídico se realiza mediante um alargamento do espectro argumentativo, desligando a argumentação jurídica de qualquer vinculação à lei. É a partir desse pressuposto que, em artigo publicado no portal Carta Maior(*), o Governador Tarso Genro afirma que “todo o Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores”.
Quer dizer então que nas democracias ocidentais a legitimidade decorre das Cortes Constitucionais? Que a democracia emana do direito? Essas duas perguntas convergem para um quadro teórico incapaz de captar o sentido da modernidade.
O sentido da modernidade é o expresso por Newton, na física, e por Kant, na filosofia, ou seja, estabelece-se com a elevação da crise à estrutura racional, tanto no patamar teórico, como no prático. É isso que levou Henrique Lima Vaz a afirmar que na modernidade a racionalidade nomotética é substituída pela hipotética. Essa mesma questão é respondida de modo muito perspicaz por Napoleão Bonaparte ao afirmar que o mundo moderno surge quando a tragédia grega é substituída pela política. Não havendo mais oráculos para consultar, nem sacralidades donde se deduzem respostas, as decisões passam a ser dos cidadãos que, associadamente, são plenipotenciários. Não se trata de simples separação do poder em esferas autônomas, conforme uma organização horizontal, mas de estabelecer uma verticalidade, com a qual o exercício funcional do poder se submete à soberania popular. Para ser legítimo o Estado se submete ao poder dos cidadãos, estabelecendo-se o que se chama soberania popular, com a qual aos poderes políticos compete a direção dos negócios estatais. Portanto, não havendo Estado legítimo sem democracia, é o governo que asperge legitimidade às manifestações estatais.
Disso decorre uma primeira distinção que os juristas no Brasil teimam em não admitir e que perpassa o artigo do Governador Tasso Genro. É que do Estado Democrático de Direito a novidade entre nós é apenas a democracia. Todas as ditaduras brasileiras tiveram ordenamentos jurídicos sofisticados e o Supremo Tribunal Federal conviveu pacificamente com a ausência de democracia no Estado de Direito brasileiro. Suprimiram-se as eleições, houve intervenção nos Parlamentos, mas negócios e obrigações jurídicos foram normalmente celebrados, tudo devidamente chancelado pelo Judiciário brasileiro.
Outro equívoco cometido pelo Governador Tasso Genro é a combinação de autores tão distintos como Kelsen e Marx. Explico: o propósito dessa associação é o de conferir ares de vanguarda aos Tribunais Constitucionais. Sabe-se que Marx foi o mais arguto intérprete do capitalismo, sendo também conhecido como um dos “mestres da suspeita”. Se essa análise do capitalismo lhe conferiu lugar junto aos clássicos do pensamento ocidental, do ponto de vista político lhe reservou assento entre os teóricos que rompem com os grilhões que dominam as consciências. Outra é a perspectiva de Kelsen ao formular os tribunais e a de sua institucionalização na Europa continental.
Kelsen propõe a adoção de tribunais constitucionais num contexto europeu entre as duas grandes guerras. Vivia-se a quebra de paradigmas hermenêuticos, sobretudo com a entronização do particular sobre o universal. Essa perspectiva gera a insuscetibilidade de submissão de uma interpretação a outra, mas também garante que não haja supremacia cultural de um país sobre outro, o que se institucionalizava com a supremacia parlamentar, vez que cabia aos parlamentos a representação das distintas visões de mundo. Daí a máxima segundo a qual “cada cabeça uma sentença”. Festeja-se com isso a diversidade cultural e um grau razoável de autonomia da sociedade civil ante o Estado.
Ora, os tribunais constitucionais logram institucionalização por intermédio de um ato político decorrente da vitória norte-americana na segunda grande guerra. A fim de esmagar a diversidade cultural, as distintas visões de mundo e a submeter a todos a uma mesma orientação, passada a guerra os Estados Unidos impuseram aos vencidos a adoção de tribunais constitucionais. O exemplo alemão é marcante. Sem eleições e tampouco sem democracia foi outorgada uma Lei Fundamental e criado o tribunal constitucional na Alemanha. Como compatibilizar a existência de um tribunal dito constitucional se não há Constituição? A resposta é simples: o exercício funcional do poder pode perfeitamente ser jurídico sem ser democrático.
Se o modelo dos tribunais constitucionais é imposto à Europa como conseqüência aos regimes totalitários, houve algo profundamente nazista que sobreviveu à guerra. Trata-se daquilo presente nas cartas do ministro da justiça do Reich: o apelo ao contorno às leis, às suas prescrições e sua substituição pela concreção dos ideais nazistas que deveriam ser operada pelos juízes. O que se pretendeu com isso? Estabelecer o primado da interpretação judicial sobre a lei. O propósito é claro: trata-se de conferir à interpretação realizada pelo judiciário supremacia política, operada por uma argumentação sem peias, pela qual ao magistrado é conferido o papel de oráculo.
Nesse contexto, é preciso enfrentar a questão atinente à relação entre direito e política. O Governador Tasso Genro defere às Cortes Constitucionais um protagonismo tal que chega a deferir-lhe papel de mediador entre projetos sociais e políticos antagônicos. Nesse sentido, então, o Judiciário seria uma espécie de poder moderador. Essa afirmação contraria profundamente todo o projeto político libertário que a modernidade pode conter. Quer dizer então que a democracia, o poder constituinte permanente existente na sociedade civil, precisa ser domada por uma instituição não popular? Que diferença qualitativa há então entre esse projeto e o do Leviatã de Hobbes?
A única razão de ser que legitima a existência das Cortes Constitucionais é o seu papel de poder contra majoritário, de modo a represar manifestações violentas e arbitrárias da maioria ante minorias, ainda que apenas simbólicas. Por isso, seu poder é circunscrito aos direitos e garantias fundamentais, vinculando-os estritamente a constatar o que foi prescrito pelos poderes políticos (a lei) e pelo que foi produzido pelas partes nos processos judiciais.
Por último, o Governador Tarso Genro assevera que o processo do “mensalão” foi “devido”, “legal” e “legítimo”. No meu entender, equívocos foram cometidos e que levantam questionamentos sobre a correção do julgamento, entre eles: (1) a opção pelo fatiamento do julgamento; (2) a falta de individualização das condutas e sua substituição por blocos e (3) a ausência de provas e a aplicação dos princípios do direito civil ao direito penal.
(1) Com o propósito de garantir a supremacia de uma ficção foi estabelecida a narração como método em uma ação penal. Como no direito penal exige-se a demonstração cabal das acusações, essa obra de ficção foi utilizada como fundamento penal. Em muitas ocasiões no julgamento foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico “conjunto probatório”, mas nunca se apontou que prova, em que folhas, o dolo foi comprovado. Foi por isso que se partiu para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade. Estabelecida a correspondência, passou-se ao passo seguinte que era o de substituir o exame da acusação pela comprovação das teses da defesa. Estava montado assim o método aplicado nesse processo, o de substituir a necessária comprovação das teses da acusação por deduções, próprias ao método narrativo.
(2) Como se trata de uma ficção, o método narrativo não delimita a acusação a cada um dos réus, nem as provas, limita-se a inseri-los numa narrativa para, após a narrativa, chegar à conclusão de sua condenação em blocos. O direito penal é o direito constitucional do cidadão em ter sua conduta individualizada, saber exatamente qual é a acusação, saber quais são as provas que existem contra ele e ter a certeza de que o juiz não utiliza o mesmo método do acusador. É por isso que cabe à acusação o ônus da prova e que aos cidadãos é garantida a presunção de inocência. Nesse processo, a individualização das condutas e a presunção de inocência foram substituídas por uma peça de ficção que exigiu que os acusados provassem sua inocência.
(3) Por diversas vezes se disse que as provas eram tênues, que as provas eram frágeis. Como as provas não são suficientes para fundamentar condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil. A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo houvera ali. Como essa suspeita nunca se comprovou, atribuíram forma jurídica à suspeita, estabelecendo penas para as deduções. Com isso bastava arguir se uma conduta era possível de ter sido cometida para que lhe fosse atribuída veracidade na seara penal. As deduções realizadas são próprias ao que no direito se chama responsabilidade civil, nunca à demonstração do dolo, exigida no direito penal, e que cabe exclusivamente à acusação.
Luiz Moreira é Doutor em Direito e Mestre em Filosofia pela UFMG. Professor universitário. Diretor Acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem.
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