
O setor público brasileiro contratou pelo menos R$ 23 bilhões em TIC entre 2014 e 2025, sem contar sobreposições nem dados não padronizados, sendo R$ 10,35 bilhões apenas no último ano, mostra Estudo conjunto da USP e da UnB
A análise das bases ComprasNet e Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) permitiu estimar esse valor piso, revelando a dimensão dos investimentos em tecnologia estrangeira, ainda que o número real possa ser significativamente maior devido à fragmentação das bases da União e inconsistência dos dados. O trabalho mostra que com a quantia já destinada à aquisição de tecnologia estrangeira, nos últimos dez anos, seria possível construir e inaugurar pelo menos 86 data centers de alto padrão no Brasil.
Estimativa de estudo da USP e UnB aponta que gasto com produtos tecnológicos internacionais cobriria um ano de bolsas para todos os pós-graduandos do Brasil, além de desestimular inovação no País
Boa parte de serviços, licenças e softwares são negociados por CNPJs de terceiros, o que demonstra a existência de mercado especializado em intermediação de licenças de software para o setor público
O setor público brasileiro, nas esferas federal, estadual e municipal, contratou pelo menos R$ 23 bilhões em licenças de software, nuvem, segurança digital e softwares de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) entre 2014 e 2025 – valor superior ao orçamento de diversos Ministérios federais. A estatística é revelada pelo estudo Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro, realizado por pesquisadores da USP e da Universidade de Brasília (UnB). Apenas entre junho de 2024 e junho de 2025, o gasto com produtos tecnológicos internacionais superou R$ 10,35 bilhões, valor que cobriria por um ano o pagamento de bolsas a todos os 350 mil mestrandos e doutorandos do País.
“A escolha revela uma inversão de prioridades que compromete o futuro do País. Não faz sentido o Brasil gastar bilhões de reais em contratos com fornecedores estrangeiros de tecnologia enquanto nossas universidades e centros de pesquisa operam com orçamentos apertados há décadas”, afirma Ergon Cugler, coordenador do estudo, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo e integrante do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip) da USP.
“Estamos enviando dinheiro público para sustentar a inovação em outros países, quando poderíamos investir esse mesmo valor aqui, fortalecendo a capacidade científica nacional, gerando empregos qualificados e desenvolvendo soluções tecnológicas próprias.”
A pesquisa também estima que o valor de R$ 10,35 bilhões é suficiente para pagar bolsas a todos os 350 mil pós-graduandos do País durante um ano inteiro, considerando 100 mil doutorandos a R$ 3.300 mensais e 250 mil mestrandos a R$ 2.100 por mês, segundo os valores da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em outra comparação feita no estudo, esse mesmo valor manteria o funcionamento da UnB, com todos os custos operacionais, de corpo docente e demais previsões no orçamento, por até quatro anos e meio.
Demanda pública como motor de desenvolvimento
No recorte do atual mandato, entre janeiro de 2023 e junho de 2025, as três esferas do setor público brasileiro contrataram R$ 5,97 bilhões em licenças de software, R$ 9 bilhões em soluções de nuvem e R$ 1,91 bilhão em segurança digital. O estudo mostra que quatro grandes empresas lideram as contratações públicas federais de tecnologia, com Microsoft, Oracle, Google e Red Hat concentrando volumes bilionários. A Microsoft sozinha aparece com R$ 3,27 bilhões no ComprasNet, sendo R$ 1,65 bilhão apenas no primeiro semestre de 2025. No PNCP, Oracle (R$ 1,02 bilhão), Google (R$ 938 milhões) e Red Hat (R$ 909 milhões) dominam os contratos desde 2022. Licenças de softwares da Microsoft foram negociadas a R$ 3,27 bilhões nas três esferas, sendo R$ 1,65 bilhão só no primeiro semestre de 2025. Serviços de nuvem da Oracle somaram R$ 1,02 bilhão, seguido do Google, com serviços vendidos a R$ 938 milhões, e Red Hat, com R$ 909 milhões em serviços vendidos.
Os pesquisadores ressaltam que esses serviços, licenças e softwares, em boa parte, são negociados por CNPJs de terceiros, o que demonstra a existência de um mercado especializado em intermediação de licenças de software para o setor público. “Cada contrato fechado com uma multinacional é uma porta fechada para startups brasileiras, institutos públicos e redes de universidades que já têm competência técnica para entregar soluções de ponta”, aponta Cugler. “Estamos perdendo a chance de transformar demanda pública em motor de desenvolvimento. A tecnologia comprada de fora não volta em forma de emprego, renda ou autonomia. A tecnologia feita aqui dentro, sim.”
Para ele, o que está em jogo não é só o valor dos contratos, mas o tipo de país que queremos construir. “O Brasil tem infraestrutura, cérebros e rede pública qualificada para oferecer alternativas robustas”, enfatiza. “Mas, para isso acontecer, é preciso uma decisão estratégica: investir no que é nosso. Com os mesmos recursos, que hoje sustentam big techs, poderíamos financiar datacenters nacionais, ciência aberta, segurança digital sob jurisdição própria e gerar milhares de empregos qualificados. É uma escolha que pode mudar nossa ciência.”
A pesquisa foi realizada pelo Getip, vinculado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas Prof. Dr. José Renato de Campos Araújo (OIPP), coordenado pelo professor José Carlos Vaz da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, e o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (Gepsi Data) do Instituto de Relações Internacionais da UnB. O trabalho, assinado por Ergon Cugler, Isabela Rocha, José Carlos Vaz, Camila Modanez e Julia Veneziani está disponível em formato de nota técnica e também na versão completa.
*Texto dos pesquisadores adaptado para o Jornal da USP