Dia 25 de outubro de 2016, 17 h, reunião de preparação do Fórum Social Mundial (FSM)
no CAMP (Centro de Assessoria Multiprofissional), que vai acontecer de 17 a 21 de janeiro de 2017 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Feliz por voltar a participar da preparação de um Fórum, eu que, no mesmo CAMP, participei da preparação do primeiro em 2001, surpreso, vejo adentrar na sala o Irmão Antônio Cechin, antigo companheiro de todas as lutas. Imediatamente vou cumprimentá-lo, saber como está de saúde, perguntar sobre sua irmã Matilde e tudo mais, no reencontro de velhos amigos. Diz-me que os combatentes têm que estar sempre a postos até onde e quando for possível, que está morando praticamente sozinho, eis que a Matilde está no interior, e que, aos 89 recém completados, vai fazer talvez uma última viagem para reunião do Grupo de Emaús no Rio, com Leonardo Boff, Frei Betto, Luiz Alberto Gomes de Souza, Pedro Ribeiro de Oliveira, Frei Luís Carlos Susin e outros teólogos e intelectuais que se reúnem há décadas a partir e em torno da Teologia da Libertação. Já não aguenta mais as viagens. Termina a reunião pelas 19h, ainda há sol, estamos em horário de verão em Porto Alegre,\pergunto se vai para casa. Sim, a pé. Te acompanho, digo, já que tua rua, a Coronel Vicente, está a meio caminho do meu apartamento, na Tomás Flores, logo depois do Colégio Rosário, dos maristas. Feito discípulos de Emaús, seguimos cinco ou seis quadras pela rua Voluntários da Pátria, cheia de povo a essa hora, gente indo para casa, gente ainda comprando. Ele me pergunta sobre\minha volta ao Rio Grande do Sul. Digo que estou bem e feliz, que ainda não sei bem o que fazer,\recém aposentado, mas que o envolvimento na realização do Fórum Social Mundial é um bom\recomeço de vida no Rio Grande, depois de mais de 13 anos em Brasília, governos Lula e Dilma. Ele me fala das suas preocupações com o mundo, a América Latina, o Brasil, a igreja, feliz com o Papa Francisco. Falamos do impeachment da Dilma, da democracia, da institucionalização de movimentos sociais e partidos de esquerda, especialmente o PT, da democracia, preocupações comuns. Fala com entusiasmo de Sepé Tiarajú, seu prioritário esforço na beatificação deste santo indígena que poderá ajudar a superar a visão do gaúcho guerreiro e de grande parte de suas tradições descoladas dos pobres e dos que mais sofreram e lutaram ao longo do tempo. Chegamos na rua Coronel Vicente, em frente ao prédio onde mora, despedimo-nos com um forte abraço, eu dizendo que vamos trabalhar de novo de forma mais próxima, ele me dizendo da felicidade do reencontro de amigos e companheiros de quase uma vida. 16 de novembro de 2016, estou em casa de mamãe em Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, pronto para ir a Porto Alegre para nova reunião de preparação do FSM. Umas 10h, recebo mensagem de Egídio Fiorotti: faleceu o Ir. Antônio Cechin, velório a partir das 13h na casa dos maristas em Viamão (por coincidência fiz referência a esta casa no último artigo ‘Essa Juventude!’, local do CETA, formação de jovens nos anos 1970). Quase caí de costas. Não é possível! O que aconteceu depois do dia 25 de outubro, quando ele estava tão bem, tão lúcido, arrisco dizer tão jovem, caminhando cinco ou seis quadras comigo no centro de Porto Alegre? Queda em casa, quebra da bacia, hospital, não resistiu. (Refiz a caminhada e o trajeto até a entrada do seu apartamento dia 17 de novembro, após nova reunião do FSM, desta vez acompanhado pelo companheiro Mancuso, discípulos de Emaús, nós dois falando do Ir. Antônio, dos desafios presentes, da vida e do mundo.) Chego na capela dos maristas, Viamão, cheia de agentes de pastoral, militantes sociais, gente das CEBs e das pastorais, irmãos maristas, inclusive o provincial, religiosos/as, os ex- governadores Tarso Genro e Olívio Dutra, deputados, dirigentes sindicais, carrinheiros, papeleiros, a irmã Matilde, mais que nunca centro de todas as atenções. Foi triste e alegre. Muito triste pela partida. Muito alegre pelos cantos das CEBs na sua presença, a celebração de sua vida, ele o santo e o profeta, como o nomeei na minha fala, e propondo ao presidente da CUT/RS, Claudir Nespolo, presente: o próximo Fórum Social Mundial deve ser dedicado a ele, Irmão Antônio Cechin. Escrevi em ‘Ir. Antônio Cechin, monumento vivo’, em junho de 2007: “Ir. Antônio Cechin, marista, está completando 80 anos neste mês de junho. Sempre que nos encontramos em reuniões, assembleias, Romarias, digo para todos que ele é o nosso monumento vivo. Ele protesta. Mas digo que é um monumento que nos serve de referência, uma bússola do bom caminho. Outro dia o teólogo Fernando Altemeyer, em artigo no Estadão, quando da visita do (então) papa ao Brasil, citou-o como um dos membros da ‘escola espiritual da Teologia da Libertação, feita de larga tradição de muitos patriarcas e matriarcas’ (09.05.07). Em 7 de setembro de 1979, quando houve a primeira ocupação de terra no Rio Grande do Sul, fazendas Macali e Brilhante em Ronda Alta, ele fez o comunicado aos que participavam do primeiro Encontro de CEBs do Estado, em São Gabriel. Lá estava ele, assim como nas Romarias da Terra, pensadas por ele, nas ocupações urbanas em Canoas, na luta com os carrinheiros e os Profetas da Ecologia, na Romaria das Águas, sempre empunhando a bandeira de Sepé Tiarajú, santo para ele e para todos nós, na luta por uma Terra Sem Males.”
Entre as tantas falas, histórias, lembranças, homenagens, duas chamaram especialmente a atenção. Um jovem do Levante de Juventude falou quanto o Cechin, como muitos o chamavam no cotidiano, apoiava o movimento, o quanto ele se preocupava com os jovens nos seus encontros: ‘Está tudo bem? Estão bem alimentados? Dormiram? Estão preparados para o debate?’ E a fala emocionada do Carbonera, mãos no caixão, mãos nas mãos do Ir. Antônio, como também era chamado: “Sou Carbonera. Sou carrinheiro, papeleiro e catador de material reciclável. Ele defendia os nossos direitos, dizia que éramos gente. Estava sempre do nosso lado. Ele e a Matilde, quando precisávamos, tiravam parte de sua aposentadoria para ajudar nossas lutas e nossa organização. Neste Natal vou sentir muita falta. Ele sempre passava o Natal na minha casa.” Irmão Antônio Cechin, monumento vivo, ontem, hoje, amanhã, sempre. Irmão Antônio Cechin, santo e profeta. Vai em paz. Seguiremos tua luta, perseguiremos teus sonhos. Sepé Tiaraju um dia será oficialmente proclamado santo. Como tu.
Selvino Heck
Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)
Membro da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política
Em 18 de novembro de dois mil e dezesseis
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