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A covid-19, o Estado e a pobreza

Luglio 1, 2020 19:18 , by Nocaute - | No one following this article yet.
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O isolamento para reduzir a mortandade provocada pelo coronavírus levou à paralisação das economias e à necessidade de os governos intervirem para, em primeiro lugar, salvar os mais pobres. Como, nesse mundo tão desigual em que vivemos? Uma resposta em três capítulos. Esta é a terceira e última parte do Capítulo 1.

CAPÍTULO 1 – Brasil, Rio de Janeiro, Rocinha.

Parte 3 – Os pobres, a droga e a política de longo prazo

No final de junho, quando estava sendo concluído este artigo, a ajuda aos mais pobres para atravessar a epidemia do coronavírus já tinha beneficiado, segundo a Caixa Econômica Federal (CEF), que a distribuía, 64,1 milhões de pessoas, com 1,8 mil reais pagos em três parcelas mensais. Fora decidida às pressas por um governo com orientação econômica liberal, que considerava o programa Bolsa Família – também de ajuda aos pobres, criado em governos anteriores, do PSDB e do PT – um incentivo à indolência. O governo, por parte do próprio presidente, Jair Bolsonaro, considerou inicialmente a covid-19, a doença provocada pelo SARS-CoV-2, uma “gripezinha” sem importância. Com a disparada da epidemia – hoje o Brasil, oficialmente, é o segundo país do mundo em número de infectados – mais de 1 milhão – e de mortos – mais de 50 mil. Com a ameaça de depressão econômica que se seguiu, os estímulos em dinheiro foram disparados às pressas, podendo ter atingido, numa primeira análise do Tribunal de Contas da União (TCU), oito milhões de pessoas que não atendiam aos requisitos necessários para a concessão da ajuda. E, o que é pior, os créditos a juros baixos não chegaram aos pequenos e médios empresários para estimulá-los a manter seus negócios e os empregos que proporcionam.

Como vimos nos dois textos iniciais deste capítulo, a difícil vida dos pobres e da grande maioria dos modestos empresários da Rocinha não dispensa uma ajuda de curto prazo como a do governo Bolsonaro. Mas, além desse paliativo, exige mudanças mais profundas. Uma proposta desse tipo foi delineada pelo governo Lula, no seu Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) anunciado em janeiro de 2007, primeiro ano de seu segundo mandato, com a promessa de investimento de 512 bilhões de reais até 2010. Dessa promessa surgiu o PAC das Favelas, anunciado em março de 2008, com discursos do presidente nas favelas do Alemão, da Rocinha e de Manguinhos. Por meio do programa seriam destinados 1,2 bilhão de reais para obras de melhoramento nesses locais. A passarela de Niemeyer, a pintura das fachadas de construções da Rocinha à margem das pistas de saída do túnel Zuzu Angel e a cobertura da saída do esgoto a céu aberto que desce do centro da favela em direção ao mar, como descrevemos no final da parte 2 dessa série, foram inauguradas mais de dois anos depois, no final de junho de 2010.

O governo Lula, na sua política em relação às favelas do Rio, teve um desvio de objetivos: forneceu o apoio das Forças Armadas, com soldados e equipamentos do Exército e da Marinha, para duas operações com a polícia fluminense: a ocupação do complexo de Alemão no final de 2010 e, no final de 2011, a ocupação da Rocinha. As operações visavam destruir a estrutura de poder do tráfico de drogas nesses locais e devolvê-lo aos moradores. Para observadores do campo mais conservador, a ocupação do Alemão seria comparável à retomada de Paris pelas forças de combate ao nazifascismo no final da II Guerra Mundial. E, no dia 14 de setembro de 2011, enaltecendo a cerimônia de hasteamento das bandeiras do Rio de Janeiro e do Brasil, ocorrida no dia anterior, no alto da favela da Rocinha, o diário O Globo dizia: “A Rocinha é nossa”, “não pertence mais aos traficantes armados que há décadas tiranizavam mais de 100 mil moderadores”. Sua área teria voltado “às mãos do Estado e de todos os cariocas”, sem exceção. Ledo engano. Quem passa pelas ruas do Alemão hoje encontra os pedaços de trilhos enfiados no meio das ruas para que os visitantes dirijam devagar e com cuidado nas áreas dominadas pelos traficantes. Na Rocinha isso não acontece por inúmeras razões. A principal delas é que não existem ruas normais como as do Alemão, largas, para passagem de dois carros. Mas, assim como a Praça do Conhecimento, construída ao pé da favela Nova Brasília, no Alemão, para ser um centro de difusão de uma nova cultura para os moradores e em especial os jovens, na Rocinha não foi adiante também o plano muito mais elaborado e sofisticado de ouvir e atender às principais reivindicações de seus moradores.

As promessas do PAC da Rocinha eram poucas, mas muito relevantes. E não foram colocadas no papel por acaso. Surgiram de fóruns de debate com especialistas e com a população. Foram elaboradas a partir de um levantamento importante das condições de vida do povo do bairro realizado ao longo de um ano com visita de pesquisadores a todas as moradias, como já mostramos. Um trabalho da pesquisadora Priscila Silva detalha o que foi prometido e o que foi realizado, partindo de uma avaliação mais ampla do problema. Na época do plano, o crescimento das habitações subnormais na cidade do Rio de Janeiro, diz Priscila, era de 2,4% ao ano, uma taxa seis vezes maior do que a do crescimento das habitações normais, de 0,38% ao ano. Para os moradores da Rocinha, o saneamento era a questão chave. E para isso era necessário, também, abrir os becos e vielas transformando-os em ruas para habitações com ar e luz adequadas.

Essa era a parte mais cara e mais difícil porque implicava destruir casas, desalojar gente, acomodá-las provisoriamente, construir as ruas e habitações novas e reacomodá-las. Isso foi feito para uma rua apenas: a viela chamada de rua 4 foi transformada em Rua Nova no final de 2010. O repórter a visitou, agora. É, de fato, uma rua, normal. Tem cerca de quatro metros de largura. Os apartamentos têm janelas para a rua. É outra Rocinha: a rua tem luz.

A rua Nova sai da Praça do Valão, no centro da Rocinha, e vai na direção noroeste até a pista da Lagoa-Barra, que contorna o morro do alto, na entrada da rua Um, até a parte baixa na área da passarela. A metamorfose da rua 4 era para ser um exemplo, mas ficou nisso. Nela, o repórter viu ainda o que pode vir a ser pior: há um começo de invasão do espaço público, com barracas de comércio na sua parte mais alta.

O grande problema do PAC-Rocinha não foi só esse, no entanto. Para entendê-lo vamos lembrar a discussão recente quando se falou do recurso monetário do helicopter money, a ideia de jogar dinheiro de helicóptero sobre o povo em momentos de crise aguda de falta de consumo, como sugerido na metáfora de 1968 do grande teórico do liberalismo econômico recente, Milton Friedman. Na crise que levou à solução da ajuda de 600 reais mensais para os mais pobres se fez algo do tipo; como alguns milhões desses pobres não tinham conta em banco nem saldavam seus compromissos com cartões, o Banco Central brasileiro fez uma maciça emissão de notas de 100 reais (só não as distribuiu, despejando essas notas sobre os bairros pobres, de helicóptero, como sugerido por Friedmann…).

A questão dos estímulos monetários pelos governos capitalistas tornou-se tomou o centro das discussões de política econômica a partir de outra crise recente, a que o mundo viveu diante da ameaça de quebra do sistema financeiro global, que começou no final de 2007 com o estouro do mercado de títulos imobiliários dos EUA e foi ampliada espetacularmente com as quebras dos bancos Lehman Brothers e Merrill Lynch, do coração do sistema financeiro de Wall Street, em meados de 2008.

O mecanismo padrão de estímulo dos países capitalistas ricos é financeiro: a redução da taxa de juros básica da economia controlada por seus bancos centrais. Como isso funciona na época atual, na qual, a grande massa de dinheiro circulante é eletrônico? A solução dada pelo Federal Reserve, o banco central dos EUA, à brutal crise de 2007-2008, que ameaçou destruir todo o sistema financeiro global, e a sua repercussão no Brasil, ajudam a entender esse mecanismo. Primeiro, já no final de 2007, o Fed reduziu a taxa de juros cobradas nos empréstimos a curto prazo feitos no dia a dia aos grandes bancos e casas financeiras do seu sistema a praticamente zero, para estimular esse setor a repassar esse dinheiro aos industriais e comerciantes a juros também favoráveis e assim, animar a economia. O Fed manteve os juros, assim achatados, até recentemente. Depois, como a crise não arrefecia, a partir de 2009 começou a comprar do sistema financeiro os chamados títulos podres, o das hipotecas imobiliárias. Ficava com os papéis das dívidas dos compradores dos imóveis, depositava, em dólares, no próprio Fed, o valor desses papéis, como crédito dos bancos e lhes pagava uma taxa de juros baixa pelo depósito, estimulando-os a aplicar o dinheiro a taxas mais altas nos EUA ou mundo à fora.

O Brasil entrou nesse esquema sem clareza do que ele significava. A primeira repercussão da crise financeira mundial aqui foi avaliada, em 2009, como “uma marolinha” pelo presidente Lula, então no segundo ano de seu segundo mandato: uma queda mínima do PIB, de 0,13%. E um crescimento expressivo em 2010, de 7,73% o levou a acreditar no PAC.

Já a presidente Dilma Roussef, eleita no final de 2010, se deparou com o problema: o “tsunami monetário” disparado pelo Fed, o dinheiro emprestado pelo sistema financeiro americano aos agentes do nosso sistema financeiro. Para se ter uma ideia da dimensão do problema: os bancos e financistas no Brasil tomavam dinheiro nos EUA a juros muito baixos para investir em títulos da dívida pública brasileira, que pagara, no overnight, de um dia para o outro, de 2007 a 2008, juros anuais entre 11,25% e 13,7%. Em agosto de 2011, início do segundo semestre do primeiro mandato da presidente, o BC brasileiro começou a puxar para baixo sua taxa de juros do overnight, a Selic: a taxa cai, então, para 12%. E, em dez quedas sucessivas, a Selic chega a 7,25% em março de 2013. A queda é modestíssima, em relação aos juros praticados pelo Fed, que continuaram próximos de zero no período. E o efeito dessa baixa sobre a taxa de crescimento do PIB do Brasil é zero. A economia continua rolando escada abaixo: cresce 3,97% em 2011, 1,92% em 2012, 3,0% em 2013 e 0,50% em 2014. A presidente é reeleita, tenta pacificar a direita que já está nas ruas contestando sua reeleição. Põe um liberal para comandar o Ministério da Fazenda, coisa que alguns de seus mais animados apoiadores chama de “estelionato eleitoral”. E, o que é pior, a economia afunda mais: o PIB tem crescimento negativo de 3,55% em 2015.

Os resultados dos governos saídos do golpe parlamentar que derrubou Dilma, que empossou Michel Temer já em maio de 2016 e que, de diversas formas, ajudou na vitória eleitoral de Bolsonaro e na afirmação de um programa econômico liberal para o País, até agora, não mostrou a que veio.

Em 2016, a despeito dos esforços para reafirmar a proposta liberal e conter a ação estatal, com a aprovação de um teto para os gastos públicos, o PIB caiu 3,31% e no triênio entre 2017-19, se arrastou com um crescimento de 1,06%, 1,12% e 1,14%. E, neste ano, graças à covid-19, deve, a partir do atual fundo do poço, ir mais fundo ainda.


A título de conclusão

Um balanço preciso e esperançoso. Uma crítica construtiva ao PAC das Favelas do governo Lula

O trabalho da pesquisadora Priscila Soares da Silva (acesse à sua íntegra clicando aqui), citado no texto principal desta reportagem, merece um comentário especial. Ela faz a crítica do caso concreto do PAC da Rocinha de um ponto de vista amplo. Por exemplo, destaca o projeto da transformação da rua 4 na rua Nova, inclusive com ótimas imagens de como era e no que se transformou. Mas não deixa de notar que houve uma “inversão do projeto”. Ele seria um exemplo, a mudança deveria sair do centro da Rocinha, no Valão, para fora, com a construção de uma praça. Mas foi feita em sentido contrário: aproveitou-se o fato de que havia uma grande garagem de ônibus na esquina da rua 4 com a pista da Lagoa-Barra, que contorna a Rocinha pelo lado oeste. E a obra começou por lá, área que, certamente, foi mais fácil desapropriar. A imagem da garagem de ônibus aparece entre as que ilustram a transformação da rua 4. Veja na foto da página 17 do documento, que ilustra este texto.

Priscila não aprofunda essa discussão, além de citar a “inversão do projeto”. Mas deixa clara sua posição crítica da política nacional “concentradora e anti-distributiva, cujo reflexo são os espaços urbanos elitizados e a periferização das classes de baixa renda”. Ela valoriza também a grande participação popular que o projeto proporcionou. Cita o arquiteto Luiz Carlos de Toledo, que coordenou o projeto dizendo: “Nós fazíamos os chamados comícios relâmpagos, a gente parava numa rua, ficava olhando para o mapa, juntava gente e então aproveitávamos para questionar, sempre com a participação do grupo de moradores integrante da equipe”.

Nesse final do texto ela cita dois outros moradores que também defendem posições parecidas: “A minha maior preocupação é que o estigma de favelado permaneça. Quando se melhora a estrutura da favela, se melhora a condição de vida, a gente vira as costas e vai embora”. E termina com a frase animadora de outro participante que diz: “O PAC é um ensaio, precisamos montar fóruns permanentes, ainda falta muito investimento em formação e mais envolvimento político.”


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Source: https://nocaute.blog.br/2020/07/01/a-covid-19-o-estado-e-a-pobreza-3/

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