Ir para o conteúdo

Nocaute

Voltar a Blog
Tela cheia Sugerir um artigo

Lula e o redemoinho

25 de Maio de 2020, 13:59 , por Nocaute - | No one following this article yet.
Visualizado 16 vezes

“Aceitaremos o bem dado por Deus e não o mal?”
(Livro de Jó, 2:10)

Na esteira da crise do sistema financeiro internacional (2007-2008) o então presidente do Brasil afirmava ao primeiro-ministro britânico que o problema era o “comportamento irracional de banqueiros brancos de olhos azuis, que antes pareciam saber tudo sobre economia, mas agora demonstram que não sabem nada” (O Globo, 29/3/2009). Carraspana dirigida à opinião pública europeia que se queixava dos imigrantes, que na verdade, segundo Lula, foram “as primeiras vítimas” da globalização que não lhes dera a sua parcela de desenvolvimento econômico e social.

Comentários considerados “bizarros” pelo Daily Mirror, que, para o Independent e o Daily Telegraph, causaram “constrangimento” na mídia que já não engolia seu primeiro ministro do Partido Trabalhista, e que desde então passou a encarar o brasileiro desaforado com profundo ressentimento. Em boa parte por conta da sua postura dialética diante das crises do mundo moderno.

“Esta aqui”, por exemplo, disse ele, “dentre tantos benefícios propiciou a eleição de um homem negro [Barack Obama, primeiro afro-americano a ocupar o cargo de presidente dos Estados Unidos, de 2009 a 2017], algo nada insignificante. E ajudou também a eleger um metalúrgico [ele mesmo], um indígena na Bolívia [Evo Morales], Hugo Chavez na Venezuela e um bispo [Fernando Lugo] no Paraguai” (Conor Foley, ‘Good looking’ Lula’s revenge, The Guardian, 11/4/2009). Duas semanas antes, no mesmo jornal ele escrevia que “nenhum país tinha como o Brasil tanto interesse em reverter o impacto do aquecimento global com soluções que garantam nosso futuro comum, sem prejudicar a subsistência de milhões de pessoas empobrecidas que tiram o seu sustento da terra” (Luiz Inácio Lula da Silva, Green aims in the Amazon, The Guardian, 28/3/2009).

Por outro lado e justamente por conta do mal-estar de quem se acha ameaçado por “países desenvolvidos e países em desenvolvimento terem responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, a atitude conservadora passou a ser de sistemático assédio a governos democraticamente eleitos. Notadamente – nas palavras de um ilustre consultor de segurança nacional – governos de nações “suscetíveis à influência financeira e política de China, Rússia e outras potências regionais, como Brasil e Turquia – ainda que nenhuma delas possa reunir os quesitos de poder econômico, financeiro, tecnológico e militar necessários para herdar o protagonismo dos Estados Unidos” (Zbigniew Brzezinski, After America, Foreign Policy, 3/1/2012). 

As consequências todos nós conhecemos. A começar com espetáculos de protestos de rua contra aumento de contas de luz (Bulgária), por 20 centavos a menos nas passagens de ônibus (Brasil), contra a construção de shopping center em um parque público (Turquia), contra taxar a Internet (Hungria), contra um projeto de anistia geral (Tailândia), contra grampo de telefones (Macedônia), por desobediência civil no pagamento de impostos (Moldávia), contra restrições à cobertura de mídia nas sessões do parlamento (Polônia), contra a recusa do governo de aceitar um empréstimo de 610 milhões de euros da União Europeia quando a Rússia oferecia 15 bilhões e gás mais barato (Ucrânia). Dessa tragicomédia o segundo ato foi a “luta contra a corrupção”, cujas nefastas implicações o mundo ainda sofre.

“Antes de todo esse assédio o mundo fora agitado com o fim da lua-de-mel das organizações multilaterais, Banco Mundial, FMI, etc., com ‘as forças do mercado’. Isso por conta das centenas de bilhões, provavelmente trilhões, de dólares de dinheiro público despejados para resgatar bancos e grandes corporações das consequências do livre-mercadismo” (Pedro Scuro, Luta anticorrupção: arca dos insensatos, Revista Sociologia Jurídica, 2018, nº 22-23).

Hoje em dia, ainda vítima de assédio, o combativo metalúrgico destaca o lado benfazejo da pandemia, um “monstro que está permitindo aos cegos enxergar que somente o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises”. Como as causadas ao longo da nossa história por uma “elite canalha, predatória, que não permite alternância de poder”. Quase dois anos de estudo na prisão fizeram-no entender que fora “o primeiro do andar de baixo a sair na fotografia do poder”, e que só não foi “enforcado, esquartejado e salgado”, como tantos mártires da luta contra o colonialismo de sempre, porque tornou-se “vítima de algo mais sofisticado, um fabricado processo de corrupção” (Lula e Mino Carta, entrevista ao vivo, www.youtube.com, 19/5/2020).

A reação da elite e seus fâmulos não se fez esperar. Na expectativa de mais um golpe militar e fazendo-se de tolos diante da extraordinária trajetória de Lula, comemoraram a fala como uma “escorregada” e reflexo da “diminuição da sua influência no cenário político”. Algo que acalentam como um sonho possível desde o início da tragicomédia.  

Na verdade, mais que um simples mito, isto é, estória, pessoa ou coisa fictícia, Lula é uma lenda que desde o passado as pessoas contam umas às outras e aceitam como verdade histórica – apesar das evidências e não por causa delas. Nesse sentido, sua saga lembra figuras notáveis do nosso e de outros povos, homens e mulheres afligidos, porém libertos pois entenderam os motivos do seu sofrimento – literalmente, Deus “ao aflito livra da sua aflição, e na opressão se revela aos seus ouvidos” (Livro de Jó, 36:15). Personagens a quem “Deus fala de dentro de um redemoinho” e explica o mal não como punição, mas como fonte de conhecimento e disciplina moral.

Na literatura como na vida o redemoinho se manifesta constantemente. Por volta do ano 2.000 AC, no Egito antigo, servia à sabedoria divina no diálogo de um homem comum com a sua própria alma acerca de situação desesperadora causada por anomia e quebra das condições morais da sociedade. Shakespeare escreveu que do ponto de vista dos deuses “somos como moscas para moleques maldosos: matam-nos por esporte” (Rei Lear, IV). Mais que isso, eles parecem querer mostrar o quanto somos ignorantes/ fracos/ despreparados diante dos poderes da natureza indomada e seus leviatãs (o Livro de Jó, cap. 40 e 41) do tipo elite, Bolsonaro, militares e coronavírus. Aqui, o Velho Testamento desmente (ou posterga) a conclusão de um de seus livros, o Gênesis, que encara a humanidade como o ponto mais alto da criação, com poder de dominar todos os seres (1:28). Os otimistas, como Lula e eu, temos paciência.


Pedro Scuro Neto, M.Soc.Sc. (Praga), Ph.D. (Leeds) sob Zygmunt Bauman, é autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja oitava edição (A Era do Direito Cativo) foi publicada pela Saraiva, São Paulo.

O post Lula e o redemoinho apareceu primeiro em Nocaute.


Fonte: https://nocaute.blog.br/2020/05/25/lula-e-o-redemoinho/

Nocaute