Em meio a uma crise sanitária sem precedentes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva permanece em quarentena, com forte sequência de leituras e agenda intensa de reuniões por videoconferência, suporte que viabilizou a realização desta entrevista exclusiva para o Blog do Conde [que abre seu conteúdo a quaisquer mídias que queiram publicar a íntegra do texto].
Lula segue sua rotina com a habitual – e perigosa – onipresença política no campo das esquerdas e com o discurso afiado, sem quaisquer vestígios de ressentimento diante da perseguição histórica que lhe é imposta por setores da elite brasileira. O adjetivo ‘perigosa’ fica por conta do excesso de cuidados e reverências que o pensamento progressista lhe dedica, aguardado sinalizações e caminhos a serem percorridos diante do caos Bolsonaro.
Lula não gosta de tutela. Ele não tem respostas prontas e sequer as aventa. Continua preferindo ‘mais ouvir do que falar’ para, justamente, alimentar sua característica mais eloquente: produzir a amálgama discursiva que vem sintetizando o que de mais sofisticado se formula na sociedade brasileira há mais de 40 anos – e o que, paradoxalmente, produz respostas.
Em outras palavras, Lula sabe que as soluções para o país só podem ser formuladas em um processo coletivo de escuta e formulação incessantes e que a tentação pela sacralização de seu nome e de sua dicção é uma armadilha como qualquer outra.
Lula se reinventa a cada minuto. Não tem medo do novo nem da correção de percurso. Não embarca em nenhum efeito-manada promovido por redes progressistas – tão virais quanto efêmeros – e desconfia da estética da lacração que seduz alguns artífices da esquerda.
Segue sua nova jornada com leveza, produzindo a política que sempre produziu: focada em uma agenda social e em uma relação direta com todo o espectro político de interlocutores disposto ao diálogo – mas com uma sutil diferença: o sentido de ‘reumanização do ser humano’ está fortemente presente em todas as dimensões do debate, da saúde à economia, do emprego à educação – mais forte do que sempre esteve.
Lula está preocupado com o processo de desumanização pelo qual as sociedades vêm passando, sobretudo a brasileira. Para ele, sem que esse processo seja freado, não será possível realizar qualquer tipo de avanço na economia ou na saúde. Trata-se de uma compreensão mais clara e universal dos nossos direitos básicos, do direito à vida, do direito à alimentação, ao acesso tecnológico e a um mundo de consumo mais responsável e sustentável.
O ex-presidente manifesta profunda consciência da gravidade social e econômica estabelecida pela pandemia de coronavírus, das direções erradas para os quais a sociedade vinha apontando o seu frágil desenvolvimento, na precarização do trabalho, na erosão de direitos fundamentais, na relativização da democracia e no descaminho estrutural evidente que nos apartou do estado de bem estar social.
Ele entende – com base nessas premissas – que a oportunidade para se romper com as práticas desumanizadas, não apenas na política econômica predatória, está posta diante do desafio gigantesco que é combater a pandemia que assombra o mundo, seja por sua violência viral, seja pela angústia social que o isolamento necessário causa em todos nós.
Para Lula, todo esse processo de reconciliação com o humano é essencial para que haja uma política minimamente adequada de contenção à ameaça viral e uma inteligência em escala para a preservação das vidas humanas. Não há como pensar em ações na economia, pura e simplesmente, sem priorizar o cuidado básico em que as pessoas possam se manter dignamente para atravessar o período de isolamento com segurança.
Lula está elétrico. Ele reposicionou sua ‘respiração política’ em uma nova dimensão: a dimensão digital. Em tempos de quarentena, ele canaliza toda sua capacidade de ouvir e absorver conhecimentos de aplicação prática imediata no instrumento da videoconferência. Deixa claro, com seu entusiasmo típico, que sabe como ninguém vencer preconceitos e se adaptar a quaisquer tipos de plataformas de comunicação.
É de conhecimento geral que Lula sempre alimentou sua voracidade humanística através do contato físico com o povo. Esse contato sempre lhe deu o substrato político mais poderoso: a multivolcalidade afetiva e histórica do cidadão de carne e osso em sua mais profunda heterogeneidade de demandas e sotaques, que lhe permitiu formular o mais coeso discurso já produzido por aquilo que podemos chamar de ‘sociedade brasileira’. Quando Lula enuncia, é como se essa sociedade real e vibrante, em toda a sua rede de complexidade e contradições, fosse co-autora.
Lula não lamenta a perda dessa dimensão sob efeito direto da quarentena – Lula é incapaz de se lamentar do que quer que seja. Ele se reiventa e se lança ao novo desafio de se conectar com o povo através das redes sociais.
Sua energia política permanece como um dos mais assombrosos testemunhos da resiliência humana. Aos 74 anos, Lula continua sendo, disparado, o mais bem disposto – física e mentalmente – político brasileiro.
Não admira que os próprios relatos da prisão política estampem a cena recorrente que lhe persegue desde os tempos do sindicato: as pessoas que chegam a ele tristes e cabisbaixas são imediatamente convertidas a transformarem o mundo quantas vezes forem necessárias.
Lula também preserva um traço perturbador: em tudo que ele se lança a fazer há um caráter competitivo – no melhor sentido da palavra – quase obsessivo. Como condutor de lives na internet, ele domina os protocolos de comunicação melhor do que todos os seus pares.
Ele formula as perguntas, encaixa ‘deixas’, valoriza o interlocutor, brinca, medeia o debate com raro timing, sabe escutar, mimetiza a interlocução e faz uma mera videoconferência protocolar se transformar em um bate-papo descontraído ao mesmo tempo em que, da descontração que ‘relaxa’ as patrulhas e os superegos, brotam as mais pertinentes questões para apreciação posterior, seja como propostas políticas, seja como ações estratégicas.
Em suma, se o Brasil não tivesse sido tão espancado por aqueles que não souberam perder o debate e eleições sucessivas para Lula e para o seu entorno, o ex-presidente poderia conduzir o melhor programa de entrevistas da atualidade.
Esse é um traço de humildade de Lula, pois a qualquer tipo de novo protocolo que que lhe seja apresentado, ele se dedica profundamente para oferecer sempre o seu melhor.
Durante nossa conversa, que durou longos 90 minutos, nós fizemos de tudo. Brindamos com nossos copos de água, tiramos par ou ímpar para ver quem começava falando (ele ganhou) e imitamos um ao outro na camaradagem habitual dos interlocutores que se respeitam.
É fácil conversar com Lula. Ele é amigo, é sério, é técnico, é carinhoso, é direto. Não é a toa que sua reputação é a de ser um dos melhores interlocutores do planeta. Lembremos que ele seduziu, praticamente, todos os líderes mundiais de A a Z. Todos queriam ficar ao seu lado nas fotos. Mesmo os não ocidentais, supostamente mais ‘impermeáveis’ ao ‘charme’ do brasileiro, eram sistematicamente ‘colocados no bolso’, como Ahmadinejad – para citar apenas um dos feitos mais impressionantes de toda a história da diplomacia brasileira, a saber, o acordo nuclear que assombrou o mundo pela espontaneidade com que Lula o arrancou dos iranianos – com a participação de Celso Amorim.
Lula, no sentido lato da reinvenção, é uma Fênix. Sua experiência do cárcere é também uma das lições que ele nos oferece. Aproveitou os 580 dias que lhe foram roubados por uma quadrilha de procuradores cumpliciada por um juiz político de província para ler e conhecer melhor o lado B da historiografia brasileira e toda a sorte de produções literárias que lhe despertavam o instinto leitor.
As leituras de Lula na prisão política ainda precisam ser analisadas em conjunto mais a fundo. Sua visão da dicção historiográfica brasileira, sobre as revoltas sangrentas que marcaram nossa formação social, deverá redefinir os parâmetros para que nossa identidade seja, não ‘recontada’, mas ‘contada’ pela primeira vez.
A lástima é que a velocidade dos fatos do mundo e do Brasil é tão acelerada que não há espaço nem tempo para se respirar e mergulhar em séries críticas de nosso passado. Estamos, pois, diante de dois flagelos: Bolsonaro e coronavírus. É necessário, a rigor, vencer ambos antes de se formular um novo projeto de país fundamentado em bases mais sólidas.
A conversa com Lula avança e, ante as digressões deste redator insone, faz-se necessário relatar a seguinte observação: Lula está com as cordas vocais em seu melhor estado dos últimos 30 anos – e isso se deve à sua noiva, Rosângela da Silva, a Janja.
Depois de sua libertação, Lula voltou a discursar e a participar intensamente de reuniões, o que levou novamente sua voz a um estado crítico. O trabalho de Janja foi disciplinar e conduzir uma série de cuidados com a voz de seu companheiro, com inalações diárias e exercícios fonoaudiológicos (Lula pega um canudo e sopra – sem esconder o orgulho de sua disciplina – para mostrar a que é submetido sob a supervisão de Janja).
O ex-presidente também colocou um delicado micro-aparelho auditivo que lhe restituiu à experiência plena de audição – processo que também causou impacto real em sua ‘escuta política’. Em resumo, com o monitoramento da própria fala devidamente equalizado e somado aos exercícios vocais, Lula passou a controlar melhor os volumes e intensidades de sua projeção vocal, o que lhe dá, neste momento, uma performance vocal única e de rara qualidade.
Não custa lembrar da importância que a voz física de Lula representa para sua representação política, em amplo espectro semiótico. Lula costuma lembrar que, quando teve câncer, ficou apreensivo com a possibilidade de ‘perder’ a voz – o que comprometeria muito sua atividade política.
A conversa prossegue, já de maneira mais descontraída, e Lula propicia a este interlocutor um momento de rara alegria. Ele comenta sobre as ‘certezas’ das pessoas e de sua ideia de um dia colocar em uma mesa redonda todas essas pessoas plenas de certezas para ver ‘o que acontece’.
A crítica ao sentido de prepotência que resvala concretamente no dia a dia do debate público é leve, mas contra-especular: Lula continua fazendo menção à música de Raul Seixas para se definir a si mesmo: uma metamorfose ambulante.
O verso que ele não diz, no entanto, talvez seja o que melhor o define: ‘do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo’. Esse é e continua sendo Lula, um político que rechaça a ideia de se ter uma opinião formada sobre tudo o tempo todo. Vem daí sua capacidade de escuta e sua dimensão de estadista que governa para todos e não apenas para um pequeno grupo ou segmento social.
Enquanto Janja prepara uma abobrinha refogada para o almoço, Lula ainda fala sobre a inépcia do governo em fazer chegar o benefício de 600 reais ao trabalhador que ficar sem salário na quarentena, sobre seu sonho de fazer uma reforma em seu sítio Los Fubangos, às margens da represa Billings, e sobre o volume de informação propagado pela internet que gera uma espécie de paralisia no julgamento das pessoas.
Para Lula, é preciso filtrar a informação de maneira a lidar apenas com aquilo que o cérebro humano é capaz de processar.
Lula evitou falar de Bolsonaro. Queria falar de coisas boas e de perspectivas. Sua preocupação central foi e continua sendo a reumanização do país, a possibilidade de se colocar em pauta valores que atentem para a dignidade humana em toda a sua inteireza, com prioridade urgente para nosso desafio sanitário sem precedentes.
Sua liderança política tende a se fortalecer ainda mais com sua performance no cenário digital.
Esse dado talvez seja um dos corolários alvissareiros da pandemia que mal se iniciou no país: só mesmo uma quarentena para motivar a esquerda a povoar a internet sem a mecanicidade tacanha dos usuários da extrema direita. Ou seja: agora, a esquerda tende a se debruçar de uma vez por todas e com toda a sua estrutura retórica e técnica nas plataformas que, por ora, estavam habitadas com superficialidades e generalizações.
Em outras palavras ainda: talvez tenha chegado a hora de a esquerda levar sua complexidade constitutiva às redes, sem subestimar a inteligência do usuário que, por sua vez, pode ser alçado a uma posição menos passiva e menos rasa no cenário do debate público.
A chegada de Lula nessa rede muda completamente as possibilidades de a esquerda recobrar um discurso mais coeso e dinâmico.
Em pouco tempo, ele já fez o Twitter trepidar (com sua menção a João Doria) e empurrou as milícias bolsonaristas para uma posição menos coesa – até porque a pandemia já desmobiliza em parte o exército digital bolsonarista que vem produzindo uma sensação artificial de base social para o governo.
Lula nas redes é notícia boa para a democracia e para o usuário das plataformas, saturado pela falta de conteúdo qualificado e humanístico na moenda política progressista do país.
Lula vem para abalar as estruturas mais uma vez. É incansável, obstinado, forte e, quando investido de tanta energia e esperança, costuma ter sorte.
Ele continua deixando a impressão recorrente de um homem iluminado, que não se deixa abalar por nada e que se orgulha de sua gratidão por tudo o que já conquistou.
Quando ele diz que é preciso ‘reumanizar a humanidade’, tomado pela conhecida teimosia herdada de sua mãe, Dona Lindu, faz arrepiar a nossa percepção de mundo, porque sabemos: ele vai conseguir.
Lula representa, afinal, essa força social e ética incomensurável, um político que rompeu as barreiras da política tradicional e soube manifestar amor genuíno por seu povo em toda a sua experiência como presidente da República.
O brasileiro neste momento, padece por mais este sentimento de falta, a falta de um governante que transpirava amor pelo seu país e que cuidaria como ninguém para preservar a vida de todos nessa crise catastrófica do coronavírus.
Teremos de vencer mais essa batalha, a batalha da saudade de quando éramos uma democracia e de quando tínhamos um governo soberano e responsável.
Texto de Gustavo Conde
Ilustração de Carvall
* Entrevista concedida a Gustavo Conde por videoconferência no dia 6 de abril de 2020.
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