Uma das ideias é como a das fake news: inserir, na sua montagem, por nossas células, peças falsas.
Os vírus parasitam todos os outros seres vivos da Terra nos seus três blocos, chamados de domínios da vida: o dos eucariotes, seres multicelulares, onde estamos nós, outros animais, fungos e plantas; o das bactérias; e o chamado de arquea, de seres que sobrevivem em condições excepcionais, como as altíssimas temperaturas encontradas em regiões muito fundas do mar.
Existe uma taxonomia, uma espécie de catálogo, de vírus: 6.828 são as espécies batizadas e cerca de 250 delas tem o ser humano como hospedeiro favorito. Os vírus já registrados seriam apenas uma amostra do mundo dos vírus. Recentemente, um virologista americano fez uma viagem de circunavegação pelo mundo à caça de vírus: teria coletado 15 mil novas espécies.
Da família de coronavírus que infectam outros animais, sete teriam migrado para nossa espécie. Os três últimos foram causadores de síndromes respiratórias: o atual, o SARS-CoV-2; outro, também identificado primeiramente na China, o SARS-CoV; e o MERS-CoV (de midle east respiratory sindrome), de 2012. Os outros quatro seriam causadores de resfriados comuns. Eurico Arruda, professor titular de Virologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em entrevista publicada por O Globo no último dia 29, citou esses quatro tipos, localizados em amígdalas de 25 de 139 crianças saudáveis que tiveram esse órgão extraído por outras razões: HKU1, OC43, NL63 e 229E. Todos esses sete tipos de coronavírus seriam típicos de animais e teriam migrado para a espécie humana, alguns há muito tempo, a partir de bois, alpacas, camelos e morcegos, dizem os pesquisadores.
O conhecimento sobre o agente que desencadeia a covid-19 ainda é relativamente precário (ver “O que se sabe do coronavírus”) e, em todo o mundo, cientistas trabalham para mudar essa situação. Mas há também aqueles que tentam desenvolver armas para enfrentar futuras cepas de coronavírus. A revista semanal americana The New Yorker, numa de suas últimas edições, publicou reportagem com o título “The quest for a pandemic pill”, algo como “A busca por uma pílula para a pandemia”, construída a partir de uma longa viagem do jornalista Matthew Hutson por laboratórios nos EUA, entrevistando pesquisadores com o objetivo de saber se era possível se antecipar à próxima versão dos coronavírus, produzindo medicamentos de amplo espectro, para tratar os infectados pelas versões conhecidas do coronavírus, mas capazes também de derrotar as novas, com base nos conhecimentos gerais já obtidos sobre a família da qual seriam herdeiros.
Hutson começou sua série de entrevistas com um dos nomes mais famosos da luta pelos antivirais, David Ho, um chinês de 67 anos, nascido em Taiwan, que chegou com 12 aos EUA e, em 1996, foi apresentado como “O homem do ano” pelo semanário americano Time, por seu trabalho como líder da equipe que criou o famoso coquetel de medicamentos que reduziu enormemente a capacidade de replicação do vírus da Aids – acquired immunodeficiency syndrome, em português a síndrome da deficiência imunológica adquirida.
Há também tem várias outras credenciais: foi consultor do governo chinês para a epidemia do SARS-CoV de 2002; passou a investigar a família do coronavírus a partir de então; e, amigo do bilionário Jack Ma, dono da Alibaba, a gigante chinesa de compras online, recebeu para o grupo do qual faz parte atualmente, na Universidade de Colúmbia, 2,1 milhões de dólares para pesquisa de medicamentos antivirais causadores de doenças.
Hutson resume as ideias de Ho para o porquê da busca por um medicamento antiviral de amplo espectro contra um provável sucessor do SARS-CoV-2: já ocorreram três epidemias de coronavírus em duas décadas. A ciência não pode ficar correndo atrás. A indústria farmacêutica tem inúmeros medicamentos de amplo espectro contra bactérias, fungos, protozoários e outros seres transmissores de doenças. Contra vírus, não. De um modo geral para infecções virais, existe um medicamento para cada doença. E o coronavírus é uma boa escolha para pesquisa, parece ser um dos piores inimigos. Primeiro, é um vírus de RNA, que se reproduz mais rapidamente do que os de DNA, pode ser transmitido mesmo por pessoas infectadas que ainda não tenham sintomas. E, pior ainda, não se transmite apenas por insetos ou fluídos corporais como sangue, urina e fezes, que podem ser bem contidos por cuidados domésticos especiais e medidas gerais de saneamento ambiental. Uma gotícula ejetada da boca de uma pessoa infectada, que seja aspirada por uma pessoa próxima ou carregada de outra forma até uma pessoa mais distante, um certo tempo depois, pode produzir a covid-19, daí a pandemia.
Através de Ho, Hutson chegou a um colaborador dele, Alejandro Chaves, também da Universidade de Columbia, especialista em biologia celular e dedicado à pesquisa de um tipo de proteína essencial à reprodução dos vírus no corpo humano, que funciona como uma tesoura na oficina de montagem de proteínas das células, a protease.
Todas as células têm estruturas chamadas de ribossomos. São elas que recebem (ver “O que se sabe do coronavírus”) o RNA mensageiro, a fita que o RNA copia do DNA, com o trecho das instruções genéticas para a célula se reproduzir. A produção da célula é em série, tanto a produção normal, respondendo ao pedido do corpo hospedeiro, como a decorrente da ordem dada pelo RNA do vírus: ela sai em uma fita com uma proteína colada atrás da outra, como a impressão de um jornal a partir de uma bobina de papel – sai uma folha impressa atrás de outra, para que, depois, se corte e monte um por um dos periódicos. A “tesoura” que corta a fita e separa uma proteína da outra é a enzima protease. Tanto a célula normal tem sua protease, como o vírus também tem uma enzima do tipo. O trabalho de Chaves é testar medicamentos que detonem a protease do vírus e não causem dano às proteases das células do corpo humano. Ele faz isso a partir de catálogos com centenas de medicamentos produzidos pela indústria farmacêutica americana na sua área de interesse e os testa em placas com três centenas de microbacias, onde dispõe células limpas e infectadas.
Depois de Chaves, Hutson chegou a Mark Denison, diretor na área de doenças infecciosas da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee. Da tesoura, ele foi para a cola: assim como os vírus precisam da protease, que corta, precisam também da polimerase, outra proteína, que cola os pedaços. Como se sabe, as longas moléculas de DNA e de RNA são formadas por pedaços, moléculas menores, os nucleotídeos. E um jeito de fazer a polimerase não funcionar é introduzir na sua montagem nucleotídeos análogos – moléculas parecidas, mas falsas. As células humanas têm mecanismos para corrigir defeitos como esses. As pesquisas de Denison, que estuda a polimerase e nucleotídeos análogos há mais de 30 anos, diz Hutson, mostram que o coronavírus parece ser o mais competente entre os vírus, no sentido de corrigir defeitos de montagem. Mas pode ser enganado. Desde 2014, Denison trabalha numa pesquisa apoiada pelo NIH (National Institutes of Health), órgão do governo americano de financiamento a pesquisas de saúde, e, junto com o virologista Ralph Baric, desenvolveu o que chama, em inglês, de um nucleoside batizado de NHC, uma espécie de nucleotídeo análogo, que se infiltra numa cadeia de RNA em formação, mas em vez de paralisar o crescimento da cadeia, introduz uma modificação nas próximas cópias. Esses nucleosideos, na forma de pilulas, alimentaram ratos e se mostraram efetivos no combate ao coronavírus. Mas, explica Hutson, ainda não foram testados clinicamente em humanos.
A última parada do jornalista é uma entrevista com Shirit Einav, uma virologista de Stanford que defende um ataque ao coronavírus por outro ângulo: com medicamentos para alterar o ambiente no corpo humano onde se hospedaria o vírus, para torná-lo mais hostil ao invasor. Independentemente do vírus invasor, o ambiente no qual ele se desenvolve é o mesmo. O truque buscado por Shirit, diz Hutson, é achar a dosagem do medicamento que funcione contra o vírus sem causar dano sensível ao hospedeiro. Ela atualmente está pesquisando proteínas do corpo humano que são como que cooptadas para carregar vírus para dentro das células. Diz Hutson em seu artigo: “Alguns anos atrás ela identificou duas enzimas celulares humanas que facilitavam infecções virais e achou dois medicamentos que desativavam essas enzimas e reduziram as cargas virais da Ebola e da dengue”.
Hutson termina seu belo trabalho elogiando bilionários como Jack Ma e Bill e Melinda Gates, explicando porque a grande indústria farmacêutica não tem interesse em fazer uma vacina para uma doença viral que amanhã pode mudar de perfil e lamentando que o mundo esteja tão dividido e que um esforço de pesquisa conjunto das nações não esteja atualmente no horizonte.
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