O Brasil é um país de canalhas. Assim, Rubem Fonseca poderia ter começado um novo romance para personificar a fraude daquilo que se costuma chamar de país por hábito e preguiça.
O romance contaria a história de um ex-policial miliciano chamado Roberto Brasil que ‘saía matando preto na periferia só de farra’.
Sorridente e sem o incisivo lateral esquerdo, Brasil iria também matar médicos, consultores, dentistas, motoristas de uber e entregadores de iFood só porque ele podia – e porque ele era um democrata: se mato um, mato todos.
Aliás, o otário que lhe tirou o incisivo morreu com um tiro na testa logo depois da extração.
O escritor Marcelino Freire definiu bem a condição literária de Fonseca: ele não escreve sobre violência, mas sob violência.
A estrutura de seu texto remonta à secura narrativa de um B.O. – devidamente preenchida com a desumanidade básica de quem um dia se vê obrigado a ler um.
É um soco atrás do outro, sempre na boca do estômago.
A estética protocolar dos obituários impede que o adeus a Fonseca comece com as pieguices “uma parte do Brasil se foi” ou “Fonseca foi o maior gênio do nosso tempo”.
Um assassino de obituaristas viria a calhar no desfile trágico de seu mundo – não é um legado nem uma obra, é um mundo.
Um velho professor de literatura dizia: se quer conhecer os costumes de uma sociedade de fato, não leia os livros de sociologia, leia os romances. Se quer saber o que era a Inglaterra vitoriana, leia Oscar Wilde não Stuart Mill.
Se quer conhecer as vísceras do Brasil, não fique apenas em nossos mitos fundadores da sociologia (Sérgio Buarque, Caio Prado, Gilberto Freyre). Vá às profundezas de nossa alma com Nelson Rodrigues, Graciliano Ramos e Rubem Fonseca.
Se dessacralizados, tanto melhor.
A família de Moraes Moreira definiu com brevidade fonsequiana o protocolo de luto em tempos epidêmicos: ‘se quer homenagear o cantor, ouça suas músicas’.
Faço destas as minhas palavras sobre o autor de ‘O Matador’: o que nos resta é ler os seus livros, todos.
Em tempos de quarentena, de governo assassino e de país em dissolução final, é o melhor a fazer.
Texto: Gustavo Conde
Ilustração: Carvall
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