por Ronan no Brasil de Fato
Na manhã do dia 18 de setembro de 2013, um trem de carga da MRS descarrilou em Franco da Rocha (SP) e atingiu um trem de passageiros da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que vinha no sentido inverso. O trem com bauxita ia sentido Jundiaí, cidade com muitas indústrias, e o trem de passageiros no sentido São Paulo. Foram 16 feridos, muito pânico, e aumento do desgaste que é o transporte entre a casa e o trabalho. Dentre os feridos, uma mulher sofreu fratura exposta e uma criança de 3 anos teve a cabeça machucada.
O caso foi tratado como mero acidente pela mídia e foi muito pouco problematizado pelos setores dos quais se esperaria uma postura de maior crítica ao governo Alckmin, responsável pela gestão dos trilhos.
Criado na cidade, desde cedo vi os trens e os trilhos fazerem parte da paisagem de humilhação social imposta aos sobreviventes do lugar. Franco da Rocha não tem universidade, não tem FATEC, não tem shopping, não tem rodoviária, não tem terminal urbano, não tem posto para doação de sangue, não tem parque, não tem teatro, não tem cinema, não tem centro cultural e não tem biblioteca pública. Na verdade, Franco da Rocha não existe. Faz parte daquele imenso buraco sem investimentos públicos que fica entre a Lapa e Jundiaí. Um buraco onde vivem não se sabe quantos milhões de trabalhadores e trabalhadoras precarizados que labutam em São Paulo e outras cidades.
Ainda, Franco da Rocha possui a maior população carcerária do estado, tem baixos índices educacionais, alta taxa de homicídios, muitos botecos, igrejas evangélicas e todo o restante cenário de precariedade que envolve conflitos, num quadro de esgotamento mental e social.
Quando o trem de carga da MRS descarrilou, invadiu a linha contrária, trouxe pânico e vitimou 16 pessoas. O que houve não foi um acidente, foi um fato correspondente ao quadro de precariedade do lugar e consequência direta das opções do governo paulista e dos administradores da CPTM e da MRS.
Em primeiro lugar, essa não é a primeira batida. Os casos saíram de zero ao patamar de constantes. Em dezembro de 2012, uma batida deixou 29 feridos em Francisco Morato. Em 30 de julho de 2013, houve descarrilamento de trem em Pirituba. Houve também 49 feridos no metrô em 16 de maio de 2012 e descarrilamento em agosto de 2013. De forma que a população já começa a recordar do acidente em Perus, em 2000, onde morreram 9 pessoas e ficaram 124 feridas.
Em segundo lugar, o tráfego de cargas é indicado somente para a madrugada, quando não há passageiros na linha. Apesar disso, faz tempo que a MRS, com sinal verde do governo paulista, tem transportado cargas de todo tipo durante o dia. Fui testemunha ocular de cargueiros circulando nos horários em que as linhas estão lotadas, tanto no matutino quanto no período noturno. Há tempos, a população reclama disso, porque os cargueiros atrasam o transporte de passageiros. Para quem já gasta 2 horas para ir e 2 horas para voltar do trabalho, ter um cargueiro na frente não é nada animador.
Em terceiro, conforme relatam os vários maquinistas, toda a linha está sucateada. Há muitos pontos que alagam e se perde a visibilidade dos trilhos, o sistema de sinalização é mais que ultrapassado, os trilhos e dormentes estão sucateados, os trens postos a circular na região são os piores (trens série 1100, de 1956, e série 1700, de 1987). Além disso, relatam que há problemas estruturais numa linha construída no século 19 para pouco transporte e que hoje é usada intensivamente. Problemas de curva, de declínio, de desgaste, de visibilidade. Em alguns trechos, os maquinistas são orientados a trafegar em baixíssima velocidade por conta dos riscos.
Para não faltar mais nada, justamente no pedaço onde ocorreu o descarrilamento, encontram-se duas estações ferroviárias “em construção”. A de Francisco Morato nem pode ser chamada de estação ferroviária. Em reconstrução e com obra parada, o que existe hoje é um galpão com telha brasilit improvisado sobre ferragens. Já a nova estação de Franco da Rocha encontra-se em construção desde 2009.
A batida entre os trens ocorreu num local que é tradicionalmente negligenciado pelo poder público estadual, para onde são enviados os piores trens, onde temos um quadro geral de sucateamento, a população é tratada de forma bruta pela CPTM, há obras que não saem do papel, problemas crônicos e de forma alguma poderiam circular trens cargueiros ao lado do transporte de pessoas.
A propósito, em outubro de 2009 publiquei um texto onde relatava que as mudanças operadas na sequência da assunção dos trens urbanos pela CPTM tinham como objetivo principal o lucro e o controle sobre as pessoas e basicamente nenhuma preocupação com os passageiros. Algo bastante evidente na ausência de bebedouros e banheiros ao lado da multiplicação de seguranças e câmeras de vigilância. Como não podia deixar de ser, essa situação gera revoltas populares e também no dia 18 e 19 ocorreram tumultos e revoltas pela linha. Num caso, os trabalhadores se negaram a descer do trem na estação Aurora, pois não aguentavam mais esperar, peitaram seguranças e obrigaram o trem a prosseguir. Em outros, ensaiaram quebrar e atear fogo aos trens, sem prosseguirem no intuito.
Tudo isso é sabido, tudo é de conhecimento do governador, da MRS e da CPTM. O que há é uma opção deliberada em colocar a vida das pessoas em risco. Da parte do governador e da mídia coube seguir a estratégia de isolar o ocorrido e tratar como acidente o que é resultado de um quadro amplo de descaso e sucateamento, quando houve uma opção racional em beneficiar a MRS. Sem uma instância popular que paute a CPTM, que a pressione, fiscalize e coloque as prioridades e os problemas centrais dos trabalhadores, o que reina é o cinismo dos administradores.
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