Para que serve a tortura?
Por Urariano Mota, no Direto da Redação
Nesta quinta-feira, Contardo Calligaris na Folha de São Paulo deu à sua coluna o mesmo título desta agora. Diz ele:
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os ‘interrogatórios’ brutais do agente Jack Bauer, na série “24 Horas”, funcionam. E, de fato, como lembra ‘A Hora Mais Escura’, de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa -se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade”.
Antes de mais nada, vale ressaltar que há muito o cinema norte-americano naturaliza a tortura, a injustiça, a exclusão. Desde Hollywood ele tem sido sentinela avançado do modo capitalista, na propaganda dos valores da formação do homem norte-americano. De passagem, lembro um filme de Ford (sim, do grande Ford) em que John Wayne ouve a seguinte frase do empregado do hotel: “você e o cachorro sobem, mas o índio não”. O que dizer de 007, por exemplo, em sua cruzada contra os comunistas? O que falar dos mexicanos e índios, sempre pintados como bandidos desde a nossa infância? O que dizer da ausência de interioridade nos personagens negros que apareciam em seus filmes, sempre em posição subalterna ou de pianista para o amor do casal romântico?
O fundamental é que no fim do texto Calligaris conclui:
“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”.
Esse é um recurso de justificativa da tortura é manjado. Seria algo como:
- Você é capaz de matar uma criança?
- Não, claro que não.
- E se a criança fosse uma terrorista?
- Crianças não são terroristas.
- E se ela estivesse domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?
- Ainda assim, de modo algum eu a veria como uma terrorista.
- E se essa criança trouxesse o corpo cheio de bombas?
- Eu preferiria morrer a matá-la.
- E se essa criança, com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?
- Não sei.
- E se nessa creche estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?
- Neste caso…
E neste caso estariam justificados os fuzilamentos de meninos que atiram pedras em tanques de Israel. E neste caso, num desenvolvimento natural, estaria justificado até o assassinato dos que lutam contra a opressão, porque mais cedo ou mais tarde se tornarão terroristas. E para que não vejam nisto um exagero, citamos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights Watch: `Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio. O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a tortura em um suspeito de terrorismo, e logo estará aplicando-a em um vizinho dele` “.
É monstruoso, é um atestado absoluto do desprezo pela pessoa, que na mídia se discuta hoje não a moralidade da tortura, mas a sua eficiência. Esse deslocamento de humanidade – que sai da moral para descer no mais útil - é sintomático de que não basta mais ser brutais em segredo, na privacidade, escondido. Não. Há de se proclamar que princípios fundamentais da barbárie sejam fundamentos de cidadania. Assim como os defensores da ditadura têm a petulância de vir a público dizer que apenas se matavam terroristas, portanto, nada de mais; assim como o cão hidrófobo que leva o nome de Bolsonaro – e nesse particular, ele é da mesma raça e doença dos fascistas em geral – zomba sobre os cadáveres de socialistas, agora nas tevês, no cinema, passam à justificação moral da tortura.
Perigo à vista. Nós, os humanistas, temos adotado até aqui uma atitude passiva, ordeira, o que é um claro suicídio. Esse ar de bons-moços que andam pela violência como Cristo sobre as águas, além de suicídio, porque nos afundaremos todos, é, antes do desastre, um recolhimento da ética para os fundos que defecam.
Entendam. Longe está este colunista da valentia e poderosas forças. Mas nós que não sabemos atirar balas ou socos, temos que agir com as armas que a dura vida nos ensinou: escrevendo. E como temos sido omissos.
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