por Flávio Aguiar na Rede Brasil Atual
Normalmente, “fazer a omelete sem quebrar os ovos” refere-se a uma tarefa impossível. Mas agora é disso exatamente que se trata, neste caso da espionagem por parte dos serviços secretos norte-americanos sobre a presidenta Dilma e a Petrobras, além de, provavelmente, “otras cositas más”.
Depois das fúrias de praxe, diante da espionagem em si e das falsas explicações posteriores por parte do governo norte-americano, tentando garantir o “ingarantível”, isto é, que não houvera espionagem sobre indústria, comércio e afins, o governo brasileiro passou a agir com cautela. Condicionou a ida da presidenta Dilma a Washington no final de outubro às explicações esperadas por parte do governo e do presidente Obama (mensagem dura). Mas adicionou que a decisão só seria tomada depois das tais de explicações (suavizada na dureza).
E as explicações eram esperadas para quarta-feira.
Mas acontece que tudo isto está acontecendo literalmente à margem de uma volatilização poucas vezes vista na diplomacia mundial, com voltas, contravoltas e reviravoltas disparadas a toda hora em torno da questão Síria.
O curioso é que esta volatilização e elevação da temperatura diplomática se dá não por causa da guerra, mas por causa da possibilidade da paz. Paz? Em termos. “Paz” hoje significa o não bombardeio das posições militares do governo de Damasco pelos mísseis dos destroyers norte-americanos a postos no Mediterrâneo. Além disso, “paz” significa apenas uma nesga de azul num céu plúmbeo.
Mas sem dúvida esta nesga foi aberta, porque, se não houver o bombardeio, e se o governo sírio de fato colocar suas armas químicas sob supervisão internacional para destruição, haverá uma chance para a paz, o que poderá até, no limite, envolver a saída de Bashar Al-Assad do poder.
Então por que o charivari? Qual a razão de tanta tensão?
Porque as alternativas hoje em curso puseram a Rússia e Vladimir Putin no centro do tabuleiro, e no papel de guardiães da tal dita paz vislumbrada.
É claro que a solução proposta (na verdade encampada) por Putin tirou e ao mesmo tempo colocou o governo de Obama em xeque. Tirou: a situação de Obama estava mal parada internamente nos Estados Unidos, onde ele provavelmente perderia a votação no Congresso sobre a possibilidade do ataque militar, mesmo com promessas de ele seria “limitado” (até em “mínimo” se falou). Colocou: Obama pôs-se na posição de rei no tabuleiro, e jogou para proteger por trás da proposta de Putin, mas soberano no tabuleiro quem ficou mesmo foi este último.
Putin aproveitou a mensagem dita na segunda-feira pelo Secretário de Estado John Kerry, em tom de descrença, de que a única solução fora da guerra envolveria o controle das armas, “mas que não acreditava que o governo sírio fosse capaz disto”. Pois Putin acreditou. Duas horas depois daquela declaração, ainda no avião em que voltava para Washington, Kerry recebeu um telefonema do ministro de Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, colocando a proposta, a sério, em cima da mesa, e já adiantando que tinha uma concordância prévia do ministro de Relações Exteriores de Damasco, que estava em Moscou.
Resultado: nesta quinta-feira, Kerry está de volta a Genebra, para conversações com Lavrov sobre a dita proposta. E o mundo inteiro aguarda, com a respiração suspensa. Inclusive os falcões entre os rebeldes sírios que, apoiados pelos sauditas, queriam os bombardeios sim.
Acontece que no Ocidente, com exceção talvez de Obama, ninguém aprecia este novo protagonismo russo. Putin sempre foi caracterizado como um tirano, e sem máscaras. Putin era o carrasco das “Pussygirls” (meu Deus, que nome!) de Moscou. Agora, em menos de três meses, Putin aparece como o campeão dos direitos humanos (caso Snowden) e da cultura da diplomacia (caso Síria). Há gente na mídia ocidental que está “espumando”.
Ao mesmo tempo crescem as denúncias e contra-denúncias sobre quem, de fato, utilizou ou deu a ordem para o uso de armas químicas na periferia da Damasco. Batem-se dois tipos de argumentos: um baseado no fato de que quem detém o gás é o governo sírio; outro, baseado na velha pergunta “cui prodest”, isto é, “quem lucra”, ou “a quem interessa”, o que aponta para os rebeldes, ou alguma infiltração sua em Damasco.
É no meio deste fogaréu internacional que Brasil e Estados Unidos estão tentando fazer a sua omelete, e sem que ela desande nem quebre os ovos das relações diplomáticas entre os dois países. Tudo começou, assim, na quarta-feira, com uma reunião entre a Conselheira de Assuntos de Segurança Nacional do governo norte-americano, Susan Rice, e o novo Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Luiz Alberto Figueiredo. A conselheira “reconheceu” a pertinência das “preocupações” brasileiras com a espionagem, ao mesmo tempo em que denunciou “exageros” por parte da imprensa.
O movimento pode ser descrito, retornando às imagens enxadrísticas, como uma “defesa siciliana”, aquela com que as pretas tentam neutralizar a saída mais agressiva das brancas (peão da quarta do rei) com uma aparente tergiversação lateral (peão na quarta do bispo da dama). A saída tende a deslocar o equilíbrio do jogo para o lado contrário àquele em que as brancas tomaram a iniciativa etc. etc.
Foi o que a Conselheira mais ou menos fez. Numa posição aparentemente defensiva, reconhecendo a preocupação do “oponente”, prepara uma ofensiva posterior, “indo ao encontro” (isto é, a favor), e não “de encontro” (isto é, contra) desta dita preocupação, propondo alguma solução e pondo “the burden”, isto é, o peso da decisão, sobre os ombros deste último.
O objetivo deste verdadeiro rondó diplomático, enquanto a batalha ruge ao lado, é chegar a um tipo de empate técnico, em que nem o Brasil se sinta desrespeitado (embora tenha sido) nem os Estados Unidos sejam humilhados (embora estejam numa posição humilhante, aquela do menino pego com o pote quebrado e a mão lambuzada de mel).
A ver, enquanto, como dito antes, a batalha ruge ao lado.
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