“A política inaugurada na Era Vargas invertia o papel social dos pobres nas cidades brasileiras. Antes combatidos como caso de polícia eles foram incorporados como atores estratégicos do processo de industrialização.”
por Nilce Aravecchia Botas*
Grande parte das análises produzidas sobre a Era Vargas, mesmo aquelas provenientes do meio acadêmico, deram prioridade ao caráter autoritário e centralizador da liderança de Getúlio. Ao priorizar a figura do líder, desconsideraram o processo e seus múltiplos agentes. A pesquisa que resultou na coleção “Pioneiros da Habitação Social no Brasil”, que sai agora publicada em três volumes pela Editora da Unesp e Edições Senac, pautou-se numa construção mais complexa da história.
A obra traz a maior amostra já reunida da primeira produção pública de habitação social no país, e soma um esforço de relacionar o campo da cultura, mais precisamente da arquitetura e do urbanismo, com as dinâmicas econômicas. Trata-se do resultado de um amplo trabalho coletivo de investigação que, sob a coordenação do professor, arquiteto e urbanista Nabil Bonduki (inicialmente no Instituto de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos e posteriormente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, ambos da USP), vem sendo desenvolvido há 17 anos.
A pesquisa identificou mais de 500 conjuntos habitacionais construídos no Brasil entre 1930 e 1964, e catalogou mais da metade, construindo uma extensa base empírica. Formou-se assim o panorama da ação, que distribuída em 22 unidades da federação, representou o início da intervenção do Estado no setor da moradia.
A política inaugurada na Era Vargas invertia o papel social dos pobres nas cidades brasileiras. Antes combatidos como caso de polícia eles foram incorporados como atores estratégicos do processo de industrialização. Assim, suas moradias deixavam de ser simples alvo de ações higienistas convertendo-se em problema social.
O Estado, ao assumir seu papel como agente preferencial do processo de modernização de uma sociedade ainda bastante oligárquica, regida pelos interesses de elites agrárias, necessitava construir nova base política. Nessa perspectiva, a produção e o financiamento de moradias, a regulamentação do mercado de aluguel e a expansão da infraestrutura urbana, foram iniciativas articuladas para facilitar o acesso à moradia. A construção de conjuntos habitacionais ficou a cargo dos institutos de previdência e da Fundação da Casa Popular.
Diante do que era a real capacidade de investimento do Estado, que priorizou a industrialização, a iniciativa não logrou alcançar a universalização do acesso à habitação, produzindo cerca de 150 mil moradias num país que viu sua população urbana aumentar em 6 milhões de pessoas durante as décadas de 1940 e 1950. Entretanto, seus resultados, mesmo que dispersos, imprimiram no território nacional um sentido de modernização e permitiram incorporar o trabalho de engenheiros e de arquitetos que promoveram importantes pesquisas tecnológicas no setor da construção.
Mas além da intervenção física no território os conjuntos habitacionais alcançaram um significado simbólico, conformando uma espécie de núcleo duro do pacto trabalhista. A ação, portanto, era parte de uma estratégia política. Acreditava-se que somente uma ampla base política poderia sustentar a unificação do Estado, até então dilacerado por interesses regionais. Assim, a inauguração de muitos conjuntos operários contou com a participação do próprio Getúlio Vargas. Alguns produziram significativo impacto urbano, inovando por suas formas arquitetônicas modernas e pelo caráter exemplar das intervenções, que incluíam equipamentos de lazer, comércio local, creche, escola e serviços assistenciais, com grande diversidade de soluções espaciais.
Estudando mais acuradamente o papel dos atores envolvidos no processo, (administradores, engenheiros e arquitetos) pudemos atestar sua ativa participação nas decisões políticas, em meio ao campo de disputas que caracterizou a implantação da previdência social, e demais órgãos do aparato administrativo criado na Era Vargas. O pacto forjado entre setores intelectuais, um segmento médio urbano que se consolidava, e as classes trabalhadoras que começavam a ganhar status de massa, deu origem às transformações que pretendiam colocar o país de vez na ordem capitalista, e realizar aqui o “bem-estar social” à brasileira. Entender essa dinâmica a partir da produção dos conjuntos habitacionais e do significado de sua inserção nas principais cidades do país, nos ajudou a superar as interpretações mais vulgares baseadas no conceito de “populismo”, que costumam caracterizar muitas das análises do período.
Por fim, para nós pesquisadores foi importante construir a história e também refletir sobre seus significados para o tempo presente. Os moradores mais jovens desses conjuntos habitacionais talvez não tenham hoje a exata noção do que esses lugares representaram para um momento crucial de nossa história. Já os mais antigos foram nossos aliados na pesquisa e nos despiram de certos preconceitos acadêmicos.
Trouxeram à memória os encontros sociais, os antigos carnavais e as festividades entre vizinhos, que conformam o imaginário, as lembranças e a identidade coletiva da população que ali reside. Mas mais do que isso, eles sabem de seu papel histórico na construção do país. Os fatos relatados e as fotos exibidas compõem não só o acervo da pesquisa, mas o mosaico das relações sociais construídas ao longo de três gerações.
A pesquisa “Pioneiros da Habitação Social no Brasil” localiza as primeiras iniciativas públicas na história da habitação brasileira, mas também cumpre outro papel, talvez mais importante. O de auxiliar na tarefa de contar para as novas gerações a história de um Brasil fundado na ação ativa do Estado, que apesar das investidas recorrentes para condená-lo ao desaparecimento, teima em existir.
Coleção “Os pioneiros da habitação social no Brasil” (Em 3 volumes).
Ficha técnica
Coordenação: Nabil Bonduki
Coordenação adjunta: Ana Paula Koury
Editora da Unesp e SESCSP
Lançamento oficial com a presença dos autores:
Dia 02 de outubro de 2014, a partir das 17h.
Local: FAU Pós-Graduação
Rua Maranhão, 88
Mais informações: www.habitacaosocial.com
* Nilce Aravecchia Botas é arquiteta e urbanista, professora da FAU USP, e uma das principais pesquisadoras do grupo Pioneiros da Habitação Social no Brasil.
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