por Luciano Martins Costa, do Observatório da Imprensa
Interessante observar como os jornais começam a questionar o papel da polícia, na análise das manifestações que acontecem no Rio de Janeiro, durante a visita do papa Francisco e ainda no rastro dos protestos contra o alto custo dos transportes públicos.
A estrutura verticalizada das redações dificulta o estabelecimento de uma empatia entre a mídia e movimentos que alteram a ordem social, pelo simples fato de que a imprensa parte sempre de um pressuposto de manutenção da ordem estabelecida, até se tornar claro que uma ordem perversa precisa ser alterada. E algo parece ter mudado na percepção dos jornais sobre alguns episódios violentos ocorridos na segunda-feira (22) no Rio de Janeiro.
Não há um mal em si na posição conservadora da mídia tradicional, porque algumas instituições simplesmente não podem deixar de ser conservadoras. Esse talvez seja o principal ponto de convergência entre a imprensa e a igreja católica, e o motivo pelo qual a visita do papa ganha destaque correspondente ao de uma Copa do Mundo.
No caso dos protestos no Rio, a escolha dos jornais tem sido a de repetir o bordão segundo o qual todos têm o direito de protestar, mas não se pode tolerar os atos de vandalismo e a violência. No entanto, eles não vinham demonstrando interesse em avançar na identificação dos autores de ataques e depredações.
Nas edições de quarta-feira (24/7), observa-se pela primeira vez que a imprensa deixa o lugar comum para constatar que a violência pode ter origem e conclusão num lado só do confronto: a própria polícia. O Globo e a Folha de S.Paulo dão crédito às imagens que mostram um dos homens que iniciaram o conflito, atirando um coquetel molotov contra a tropa de choque, correndo depois em direção à própria barreira policial e sendo autorizado a passar. Sob o título “Suspeita de fogo amigo”, o jornal carioca reproduz os passos do homem que lançou o primeiro petardo contra a polícia e depois é identificado como um agente policial infiltrado na manifestação.
As imagens foram postadas na internet por ativistas e membros do grupo chamado de Mídia Ninja,mas a Folha de S.Paulo relata que um de seus repórteres testemunhou o momento em que um dos agentes trocou de lado, sendo identificado como integrante do serviço reservado da Polícia Militar.
Insanidade à solta
Os jornais também dão destaque à anunciada decisão do governador do Rio, Sérgio Cabral, que publicou decreto exigindo que empresas de telefonia e provedores de internet forneçam informações sobre as comunicações pessoais de participantes dos protestos, sem autorização judicial. Especialistas consultados pela imprensa são unânimes em afirmar que a medida é inconstitucional, o que não impediu os conselheiros do governador de recomendá-la.
Trata-se, evidentemente, de uma proposta bizarra, que, se for levada a efeito, pode justificar até mesmo um processo de cassação do governador. No entanto, não parece ter passado pela cabeça dos especialistas reunidos na comissão de notáveis, criada para analisar a onda de protestos, que tal iniciativa corresponde à quebra de um dos princípios básicos da ordem democrática.
Caso viesse a ser cumprido, o decreto autorizaria a polícia a vasculhar até mesmo as comunicações de jornalistas e advogados, uma vez que não se pode diferenciar os interlocutores até que se conheça o teor das conversações.
Agora, pondere o leitor ou a leitora: se os responsáveis pelo gabinete de crise do governo do Rio são capazes de imaginar tal aberração, o que impediria o comando da Polícia Militar de infiltrar provocadores no meio dos manifestantes, com a missão de incitar a violência para depois identificar os ativistas mais agressivos?
Não teria sido a primeira vez que a obsessão pela ordem colocaria em risco a própria ordem. Além disso, nenhum governo merece a confiança cega da sociedade, e muito menos um governo que vive sitiado por manifestações ininterruptas de protesto.
A circunstância em que se encontra o governo do Rio autoriza a imaginar o inimaginável, como um decreto que tenta quebrar o direito à inviolabilidade das comunicações, ou a adoção do “fogo amigo”, segundo observa o Globo, como forma de justificar a violência da polícia.
Ainda que o contexto fosse outro, o dos estertores de uma ditadura, não custa lembrar que na noite de 30 de abril de 1981, agentes das forças de repressão planejaram o atentado durante um show de música popular no Rio, com apoio de altas patentes militares, fato que só não resultou em uma vasta tragédia por uma conjunção quase milagrosa de fatores.
A mentalidade militarista ainda domina a formação das nossas polícias, em plena democracia, e a insanidade anda à solta por aí. O fantasma do Riocentro ainda não foi devidamente exorcizado.
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