Por Ricardo Gebrim, dirigente da Consulta Popular e
coordenador do Plebiscito pela Constituinte do Sistema Político
A construção de uma candidatura presidencial é sempre um problema para a classe dominante, por mais restrita que sejam nossa democracias. Em primeiro lugar, porque as verdadeiras intenções programáticas nunca podem ser reveladas, exigindo um esforço artístico para camuflá-las. Porém, o problema maior é sempre a escolha de um candidato.
Uma simples pesquisa na internet em edições antigas dos principais jornais brasileiros mostra que praticamente todos os analistas políticos previam que o vitorioso nas primeiras eleições diretas presidenciais seria Ulisses Guimarães, do PMDB.
Em janeiro de 1989, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) financiou uma pesquisa denominada “Projeto Leader” com o objetivo de “traçar o perfil de um candidato à Presidência da República que representasse os anseios da sociedade” e “entre os nomes que estavam sendo cogitados, qual deles correspondida à expectativa dos eleitores”.
Construção de um candidato
O resultado acendeu a luz amarela. As conclusões são bem interessantes: “O clima geral favorece um candidato com retórica populista, capaz de identificar-se com os problemas populares; o candidato deveria ser sensível ás questões relativas à justiça social. O candidato não poderia ser velho, caracterizar-se como um político tradicional nem deve estar associado à Nova República. O candidato deveria ser jovem, ter ideias novas, identificar-se com o futuro, com soluções inovadoras. O eleitor buscará uma personalidade honesta e que demonstre ser competente. Estará em alta o comportamento ético, prevalecendo traços moralistas ”.
Definitivamente, não poderia ser Ulisses Guimarães… Em fevereiro de 1989, as pesquisas mostravam Collor com apenas 2% das intenções de votos. O elemento da “virada política” ocorre em março, quando as pesquisas mostram Lula com 15% e Brizola com 17%. Começou o pânico.
O PT havia aprovado seu programa democrático popular em 1987, com medidas como a estatização do setor financeiro e da grande mídia, reforma agrária e diversos outros itens de mudanças estruturais. A ideia de um segundo turno entre Lula e Brizola aterrorizou o “andar de cima”.
Era preciso construir uma solução. Tão rápido quanto a mudança de posição política nas manifestações de junho de 2013, a grande mídia operou unitariamente a construção de um novo produto que atendesse o anseio das pesquisas. Publicitários qualificados construíram em poucas semanas o “fenômeno Collor”, “Jovem Caçador de Marajás”.
Foi uma jogada de risco. Eleger como Presidente da República um jovem playboy, de família tradicional, cuja carreira havia sido construída com as benesses da ditadura… Um grande desafio para testar a eficácia dos poderosos meios de comunicação.
Não era algo novo em nossa história. A postura pragmática de investir num candidato temerário, sem um histórico claro de serviços prestados à classe dominante, mas com viabilidade eleitoral já havia sido testada na eleição de Jânio Quadros em 1960, com a então maior votação de nossa história. Dessa lembrança fica o ensinamento sobre a capacidade dos aparatos dominantes em construir, num curto período, uma imagem política que se enquadre na moldura das pesquisas de opinião.
É com esta classe dominante, bem aparelhada de mecanismos de propaganda de massa e hegemônica no Congresso Nacional, que estamos lidando. Com ela, toda a capacidade e experiência conspirativa dos aparatos que implementam a política externa dos EUA. Somente os muito ingênuos ou perdidos politicamente podem achar que os EUA não moverão peças em nossas eleições ou tratariam a campanha presidencial com uma disputa inter-burguesa indiferente.
Quadro geral
Mas isso é apenas recordação histórica para aprendermos com o modo de ação do inimigo. O que realmente importa é o cenário no qual ocorrem nossas eleições gerais. Os dados recentes divulgados pelo IBGE sugerem um quadro de recessão econômica. Mesmo os analistas mais otimistas, que contam com as possibilidades geradas pelo pré-sal e a nova fase de obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) são extremamente cautelosos em relação aos próximos anos.
A combinação de quadro recessivo na economia com eleições é sempre perigosa. Mais três fatores se somam a esse cenário:
1-O primeiro é a manutenção de um sistema político que favoreceu a ampliação desproporcional de todos os setores burgueses no Congresso Nacional, gerando uma correlação de forças na esfera parlamentar, que desequilibra a chamada frente neodesenvolvimentista (aliança política não formalizada entre setores da burguesia nacional e a classe trabalhadora organizada).
2-O segundo foi a ausência de uma perspectiva de organização de massas ao longo dos governos petistas de Lula e Dilma, gerando uma juventude proletária que – -mesmo se beneficiando desse período, não se reconhece no governo – exige legítimos avanços e pode ser disputada pela direita. O resultado é que hoje temos uma juventude beneficiada por programas de ensino como o ProUni que nem mesmo apoia outros programas como o Bolsa Família ou o Mais Médicos e vice versa.
3-O terceiro é a perda da classe média tradicional (ou classe média alta, segundo algumas classificações). Tais setores médios sentiram-se os menos beneficiados pela gestão petista e alimentam uma crescente insatisfação difusa. Os grandes meios de comunicação são muito eficazes na alimentação do rancor desse setor social. Não será fácil desenvolver medidas que recuperem tais parcelas a curto e médio prazo.
A direita sente a possibilidade de ganhar. O potencial despertado com as manifestações de junho de 2013 não foi apropriado por nenhuma força política. Todas tentaram e nenhuma demonstrou poder de convocação.
Algumas das correntes que buscam conformar uma “oposição de esquerda” apostaram que insatisfações durante a Copa do Mundo cumpririam esse papel e apostaram todas as fichas neste caminho. Frustradas, mais uma vez sequer se preocuparam com uma análise autocrítica, deixando para o dia em que ocorrerem a velha frase: “nós já dizíamos…”
De qualquer forma, persiste a sensação geral de que a produção de um conjunto de circunstâncias não previsíveis poderá levar às ruas os que se mobilizaram em 2013, tanto pela auto-estima produzida em razão da vitória do rebaixamento das tarifas e da sensação de força social, quanto pela continuidade e até agravamento das contradições que impulsionaram as mobilizações. Quando e em torno de qual fagulha, suscitam apenas conjecturas.
Desgaste do governo
É nesse contexto, conformado principalmente por esses três fatores expostos, que iniciamos a “corrida eleitoral” de 2014. Era nítido o desgaste do governo Dilma e as potencialidades de uma oposição desde o início da atual campanha.
A mídia tratou de ampliar as más notícias da economia, alimentando um clima pessimista. Entretanto, como repetiram inúmeros analistas, faltava um nome que empolgasse a oposição. Afinal, Aécio Neves e Eduardo Campos não conseguiam cumprir esse papel. Esse era o grande problema. Condições permitindo ganhar e ausência de um candidato.
Sem insinuar qualquer teoria conspiratória e repetindo o infeliz trocadilho, a solução “caiu do céu”, com a possibilidade da candidatura Marina Silva. Coincidências à parte, entrou em campo uma candidatura que tem origem no leito histórico petista, com uma imagem que gera a identidade popular, apta a abraçar toda a ambiguidade programática necessária na conformação de uma frente oposicionista.
A imagem de alguém que “passou fome na infância”, esteve com Lula e o PT é um fator decisivo na construção de uma candidatura viável. Somente esse perfil assegura a confiança de que o Bolsa Família e todos os demais programas não serão suprimidos, atenuando o principal problema de um candidato oposicionista na disputa da base social do governo.
Evidente que não será tão simples para os publicitários construtores do novo “produto”. De um lado, desmontar as bases em torno de Aécio Neves e o PSDB, que não aceitarão docilmente serem tirados do jogo. Do outro, lidar com um povo que guarda em sua memória coletiva os episódios de Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello.
Teremos um intenso embate eleitoral. Após tantos anos a militância será convocada para decidir uma disputa que promete ser muito dura. As próximas semanas serão decisivas. O experiente diplomata Samuel Pinheiro Guimarães já expressou sua opinião de que os EUA apoiarão Marina.
Se tais forças ganharem, enfrentaremos um quadro terrível para todas as forças progressistas e anti-neoliberais de nosso continente, além das péssimas e previsíveis consequências geopolíticas. Portanto, o momento não admite nenhuma vacilação. Mágoas, rancores, principismos, por mais legítimos que sejam devem ser secundarizados ante a presença do embate com o inimigo. Que o bom senso prevaleça em todas as correntes de esquerda ante um provável segundo turno.
Perspectivas
Ganhar eleições muito disputadas exige superar o desafio de conquistar a legitimidade que emerge fraturada após o pleito. Ainda que vitoriosa, Dilma terá um arsenal limitado para alterar um cenário econômico que vai se desenhando desfavorável.
Provavelmente, a composição do Congresso Nacional tampouco será um terreno de avanços, caso não apresente retrocessos. A conjugação desses dois fatores ampliará a pressão dos setores burgueses, exigindo pautas de supressão ou redução de direitos. Soma-se uma classe média alta rancorosa se sentindo derrotada e uma juventude, mesmo a proletária, exigindo legítimas mudanças. Se acrescentarmos a poderosa mídia, atuando como partido político, ávida em construir factoides e denúncias explosivas, teremos um quadro bem difícil, ainda que se concretize a melhor hipótese, Dilma ganhar as eleições.
Na terrível possibilidade de perder, enfrentaremos um governo que tudo fará para desmontar as lideranças e estrutura que as forças de esquerda construíram e acumularam nos últimos anos. Provavelmente, disputará as parcelas beneficiadas por programas sociais que nunca foram organizadas na última década.
Esse é o cenário do esgotamento da frente neodesenvolvimentista, que embora represente a única conjunção de forças capaz de deter o neoliberalismo, vai enfrentando condições que cada vez mais impedem que se avance.
A vitória ou a derrota de Dilma determinará situações muito distintas nos próximos anos, mas, o elemento comum é o esgotamento daquilo que didaticamente temos chamado de frente neodesenvolvimentista e sua possibilidade de seguir sem a força própria da classe trabalhadora organizada e seus aliados.
Força social para avançar
O erro histórico de não ter proporcionado organização social a partir da experiência administrativa do governo não será superado a curto prazo. A força social que pode cumprir esse papel são os atuais setores organizados do movimento sindical e popular, com todos os seus limites, em conjunto com as massas desorganizadas que deram uma pequena mostra nas mobilizações de junho de 2013. Este é o casamento necessário, fundamental, sem o qual não haverá nenhum avanço.
Situações como essa exigem a ousadia e coragem dos indivíduos na história, porém, para além dessas qualidades, será preciso uma resposta no campo da política. O que exige mobilizar a força social existente.
Assim, diante desse verdadeiro cerco será necessário a ousadia para rompê-lo. Somente a força social dos setores organizados dos movimentos sociais e sindicais, somados à juventude que esteve nas ruas em junho de 2013, especialmente da classe trabalhadora, terá essa possibilidade. Construir a unidade entre os que saíram às ruas em junho com os que organizaram o 11 de julho é a maior tarefa tática que se coloca para as forças populares. Um cerco só é rompido quando temos a ousadia da ofensiva.
Para romper o cerco
Na luta política, o elo fraco do cerco que foi se conformando é o sistema político. Herança da ditadura militar, nosso sistema não tem prestígio e legitimidade popular. Falando sobre a Assembleia Nacional Constituinte, em março de 1987, Florestan Fernandes alertava:
“Esta situação é muito favorável às classes dominantes e á prepotência dos demais poderes (O Executivo, o Judiciário e o Militar). A Constituição nascente mantém-se presa à ordem existente e corresponde ao que é esperado de um parlamento bem-comportado. Poder-se-ia dizer: a Constituição é uma colagem. Onde os mortos não governam os vivos, os vivos imitam o legado de várias constituições “clássicas” ou modernas”.
Consolidando a derrota das Diretas Já, perdemos a Assembleia Nacional Constituinte produzindo um sistema político que se afigura como o maior entrave às mudanças sociais. Sem romper esse entrave, ainda que consigamos vitórias nas eleições presidenciais, como a partir de 2002, vamos assistir o contínuo cerco se fechando, diante do esgotamento de nossas possibilidades limitadas.
A oportunidade surgiu com as manifestações de junho de 2013. As mobilizações traziam com força a insatisfação com a representação política em todos os níveis. As pesquisas de opinião apenas confirmaram o que já era perceptível em milhares de pequenos cartazes: “Eles não nos representam”.
Em seu gesto político mais ousado, a presidenta Dilma formulou a proposta de um plebiscito oficial para uma Constituinte Exclusiva do Sistema Político. Recuou após 16 horas, atacada por aliados e fulminada por inimigos. Por sua vez, a maioria das lideranças de esquerda assistiu boquiaberta o gesto ousado, reagindo letargicamente e se conformando diante do recuo.
Neste momento, um conjunto de forças políticas e movimentos sociais compreendeu o que estava em jogo, transformando a ferramenta plebiscito que o Congresso Nacional recusou-se a fazer numa formidável ferramenta pedagógica.
Assim, abrimos as condições para construir uma campanha de massas por uma Constituinte do Sistema Político. Uma conquista que exigirá mobilizações sociais maiores do que as produzidas na década de 80 em torno das Diretas Já.
Antes do Plebiscito Popular, uma afirmativa dessas era apenas um sonho. Hoje, transforma-se em possibilidade. Temos centenas, talvez milhares de militantes e ativistas, na sua maioria jovens, que compreendem a importância dessa campanha.
Os debates e a coleta de votos envolveram o que há de melhor no movimento sindical. Mesmo sem atingir a meta dos 10 milhões do Plebiscito sobre Alca, tivemos o envolvimento de comissões de fábrica e das parcelas mais vivas e menos burocratizadas da luta sindical. Quem teve a oportunidade de dedicar-se a essa luta sabe seu potencial politizador.
Para isso, é fundamental a manutenção e ampliação da frente política que construiu o Plebiscito Popular. Manter o funcionamento unitário dos comitês que se multiplicaram pelo Brasil, desenvolver um trabalho conjunto de formação e um calendário nacional de lutas são os nossos maiores desafios.
Conseguimos montar a base sobre a qual se erguerá a campanha da Constituinte. Temos a possibilidade de pautar esse tema no Congresso Nacional, exigindo o plebiscito oficial. Dessa luta emergirá o novo ciclo da esquerda brasileira. Nela acumularemos forças avançando na organização social e na consciência de massas.
Não sabemos a dimensão dos desafios e problemas que nos esperam nos próximos meses, mas podemos construir a alternativa que mais nos interessa. Pautamos o tema da Constituinte e pautaremos a luta por ela.
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