por Luiz Cláudio Cunha no Sul 21
Passaram-se 49 anos, quase meio século, para o Brasil ver o inesperado, o impensável. Não uma, mas duas vezes. No curto intervalo de 75 dias, o País que hostiliza a memória teve de se voltar para o passado e resgatar personagens e verdades históricas, revolvendo fatos e circunstâncias que uniram durante muito tempo duas forças poderosas na implantação e essenciais na sustentação da ditadura: as Forças Armadas e as Organizações Globo.
Na manhã cinzenta de uma histórica quinta-feira, 14 de novembro de 2013, no hangar da Base Aérea de Brasília, dez cadetes do Exército, Marinha e Aeronáutica carregaram com visível esforço a pesada urna funerária que continha os restos mortais do presidente João Goulart (1919-1976), exumado de seu túmulo em São Borja (RS) para uma perícia internacional que poderá elucidar dúvidas sobre sua morte. O esquife foi recebido com reverência de chefe de Estado, guarda de honra, hino, salva de tiros de canhão e um forte clima de emoção dominava os 160 convidados da família Goulart e da presidenta Dilma Rousseff, que ali estava com parte de seu Ministério. Entre as autoridades, os três comandantes das Forças Armadas, que prestaram continências tardias ao homem que derrubaram do poder em 1964, marco de uma ruptura institucional que golpeou a democracia e martirizou a nação pela violência e pelo arbítrio.
Goulart, popularizado como Jango, resume uma acelerada história de sucesso que a força militar abortou pelo peso esmagador das armas. Aos 26 anos, Jango era apenas um jovem e rico fazendeiro na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Aos 28, estreou na política como deputado estadual. Aos 31, tornou-se deputado federal. Com 34 anos, foi nomeado ministro do Trabalho por Getúlio Vargas, seu padrinho político. Aos 36, elegeu-se vice-presidente com mais votos do que o presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Aos 41, reelegeu-se vice, pela chapa de oposição ao presidente eleito Jânio Quadros. Aos 42 anos, pela crise inesperada da renúncia do titular, viu-se ungido presidente da República, 16 anos mais jovem do que Lula ao chegar ao Planalto em 2003. Aos 45, foi deposto e exilado. Aos 57, morreu no exílio argentino e só então pode regressar à sua terra natal. Teria 94 anos, agora, se não tivesse retornado a Brasília reduzido aos restos de um punhado de ossos ainda atravessados na consciência nacional. A volta de Jango à sede do poder, do qual foi apeado militarmente há meio século, foi o primeiro fato inesperado que remexeu com a memória dos brasileiros. O segundo fato, ainda mais imprevisível, ocorreu dois meses e meio antes.
Na edição nobre de um domingo, 1o de setembro de 2013, o jornal O Globo, carro-chefe das Organizações Globo, abriu duas páginas para um histórico mea culpa, reconhecendo em editorial um refrão das ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. O editorialista cravou que, “à luz da História, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais que decorreram desse desacerto original”.
Fã de auditório
Não cabe discutir se o gesto da Globo envolve puro marketing, medo velado das manifestações, mero oportunismo político ou um genuíno arrependimento. O que importa é o inédito, amadurecido, eloquente reconhecimento de um memorável, irremediável erro pelo mais poderoso grupo de comunicação do País, que tem as digitais marcadas na sobrevida de 21 anos do mais longo período autoritário do Brasil. O jornal fez dura oposição ao governo Goulart e já em 1965, no ano seguinte à sua deposição, inaugurou a rede de televisão que se forjou e se consolidou à sombra do regime militar que a Rede Globo apoiou com o fervor de fã de auditório.
Nasce daí uma pergunta inevitável: e o mea culpa dos generais? Veremos algum dia um general fazendo um contrito mea culpa?
A simbiose entre a rede e os militares (“A Globo e você, tudo a ver”, diz o bordão da emissora) nasceu nas entranhas do regime de 1964, invadiu a consciência das multidões das Diretas Já da década de 1980 e acabou no remoído editorial do jornal da casa de 2013, em uma inusitada espiral midiática que começa com uma adesão entusiasmada, meio século atrás, e termina agora com um envergonhado mea culpa.
Existe, porém, uma verdade ainda mais dura que faz a diferença entre a Globo e as Forças Armadas. Os militares, de fato, foram muito além: eles desencadearam, criaram, organizaram, moldaram, radicalizaram e sustentaram a ditadura que a Globo apoiou. Teriam, assim, razões mais sérias para um mea culpa ainda mais sentido perante a Nação que violentaram durante duas décadas, quebrando a Constituição e instalando um regime de arbítrio que impôs a censura, sufocou as liberdades, criminalizou a política, cassou, perseguiu, prendeu, torturou, exilou, desapareceu ou matou dissidentes, insurgentes e inocentes, impondo o terror de Estado na mais longeva ditadura da história do País. Haja culpa para expiar!
A Globo, é justo reconhecer, fez isso agora de forma escancarada, pública, através de seu jornal e de sua rede, exposta ao julgamento de uma audiência que ela cativa como ninguém, na condição de um império global de 122 emissoras próprias ou afiliadas que cobrem 5.482 municípios onde vivem 99,5% dos 200 milhões de brasileiros. Não é pouca coisa para quem foi, durante tanto tempo, o braço civil e o mais conspícuo suporte da ditadura de 1964. Já o braço militar, que impôs a ferro e fogo o regime de força, dá sinais de que experimenta o mesmo desconforto, mas não demonstra a mesma coragem para expiar seus erros, muito menos disposição para assumir suas responsabilidades perante a História.
Apesar das aparências e do recato da disciplina, os comandantes militares estão cada vez mais inquietos. Enquadrados pela democracia há 28 anos, subordinados há 11 anos por três governos sucessivos de uma legenda que abriga antigos insurretos da luta armada, comandados há três anos pelo Palácio do Planalto, hoje ocupado por uma ex-guerrilheira que foi presa política e torturada, os generais se mostram cada vez mais desconfortáveis com uma discussão incômoda, dolorosa, mas necessária: as Forças Armadas, sua culpa na ditadura e sua responsabilidade pela tortura e morte de quem a enfrentou. Uma discussão que se alastra e ganha corpo com o advento em 2012 da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que já se espraia em outras cem comissões e subcomissões país afora.
Prazo para acabar
O clamor por verdade e justiça, graças a essa rede em expansão que tanto incomoda os militares, hoje se estende por 16 Estados, mais de 15 universidades (de notórias como USP, UFRJ e UnB a escolas menos conhecidas no Recôncavo Baiano, Campina Grande ou Blumenau), entidades como CUT, UNE, OAB, CONTAG e Ministério Público, 20 sindicatos de jornalistas, entidades de magistrados e petroleiros, associações de historiadores, comunidades indígenas e cerca de uma dúzia de cidades – grandes (São Paulo, Rio de Janeiro), médias (Campinas, Niterói, Bauru) ou pequenas (Divinópolis, Araras, Macaé), entre outras.
Um detalhe pouco notado pelo País paisano, mas percebido pelos generais mais argutos, é que a CNV tem prazo para acabar (maio de 2014), talvez ganhando uma prorrogação de seis meses. Mas o resto veio para ficar. As comissões nascidas à sombra da CNV não têm prazo para concluir seus trabalhos. A capilaridade desse movimento contraria os interesses das Forças Armadas, que acusam de revanchistas quaisquer tentativas de remexer as águas paradas desse poço de escuridão.
Nada tranquiliza os generais, nem a voz de sua comandante em chefe, a presidenta da República. Em duas solenidades no Palácio do Planalto, diante dos quatro chefes militares – os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e o chefe do Estado-Maior Conjunto –, Dilma Rousseff enfatizou que a busca pela verdade não implicava qualquer tipo de vingança. “A palavra verdade não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem o perdão. É o contrário de esquecimento. Memória é história”, ensinou ela, em 16 de maio de 2012, ao instalar a Comissão Nacional da Verdade. Sete meses antes, em 18 de novembro de 2011, ao sancionar a lei que criava a CNV, Dilma definiu o sentido daquele momento: “Sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio”.
Hostilidade fardada
A mão pesada dos militares manchou a cerimônia, pouco antes de seu início, com o veto inesperado dos comandantes ao discurso que seria feito por Vera Paiva, filha do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado sob tortura em 1971 no DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro. O mal-estar explícito dos militares ficou eternizado, via Embratel, nas imagens da cerimônia gravadas por 44 minutos pelo canal estatal, a TV NBR. Os comandantes estão sentados na segunda fila, perfilados, sérios, calados. Quando o locutor anuncia a assinatura de Dilma na lei que cria a CNV, aos 27’37″ de gravação, todos os presentes se levantam para aplaudir. A câmera de TV, que filma por trás, mostra certa hesitação de nove segundos dos comandantes, que se entreolham discretamente enquanto toda a plateia à volta se coloca em pé, repetindo Dilma no palco e os quatro ministros que a acompanham.
Permanecer sentado, naquelas circunstâncias, seria mais do que má educação – seria uma grave insubordinação. Assim, aos 27’46″, os quatro comandantes se levantam, lentamente, mas com os braços para baixo. Não aplaudem, não reagem. Permanecem estáticos até que as palmas cessam e todos voltam a sentar, aos 28’20″. Durante 43 longos segundos, os quatros oficiais-generais destoaram do clima de emoção que pairava no ar, mantendo-se álgidos e indiferentes. Quem não viu na TV pode conferir a hostilidade fardada na internet, graças ao blog “Bastidores do Poder”, do jornalista Josias de Souza, abrigado no site da Folha Online. No preciso flagrante do repórter-fotográfico Alan Marques, aparecem 11 pessoas batendo palmas, e apenas quatro com as mãos sobre o colo, imóveis, contidos na contrariedade sincronizada que exalam. Eles mesmos, os comandantes das Forças Armadas do Brasil.
O drama de um País que ainda se debate com o trauma de um passado mal resolvido pode ser medido entre seis homens – os dois trios que comandam as duas corporações, hoje circunstancialmente apartadas, que representam as duas caras da ditadura que um dia definiram e que juntas defenderam, com a irmandade de parceiros e aliados.
De um lado, a face risonha do trio global, os irmãos Marinho, filhos do patriarca Roberto Marinho (1904-2003), que herdaram junto com o império de comunicação da Globo a penosa fama de ser o mais importante sustentáculo civil do regime autoritário. De outro lado, a face sisuda, cada vez mais tensa do trio das Forças Armadas, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que suportam o fardo da instituição armada que, fiel a seu lema de hoje, foi o “braço forte, a mão amiga” da ditadura.
Nada ilustra melhor a intimidade entre as duas forças, a global e a fardada, do que a foto emblemática de João Figueiredo, o último dos cinco generais-presidentes do ciclo autoritário, de braços dados com o “doutor” Roberto, conforme o tratamento reverencial dispensado por paisanos ou generais ao comandante em chefe da Globo.
Existem bons motivos para que Roberto Irineu Marinho, o irmão mais velho e presidente das Organizações Globo, e os dois vice-presidentes mais jovens, João Roberto e José Roberto Marinho, estejam sorridentes. E há fortes razões para que o general Enzo Martins Peri, o almirante Júlio Soares de Moura Neto e o brigadeiro Juniti Saito, comandantes das Forças Armadas, se mostrem carrancudos. O trio global tem sonantes motivos para fazer seu estrondoso mea culpa. O trio fardado tem razões memoráveis para manter sufocado o mea culpa que sonegam ao povo brasileiro que lhes paga os soldos. Os números e os fatos explicam melhor essa crucial diferença.
Os sorrisos globais exibem a exuberante prosperidade que moldou o sucesso da Rede Globo sob a treva frondosa do regime autoritário. Em agosto passado, a revista Forbes apresentou a lista dos raríssimos abonados que acumularam no país pelo menos R$ 1 bilhão em 2013, um privilégio extraordinário para apenas 124 brasileiros, na multidão de 200 milhões de habitantes, onde a renda média mensal de quem trabalha alcança irrisórios R$ 1.507, segundo o IBGE de 2012. Nessa conta, um brasileiro médio levaria 55 mil anos para alcançar o seu primeiro bilhão, ou seja, precisaria ser um dos primeiros seres humanos das Américas, no final do Pleistoceno, quando o planeta vivia a era geológica das glaciações e o homem dividia o ambiente hostil com mamutes e tigres-dentes-de-sabre.
Tudo por dinheiro
Na espécie sempre preservada da centena de bilionários de coloração verde-amarela, o sobrenome mais rico é o da família Marinho, que acumula uma fortuna de quase R$ 52 bilhões, irmãmente distribuídos assim: Roberto Irineu com R$ 17, 28 bi, João Roberto mais modesto com R$ 17,26 bi e o mais pobre, José Roberto, com apenas R$ 17,10 bi. Neste caso, a paleontologia precisaria ser medida em uma escala milionária de tempo. Um pedreiro ganha hoje aproximadamente dois salários mínimos, a renda média do IBGE. Ele precisaria trabalhar duro, mês a mês, desde o Paleolítico, a Idade da Pedra Lascada, quando surgiu a primeira ferramenta pré-humana, para vencer os 2.875.470 anos necessários para juntar os R$ 52 bilhões que os Marinhos acumularam em fugazes 48 anos, desde o advento da primeira TV Globo, em 1965.
Convertida para o dólar, a fortuna lascada de US$ 24 bilhões dos Marinho deixa seus competidores do setor de TV comendo pedra. O televangelista da prosperidade e bispo Edir Macedo, profeta da bíblica Rede Record, a segunda maior cadeia do país, tem uma riqueza avaliada em somente US$ 1,1 bilhão, um pouco menos abonado do que o homem que topa tudo por dinheiro, Silvio Santos, dono do SBT e um império de módicos US$ 1,3 bilhão. Os Marinho não temem paralelo nem com a família de Giancarlo Civita, dona de uma fortuna de apenas US$ 3,4 bilhões e herdeira da Abril, o maior grupo editorial da América Latina, que edita 54 títulos, 188 milhões de exemplares e sete das dez revistas mais vendidas do País – entre elas, Veja (tiragem: 1,2 milhão), a segunda maior revista semanal de informação do mundo, atrás apenas da americana Time (tiragem: 3,2 milhões).
O Portal iG acaba de fazer uma radiografia de quem manda no País, com o ranking dos “60 mais poderosos do Brasil”. O terceiro da lista é Roberto Irineu Marinho, que perde apenas para dois nomes tecnicamente miseráveis perante sua fortuna: Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, o no 2. Os bilionários que ousam ter mais dinheiro que o chefe do clã Marinho carecem de algo que o iG destaca, com perfeição: “Todos reúnem riqueza, prestígio, poder, mas nenhum deles tem o condão de influenciar a opinião pública, induzir costumes e padrões de comportamento e moldar parte expressiva da cultura nacional (como Roberto Irineu)… Quantas outras corporações podem afirmar, com tanta certeza, que estão presentes em praticamente todos os lares brasileiros?”
A lista de abastados da Forbes levanta a intrigante hipótese de que os Marinhos representam mais do que um recorde brasileiro. Eles são provavelmente a família mais rica do mundo inteiro no trepidante reino da mídia. Para quem duvida, basta lembrar que os US$ 24 bilhões do trio global somam mais do que o dobro dos US$ 11,2 bilhões do magnata australiano Rupert Murdoch, monarca de um império planetário onde, como na dourada era da rainha Vitória (1819-1901), o Sol nunca se põe. Apesar da onipresença mundial, Murdoch vale, como fortuna pessoal, apenas meio Marinho.
Em receita publicitária, segundo o Top Thirty Global Media Owners, levantamento de 2011 do grupo ZenithOptimedia, a rede dos Marinho é o 17o maior grupo de mídia do mundo, com faturamento de US$ 4,7 bilhões (o líder, claro, é o Google, com US$ 37,9 bilhões, 49% da publicidade na internet de todo o planeta). Com esses números vistosos, é fácil entender o sorriso cativante que domina o trio que comanda a Rede Globo – e justifica, em parte, o mea culpa que a família adota, agora, para um aggiornamento exigido pelos tempos de transparência obrigatória e crescentes demandas de uma opinião pública pulverizada e excitada pelas redes sociais cada vez mais ativistas.
Com todo este presente, e ainda mais com todo aquele passado, não é difícil entender a carranca que domina o trio de comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Parecem assombrados por um passado que eles fingem desconhecer e reféns de uma absurda solidariedade corporativista para com os abusos de uma geração de camaradas da ditadura que devia ser segregada, não protegida, em nome da história e da dignidade das Forças Armadas da democracia.
Os dois trios comandam tropas diferenciadas, no tamanho e nos propósitos, mas sempre com poder de fogo respeitável. O exército das Organizações Globo mobiliza 24 mil pessoas, com um orçamento estimado no ano passado em mais de US$ 5,8 bilhões (a britânica BBC, a mais extensa rede mundial, tem 23 mil funcionários e um orçamento de US$ 8,1 bi). As Forças Armadas brasileiras somam, em seus três ramos, um efetivo de aproximadamente 330 mil homens na ativa, a maior força militar do continente, com um orçamento de US$ 33,1 bilhões, segundo o livro do ano de 2013 do respeitado Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Esse número garante ao Brasil o 11o lugar entre as 15 nações com maiores gastos militares em um mundo que torrou US$ 1,75 trilhão com Forças Armadas (os Estados Unidos, responsáveis sozinhos por 39% dessa despesa, investem US$ 682 bilhões para manter sua máquina de guerra).
Mesmo na democracia, que os colocou no devido lugar a partir de 1985, os militares brasileiros não podem reclamar. O Brasil da ex-guerrilheira Dilma gasta hoje 1,5% do PIB com o orçamento militar, mais do que os ricos Japão (1,0%), Canadá (1,3%) e Alemanha (1,4%). Ao longo da história, contudo, os militares saíram de uma posição meramente moderadora para um protagonismo mais incisivo. Nos 67 anos do Império brasileiro (1822-1889), não houve nenhuma intervenção militar contra o monarca. Nos 75 anos iniciais da República, entre 1889 e 1964, as Forças Armadas produziram quatro golpes de Estado. Dois modernizaram a Nação (1889, proclamando a República, e 1930, na revolução que derrubou a Velha República), um derrubou um regime autoritário (1945, com a queda do Estado Novo) e o último instituiu a mais longa ditadura (1964, com a queda de Goulart).
Resposta antecipada
No dia seguinte ao golpe, 2 de abril, lá estava O Globo do “doutor” Roberto Marinho saudando o pronunciamento militar: “Ressurge a Democracia!”, festejou em editorial. Em um trecho, tentava dar o amparo do Art. 176 da Constituição para o ato de força, definindo as Forças Armadas: “São instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI”. Assim mesmo, em maiúsculas de tom quase verde-oliva, para camuflar a violência e vender a ideia de que o fora da lei era o presidente Goulart. A filigrana dos “limites da lei” foi mantida na circular “reservada” que o chefe do Estado-Maior do Exército (EME), general Humberto Castelo Branco, mandou a todos os generais no dia 20 de março, 11 dias antes do golpe de 1964. Em tom insurrecional, aquele que seria dias depois o primeiro presidente do regime militar cometia ousadias políticas que excediam os “limites da lei” que um general disciplinado deveria defender: “A ambicionada constituinte é um objetivo revolucionário pela violência com o fechamento do atual Congresso e a instituição de uma ditadura… Pode-se perguntar: o povo brasileiro está pedindo ditadura militar ou civil e constituinte? Parece que ainda não”.
Apesar da resposta antecipada, e sem perguntar nada ao povo, ele assumiu em 31 de março o comando da ditadura militar que o povo brasileiro não pedia. A circular “reservada” do chefe do EME tinha 54 linhas e 645 palavras, bem mais alentada do que o discurso de Abraham Lincoln pronunciado em Gettysburg, em 19 de novembro de 1863, com enxutas 17 linhas e 271 palavras. O texto público do presidente americano era uma ode ao “governo do povo, pelo povo, para o povo”. A circular “reservada” do general brasileiro, não.
A conta da ditadura de 21 anos prova que ela atuou sem o povo, apesar do povo, contra o povo. Foram 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, cinco mil deles condenados, 1.792 dos quais por “crimes políticos” catalogados na Lei de Segurança Nacional; dez mil torturados nos porões do DOI-CODI; seis mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em dois mil casos; dez mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e manifestação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; três ministros do Supremo afastados; o Congresso Nacional fechado por três vezes; sete assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa, à cultura e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje.
São fatos da história, que a Globo hoje diz reconhecer como uma dura verdade, mas que os generais ainda insistem em ignorar. Fizeram tudo aquilo e fingem que nada fizeram ou nada têm a desculpar. Tanto que, no início de 2011, o jornal O Globo revelou ao País um espantoso documento enviado pelos chefes militares ao ministro da Defesa criticando a discussão em torno da futura Comissão da Verdade. Usavam a borracha do tempo para tentar apagar o passado: “Passaram-se quase 30 anos do fim do governo chamado militar…”, gaguejaram os três comandantes das Forças Armadas no texto, escancarando a patológica dificuldade dos generais para identificar o “chamado governo militar” por sua denominação mais correta e menos cínica – uma ditadura, nua e crua.
A voz mais trovejante na defesa dos quartéis é um general de pijama, Leônidas Pires Gonçalves, 92 anos, ministro do Exército do governo Sarney, que amplificou as críticas que seus companheiros da ativa não podem fazer a uma possível revisão da Lei da Anistia, que garante impunidade aos torturadores: “Se quiserem fazer pressão no Supremo Tribunal Federal, o Poder Moderador tem de entrar em atuação no País”, disse o general em tom de ameaça, em maio de 2012, à repórter Tânia Monteiro, de O Estado de S.Paulo. O pândego ex-ministro não fazia, aqui, uma menção nostálgica à bonomia dos monarcas da Casa de Bragança, que ocupou no Império brasileiro a posição de árbitro entre os poderes para dar estabilidade política à Nação, até o advento da República. Debochado, Leônidas não clamava pelo império da moderação, mas brandia a ameaça da república da repressão, que quebrou a ordem constitucional em 1964 e impôs a anarquia ilegal da ditadura imoderada que prendeu, torturou, matou e desapareceu com seus opositores mais radicais.
Vala comum do arbítrio
Em abril de 2010, Leônidas chegou às raias do atrevimento, numa polêmica entrevista a Geneton Moraes Neto, da GloboNews. Deu ali uma inusitada definição para sua profissão: “O soldado é um cidadão de uniforme para o exercício cívico da violência”. Sem explicar onde escavou esse raciocínio que nivela todos os exércitos pela vala comum do arbítrio, o general ignorou os exemplos na história de forças armadas que se mobilizaram pela preservação de valores perenes da democracia e da civilização.
Um exército, esqueceu Leônidas, pode ser a reunião de homens fardados que lutam pelo exercício da liberdade contra o nazifascismo, como ocorreu com a FEB na Segunda Guerra Mundial. Pode, também, ser a força armada que se levanta em defesa da Constituição pela posse de João Goulart na Presidência, como fez o III Exército em 1961 ao cerrar fileiras com o governador Leonel Brizola e o povo gaúcho na vitoriosa Campanha da Legalidade. A força militar pode igualmente se alçar pela afirmação da autoridade constitucional do presidente, como fez o marechal Henrique Lott para sufocar a quartelada golpista de 1955 que tentava bloquear a posse de Juscelino Kubitschek.
Tiro e chocolate
A crença de Leônidas na violência cívica ainda hoje o faz duvidar do assassinato do jornalista Vladimir Herzog sob torturas no DOI-CODI de São Paulo, em 1975: “Eu não tenho convicção de que Herzog tenha sido morto… Um homem não preparado e assustado faz qualquer coisa. Até se mata”, filosofou na entrevista a Geneton Moraes Neto. O general sabe discernir muito bem o civismo alternado que trafega nos porões da repressão: “Na hora de dar chocolate, não se dá tiro. E, na hora de dar tiro, não se dá chocolate”.
Durante quase três anos de uma fase turbulenta da ditadura, de abril de 1974 a fevereiro de 1977, Leônidas foi o chefe do Estado-Maior do I Exército, sediado no Rio de Janeiro. Como tal, era o comandante imediato do DOI-CODI baseado no quartel da Polícia do Exército na afamada rua Barão de Mesquita, um dos endereços mais sinistros da repressão no Brasil. Quando o quartel general do I Exército esteve sob o comando do general linha dura Sylvio Frota, entre julho de 1972 e março de 1974, conforme apurou O Globo, o DOI-CODI carioca era um centro de morte. Naquele espaço de 21 meses morreram 29 presos em suas masmorras, então sob a administração do notório major Adyr Fiuza de Castro. Pois bastou que ele chegasse ali em abril de 1974, disse Leônidas, e a paz dos anjos se instalou naquele antro de terror. “Não houve tortura na minha área”, jurou o general na GloboNews.
Ao O Estado de S.Paulo, em 2012, em tom de desafio, o general exibiu as travas dos coturnos para se eximir: “Nunca apareceu nada, nem ninguém, que tivesse alegado ter sido torturado. Eu já desafiei que alguém se apresentasse na TV e nunca apareceu nada”. Não apareceu, talvez, porque os desaparecidos jamais reapareciam. De acordo com o Dossiê Ditadura – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985, publicado em 2009, a lista oficial de 138 desaparecidos políticos no País registrava 31 nomes que se evaporaram no Rio de Janeiro entre 1970 e 1978. Desses, seis desapareceram justamente nos anos de 1974 e 1975, quando o DOI-CODI do Rio estava sob o comando direto do general Leônidas. Integram a lista Armando Teixeira Frutuoso, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, Jayme Amorim Miranda, Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e Eduardo Collier Filho.
Em 1971, quatro anos antes de o general assumir o I Exército, sumiram outros dez militantes da lista de 31 desaparecidos do Rio, incluindo o deputado Rubens Paiva e Stuart Edgar Angel Jones, 26 anos, filho de Zuzu Angel. A estilista de renome nos Estados Unidos, passou os cinco anos seguintes denunciando ao mundo a responsabilidade direta da ditadura brasileira no desaparecimento de Jones, visto na base aérea do Galeão sob torturas aplicadas pelo CISA, o serviço secreto da Aeronáutica.
Incansável, Zuzu buscou a verdade até a madrugada em que o carro que dirigia sozinha, um Karmann Ghia, capotou no túnel Dois Irmãos e despencou na ladeira da Estrada da Gávea, matando-a na hora – um acidente forjado pelo DOI-CODI carioca, conforme denúncia do ex-delegado Cláudio Guerra no livro Memórias de uma Guerra Suja. Em 14 de abril de 1976, data da morte de Zuzu Angel, o DOI-CODI do I Exército estava sob a responsabilidade do general Leônidas. Uma semana antes do acidente, Zuzu deixara na casa do compositor Chico Buarque de Holanda um documento em que escreveu: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”.
Roubo de bebês
Nunca apareceram os assassinos de Zuzu, muito menos o cadáver de Jones. E o Brasil, sede da mais longa ditadura da região (com exceção do recordista Alfredo Stroessner, que aterrorizou o Paraguai entre 1954 e 1989), continua sendo uma fortaleza inexpugnável de impunidade para quem matou e torturou sob o manto do Estado autoritário de 1964. Até hoje, não existe um único militar brasileiro condenado ou responsabilizado por abusos ou crimes de lesa-humanidade. Bem diferente da vizinha Argentina, que teve uma ditadura mais expedita (1976-1983) e mais letal, com cerca de 30 mil vítimas, entre mortos e torturados, incluindo 500 bebês sequestrados pelos algozes entre as grávidas presas e desaparecidas. Lá, mais de dois mil agentes públicos – entre militares, policiais e civis envolvidos com o terrorismo de Estado – foram denunciados: 400 receberam sentenças, mais de 300 foram condenados. Entre eles, três generais-presidentes do ciclo militar.
Jorge Videla, que liderou o golpe contra Isabelita Perón em 1976, morreu na cadeia em maio passado, aos 87 anos, cumprindo uma pena de prisão perpétua e outros 50 anos por roubo de bebês. Leopoldo Galtieri morreu dez anos atrás em prisão domiciliar, aos 76 anos. Reynaldo Bignone, o último presidente da ditadura, hoje com 85 anos, foi condenado em março à prisão perpétua.
Videla, um ano antes de morrer, admitiu ao jornalista argentino Ceferino Reato ser o responsável pelas mortes e desaparecimentos forçados de sete mil a oito mil pessoas. Com uma franqueza que deve espantar as sonsas autoridades brasileiras, fardadas ou não, que sempre dizem que nada sabem, o general assumiu o pleno domínio dos fatos: “Eu sabia tudo o que estava acontecendo e autorizei tudo. Carrego um peso na alma, mas não estou arrependido de nada”.
Videla ganhou a pena de prisão perpétua pela morte comprovada de 31 pessoas. Nenhum general brasileiro, de farda ou de pijama, teve a coragem de um mea culpa assemelhado ao do general argentino ou sequer passou pelo constrangimento de um processo parecido. O exemplo mais próximo no Brasil é o de um coronel, Carlos Alberto Brilhante Ustra, que montou e comandou o mais sinistro centro de tortura do país: o DOI-CODI da rua Tutoia, subordinado ao II Exército, em São Paulo.
Ustra foi denunciado por ocultação de cadáver pelo Ministério Público e, segundo a Comissão Nacional da Verdade, 50 presos (19 a mais do que os mortos que levaram Videla à prisão perpétua) morreram na Tutoia sob a administração de Ustra, que ali reinou entre setembro de 1970 e janeiro de 1974. Nessa conta, ao longo desses 40 meses de terror, a taxa de mortalidade na Tutoia chegava a 1,2 preso por mês. Ao contrário do general argentino, contudo, o coronel brasileiro chutou para cima a responsabilidade do que fazia, acusando genericamente seus superiores, com o cuidado de não nominar ninguém.
“Eu era um agente do Estado, comandante de uma unidade militar dentro da cadeia de comando. Durante meu comando, nunca fui punido, nunca fui repreendido, recebi os melhores elogios da minha vida militar”, esbravejou Ustra, em maio passado, convocado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). “Quem tem de estar aqui é o Exército brasileiro, que assumiu por ordem do presidente da República a tarefa de combater o terrorismo.” Foi contestado pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, então um dos sete comissários da CNV, que ensinou ao coronel de 81 anos que ninguém pode cumprir ordens ilegais: “Está no nosso direito penal que só se desculpa uma pessoa quando a ordem que ela recebe e cumpre não é manifestamente ilegal. Ordem de torturar, de matar, de fazer desaparecer, isso é manifestamente ilegal”, explicou o ex-procurador.
A rua Tutoia e o coronel Ustra remetem a uma tragédia ainda maior: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A maior catástrofe do planeta envolveu 100 milhões de militares de 72 nações dos cinco continentes, matando 76 milhões de pessoas (as populações somadas de Argentina, Portugal, Chile e Grécia), 67% delas civis e mutilando quase 30 milhões. O acerto de contas ao final da guerra veio pela justiça: o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg gastou 285 dias de julgamento para ouvir 240 testemunhas e anotar 300 mil declarações, gerando um sumário de quatro bilhões de palavras. A acusação final de 25 mil páginas aos principais dirigentes nazistas condenou 12 à morte, três à prisão perpétua e outros três a penas entre 10 e 20 anos de cadeia. Três foram absolvidos.
A defesa dos nazistas alegou em Nuremberg o mesmo ponto levantado em Brasília pelo coronel da Gestapo brasileira: a “obediência devida a ordens superiores”. Nuremberg cravou para sempre, na consciência do mundo civilizado, a noção pioneira de que os fundamentos da pessoa humana estão acima das circunstâncias políticas e além das fronteiras nacionais.
Do general-presidente ao porteiro do DOI-CODI, passando pelo coronel Ustra, ninguém está obrigado a cumprir ordens imorais e inaceitáveis pela consciência – muito menos torturar, matar e forçar o desaparecimento. Nem o texto arbitrário do AI-5, o mais violento dos 17 atos institucionais que tentaram dar uma fachada de legalidade ao regime, concedia aos agentes públicos brasileiros a licença para matar, como a um James Bond, ou simplesmente torturar, como a um chefe do DOI-CODI.
O coronel Ustra, transformado em símbolo vivo do terror de Estado que caracterizou a face mais dura do regime a que ele serviu com a lealdade de um rottweiler, não pode se desculpar alegando sua condição de fiel “cumpridor de ordens do presidente da República”. Nem ele, nem o presidente, que na ditadura foi sempre um general de quatro estrelas, podem se eximir de suas responsabilidades. Se não for por razões de consciência, pode ser por mero cumprimento a uma lei que todo oficial tem o dever de cumprir: o Estatuto dos Militares, regulamentado justamente pelo governo Figueiredo. A lei no 6.880, aprovada pelo Congresso em 9 de dezembro de 1980, prevê no estatuto a Seção II do Capítulo I (“Das Obrigações Militares”) um item pouco conhecido da carreira: “Da Ética Militar”.
O inciso I do Art. 28 do Estatuto dos Militares, aprovado pelo último presidente da ditadura, estabelece o primeiro preceito da ética militar: “Amar a verdade e a responsabilidade como fundamento de dignidade pessoal”. O inciso III do Estatuto dos Militares determina: “Respeitar a dignidade da pessoa humana”. O general-presidente que assinou a lei em 1980 foi nomeado dez anos antes chefe do Gabinete Militar do general Garrastazu Médici, o comandante-supremo que, conforme o coronel Ustra, ordenou ao Exército “combater o terrorismo”. Quando Figueiredo era o principal assessor militar do Planalto de Médici, Ustra era o senhor da vida e da morte no centro de terror da rua Tutoia. Todos, portanto, tinham o domínio dos fatos.
Justiça de transição
A mentalidade dominante dos generais brasileiros, contudo, rechaça qualquer avaliação do passado recente, escorregando pelo raciocínio simplório e fácil do “revanchismo”. Eles ignoram, talvez por razões subalternas, o princípio jurídico internacional de accountability, a devida prestação de contas exigida pelas sociedades que trafegam da ditadura para a democracia. É a justiça de transição que, na definição do Conselho de Segurança da ONU, engloba mecanismos e estratégias, judiciais ou não, para avaliar o legado de violência do passado, atribuir responsabilidades, tornar eficaz o direito à memória e à verdade, fortalecer a democracia e garantir que não se repitam as atrocidades.
Estranhamente, os três comandantes das Forças Armadas brasileiras teimam em sufocar o passado, esquecidos de que eles nada têm a ver com os excessos cometidos há mais de 40 anos por militares que mancharam a farda e a história de suas corporações. Preferem ser solidários aos abusos cometidos por camaradas que desrespeitaram a Constituição e até o exclusivo Estatuto dos Militares, em vez de fazer o necessário mea culpa de transcendência e de peso moral que os reconciliaria com a História, com a Nação e com o futuro.
Poderiam aprender com o ex-procurador Cláudio Fonteles, que destaca: “Exército, Marinha e Aeronáutica são instituições fundamentais para a democracia. As instituições militares não estão em julgamento, mas sim os maus agentes públicos que denegriram o nome dessas instituições”.
O general Enzo Martins Peri (72 anos), o almirante Júlio Soares de Moura Neto (70) e o brigadeiro Juniti Saito (70), como as tropas que hoje comandam, nada têm a ver com as truculências cometidas no regime que derrubou Jango e a democracia. Ao contrário dos camaradas que hoje protegem, o trio de comandantes tem ficha limpa para avaliar com isenção os crimes cometidos no passado. Todos os três chegaram ao generalato no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, quando a ditadura já era defunta havia uma década.
O general Peri alcançou o topo da carreira sem nunca ter sujado as mãos com violações aos direitos humanos. Ele vem de um ramo técnico da força terrestre, a Engenharia, e era um segundo-tenente de 23 anos quando irrompeu o golpe de 1964. Entre a derrubada de Jango e a edição em 1968 do AI-5, Peri hibernou em um asséptico batalhão de engenharia no Rio de Janeiro. Teve uma rápida passagem pela 2a Seção (área de informação) do discreto 1o Grupamento de Engenharia e Construção de João Pessoa, na Paraíba. Atravessou ileso a turbulenta década de 1970.
Seus outros dois companheiros de comando desfrutam da mesma presunção de inocência. O almirante Moura Neto completou 21 anos apenas 11 dias antes do golpe de 31 de março. Só cinco meses após a queda de Jango é que ele vestiu, pela primeira vez, a farda de guarda-marinha. Nos anos cinzentos da década de 1970, manteve sua ficha alva como seu uniforme de capitão de corveta. O brigadeiro Saito virou aspirante da FAB apenas no final de 1965, 19 meses após o golpe militar. Chegou a capitão em 1971 e terminou a década maldita como major, sem sobrevoar a área mais turbulenta da Força Aérea, liderada pelo brigadeiro e radical João Paulo Burnier. Foi promovido a coronel em 1988 no Governo Sarney e chegou a brigadeiro em 1995 com FHC.
Nada justifica, portanto, a solidariedade corporativa do trio de comandantes para com velhos companheiros de pijama ou já mortos que mantêm insepulta a ideia de que as Forças Armadas na democracia são uma extensão dos porões das Forças Armadas da ditadura.
O mea culpa dos militares continua uma inviabilidade porque eles insistem em perpetuar, para as novas gerações, uma história que afronta a verdade e ofende a memória. Os 14 mil alunos hoje matriculados em 12 escolas militares de dez Estados diferentes estão expostos a livros didáticos que, segundo a Comissão Nacional da Verdade, omitem fatos e distorcem informações históricas fundamentais para que os alunos compreendam o período da ditadura. Uma fornecedora confiável, a editora da Biblioteca do Exército (Bibliex), é quem publica os livros da chamada Coleção Marechal Trompowsky, que não passaram pela avaliação do Plano Nacional do Livro Didático. Em uma das obras, História do Brasil: Império e República, escrita por Aldo Fernandes, Maurício Soares e Neide Annarumma, destinada aos alunos do 7o ano do Ensino Fundamental, o golpe de 1964 é apresentado como “uma revolução democrática”, promovida por “grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem”.
Mentiras no currículo
Mais do que transgredir, o livro mistifica a história, mentindo aos alunos das escolas militares ao dizer que o general Castelo Branco foi empossado na Presidência só porque o Congresso declarou o cargo vago diante da ausência do País de João Goulart. A verdade é que, na madrugada de 2 de abril de 1964, Jango ainda estava em Porto Alegre, discutindo a reação ao golpe. O embuste ficou eternizado na manchete daquele dia de O Globo, que sem qualquer mea culpa engambelava seus leitores: “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”. No mesmo 2 de abril, o Jornal do Brasil desmentia o concorrente: “Goulart resiste no Sul e o Congresso empossa Mazzili”.
A falcatrua histórica, ensinada nas escolas dos futuros generais, foi anulada na madrugada do dia 21 de novembro de 2013, com a aprovação pelo Congresso de resolução dos senadores Randolfe Rodrigues (PSOL) e Pedro Simon (PMDB) que revoga o conluio de militares e parlamentares golpistas, devolvendo simbolicamente o mandato usurpado a João Goulart, o 24o presidente da República do Brasil. Assim, tecnicamente, o general Castelo Branco acaba de ser rebaixado do posto de governante legalmente empossado, para se tornar um raso ditador entronizado pelas artimanhas parlamentares do golpe civil-militar que liderou.
Outra grossa mentira no currículo militar é o capítulo do livro 500 Anos de História do Brasil que fala sobre a Guerrilha do Araguaia, um foco de insurreição instalado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) nas selvas da fronteira entre Pará, Maranhão e Tocantins, entre 1972 e 1975. Eram 69 militantes e outros 20 moradores da região alistados no movimento. Foram combatidos em três campanhas militares, envolvendo um total de dez mil homens, a maior concentração de tropas brasileiras desde a Segunda Guerra Mundial. O livro informa: “A luta durou dois anos… os líderes conseguiram fugir”. Não conta que a maioria dos guerrilheiros, cerca de 70 pessoas, entre combatentes e moradores, foram presos, torturados, executados e desaparecidos na mata fechada. Integram oficialmente a maior parte da lista de desaparecidos da ditadura e, por conta da repressão no Araguaia, o Brasil foi denunciado e condenado em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) por se valer da Lei da Anistia como pretexto para não julgar os militares envolvidos nos abusos da repressão à guerrilha.
O governo nem pode alegar que tudo isso foi um simples descuido. Em 2010, a Associação Nacional de História (ANPUH) enviou carta ao MEC, à Casa Civil e ao então ministro da Defesa Nelson Jobim denunciando as falhas históricas dos livros. “Que cidadãos estão sendo formados por uma literatura que justifica, legitima e esconde o arbítrio, a tortura e a violência?”, perguntou a ANPUH. Em agosto de 2011, um ano depois, o porta-voz da Defesa finalmente respondeu, dizendo que o livro que traveste a ditadura de 1964 em “revolução democrática” tem uma linha didático-pedagógica que “atende adequadamente às necessidades do ensino da História”. Sobre as necessidades da verdade, nada foi dito.
É ilusório acreditar em um mea culpa do trio de comandantes quando se sabe que os militares insistem em negar a verdade que eles e todos nós conhecemos. O melhor exemplo é o atentado do Riocentro, um show musical em homenagem ao Dia do Trabalhador, na noite de 30 de abril de 1981, com roteiro de Chico Buarque e a presença de artistas como Paulinho da Viola, Gal Costa, Ney Matogrosso, Gonzaguinha e Clara Nunes, que atraíram mais de 20 mil pessoas ao local. Por volta das 21 horas, no estacionamento do pavilhão, uma bomba explodiu antes do tempo em um Puma dirigido por Wilson Luiz Chaves Machado, com um passageiro ao lado, Guilherme Pereira do Rosário. O motorista era capitão do Exército e o passageiro, sargento. Ambos trabalhavam no braço terrorista da força, o DOI-CODI do I Exército. O capitão era o chefe da Seção de Operações do destacamento e sobreviveu com as vísceras de fora. O sargento morreu na hora, com a bomba no colo. O atentado foi planejado pelo coronel Freddie Perdigão, chefe da Agência do SNI.
Bate, espanca
A bomba intempestiva que poderia ter provocado a maior tragédia terrorista do país explodiu também as entranhas do regime. Provocou a renúncia do chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva. Implodiu o sonho do chefe do SNI, general Octávio Medeiros, de ser o sexto presidente militar da ditadura. Enfartou o miocárdio do presidente da República, general João Figueiredo, cinco meses e meio após o atentado. Dezoito anos mais tarde, o capitão terrorista foi finalmente indiciado por homicídio qualificado pela morte do sargento, mas teve seu caso arquivado no Superior Tribunal Militar (STM), que generosamente o enquadrou na Lei de Anistia, que cobria episódios até 15 de agosto de 1979. O atentado só aconteceu 20 meses depois, em abril de 1981. Apesar das bombásticas circunstâncias de sua carreira, o capitão chegou a coronel e foi condecorado com uma cadeira de professor no Colégio Militar de Brasília.
Parece pouco realista acreditar no mea culpa de generais em um país que camufla um capitão terrorista como professor de escola. Em julho de 2012, o jornalista Ilimar Franco, de O Globo, descreveu a cena de um alegre grupo de homens, jovens e sarados, que corria pelas ruas do bairro carioca da Tijuca, em marcha sincronizada, cantando o seguinte:
– Bate, espanca/ Quebra os ossos/ Bate até morrer.
– E a cabeça? – perguntava o chefe do bando.
– Arranca a cabeça e joga no mar! – era a resposta, em coro.
– E quem faz isso?– indagava o chefe, outra vez.
– O Esquadrão Caveira! – respondia o grupo, exultante e afinado.
O grupo de garotões integrava um animado pelotão do I Batalhão da Polícia do Exército berrando a plenos pulmões o ideário truculento que devem ter contraído em seu local de trabalho. A PE funciona até hoje na rua Barão de Mesquita, o notório endereço do DOI-CODI carioca, que há 32 anos abrigava uma Seção de Operações chefiada pelo capitão Wilson Machado – o terrorista do show do Rio de Janeiro transformado em mestre em Brasília.
Apesar do fim da ditadura e da plena democracia que vive o país há 28 anos, persiste uma forte herança do regime militar no sistema público de educação. Uma em cada três escolas que homenageiam governantes traz o nome de um dos cinco generais-presidentes. Um espantoso levantamento realizado pelo O Globo em agosto passado mostra que, das 3.135 escolas públicas que honram ex-dirigentes da República, 976 trazem os nomes dos generais da ditadura. O primeiro deles, Castelo Branco, tem o nome na fachada de 464 escolas. O segundo, Costa e Silva, que assinou o AI-5, é homenageado com seu nome em 295 escolas. O ditador da fase mais sanguinária, Garrastazu Médici, batiza 160 unidades escolares.
Nos prédios onde aprendem nossas crianças, poucos lembram o presidente deposto em 1964. João Goulart carrega o nome em 11 escolas brasileiras. Seis delas estão em seu Estado natal, o Rio Grande do Sul. Quatro estão no Rio de Janeiro, que no Governo Brizola concedeu seu nome à via expressa mais conhecida como Linha Vermelha. Apenas 15 cidades, entre os 5.564 municípios brasileiros, possuem uma rua ou avenida com o nome de Goulart.
Poder civil
Enquanto isso, a Argentina faz o inverso – e faz o certo. Lá, o Ministério da Defesa do governo de Cristina Kirchner começou uma profunda reforma nas escolas militares, modificando bibliografias, alterando currículos e incorporando novas matérias e conceitos sobre a história argentina, a teoria do Estado e os direitos humanos. Os cadetes argentinos agora vão ler também livros escritos por ex-presos políticos e até por velhos combatentes de guerrilhas da esquerda, como os Montoneros. Essa ousada afirmação do poder civil sobre o militar começou há oito anos, quando o presidente Néstor Kirchner botou uma mulher no Ministério da Defesa, a advogada de presos políticos Nilda Garré. Eleita deputada aos 28 anos, em 1973, ela assumiu o comando das Forças Armadas em 2005, brecando a promoção de militares envolvidos com crimes de lesa-humanidade e iniciando a reforma dos currículos militares. Coisa que no mundo sem mea culpa dos generais brasileiros parece impensável.
É difícil imaginar o nosso comandante do Exército, Enzo Martins Peri, imitando o gesto corajoso de seu confrade Martin António Balza, comandante do Exército argentino entre 1991 e 1999, nos dois mandatos de Carlos Menem. Como tenente-coronel e especialista em guerra de montanha, Balza comandou um grupo de artilharia na malograda Guerra das Malvinas, em 1982. Foi preso pelos ingleses e, pela bravura que Galtieri e os generais de Buenos Aires não tiveram, recebeu a Medalha de Mérito do Exército. Seu ato mais notável, no entanto, foi a aparição que fez na noite de 25 de abril de 1995 no programa de entrevistas mais importante da TV argentina, Tiempo Nuevo, apresentado pelo jornalista Bernardo Neustadt.
Com o uniforme cáqui de comandante e os cabelos brancos aos 61 anos, o general Balza iniciou um inesperado mea culpa que emocionou o país, ainda traumatizado pelos 18 mil desaparecimentos oficialmente reconhecidos (30 mil para entidades de direitos humanos) nos anos da “guerra suja”, entre 1976 e 1983. Tirou um papel do bolso, botou os óculos e com voz firme, carregada de convicção, o general Balza leu um texto emocionante que poderia ser lido, tal e qual, pelo general Peri. Falou Balza:
– O Exército, instruído e adestrado para a guerra clássica, não soube como enfrentar com a lei plena o terrorismo demencial. Este erro o levou a privilegiar a individualização do adversário, sua localização acima da dignidade mediante a obtenção, em alguns casos, da informação por métodos ilegítimos, chegando inclusive à supressão da vida, confundindo o caminho que leva a todo fim justo e que passa pelo emprego de meios justos. Uma vez mais reitero: o fim não justifica os meios. (…) Assumo toda a responsabilidade do presente e toda a responsabilidade institucional do passado.
Achado macabro
O texto integral do general Balza tinha 92 linhas, quase duas vezes mais do que a circular “reservada” do general Castelo Branco na véspera do golpe, cinco vezes mais extensa do que a épica fala de Lincoln em Gettysburg. Pela grandeza, pelo sentimento, pela densidade, pela visão de futuro, o histórico pronunciamento do general argentino tem muito a ver com a ode democrática do presidente americano e nada a ver com o viés golpista do general brasileiro.
Se o exemplo digno do argentino Balza não emocionar o brasileiro Peri, talvez lhe sirva a atitude destemida de outro companheiro de armas, de outra ex-ditadura vizinha. O general Pedro Aguerre Siqueira tinha apenas 58 anos quando assumiu o comando do Exército do Uruguai, em 31 de outubro de 2011, reconhecendo as feridas abertas da tropa com o seu país: “Evidências do passado afetam moralmente a força e seus integrantes”, disse, no discurso de posse. Completou: “É necessário mirar o futuro e que não sejam as mulheres e os homens, atuais integrantes deste Exército, reféns de fatos lamentáveis ocorridos há 30 anos”. Um achado macabro e imprevisto, porém, mudaria a história do país e transformaria a biografia de Aguerre. Em 21 de outubro, dez dias antes de Aguerre assumir o comando, uma equipe de antropólogos localizou a ossada de um homem de cerca de 70 anos ao escavar o quintal do Batalhão de Paraquedistas no 14, na cidade de Toledo, a uns 30 km do centro de Montevidéu, a capital uruguaia.
Telefonemas nervosos cruzaram o pequeno país entre as famílias dos 200 desaparecidos durante a ditadura (1973-1985), dos quais apenas quatro foram localizados, todos desencavados em prédios militares. De repente, cresceu o boato de que a ossada de Toledo pertencia a um deles, até que a confirmação final chegou ao meio-dia de uma quinta-feira, 1o de dezembro de 2011, com o exame de DNA. Não se tratava de apenas mais um desaparecido uruguaio, mas era talvez o mais famoso deles: o professor e jornalista Julio Castro, sequestrado aos 68 anos por militares em agosto de 1977. Educador e teórico respeitado, uma espécie de Paulo Freire uruguaio, Castro foi um dos fundadores do mítico semanário Marcha, fechado pela ditadura já em 1974, um ano após o golpe. A reaparição de Julio Castro chocou o país, traumatizado com os detalhes de sua morte: ele foi executado com um tiro na testa, com as mãos amarradas às costas, os tornozelos imobilizados por um arame.
Contrariando o manto de silêncio que costuma envolver a corporação nesses momentos, o general Aguerre convocou uma entrevista coletiva. Falou Aguerre:
– O Exército nacional não aceitará, não tolerará, nem acobertará homicidas ou delinquentes em suas fileiras. Aquele que está falando com vocês comete erros diariamente, como qualquer ser humano, mas hoje estamos falando de crimes. Essa é uma linha que esse Comandante e seu Exército não cruzarão. Não tenho conhecimento de um pacto de silêncio para acobertar crimes dentro da Força que comando e, mesmo desconhecendo se existiu ou ainda existe até hoje tal pacto, neste momento dou a ordem de sua suspensão imediata.
O argentino Balza e o uruguaio Aguerre são raros exemplos de soldados sem vínculos orgânicos com as corporações que se desviaram de sua missão constitucional, mas com uma clara visão sobre os deveres das Forças Armadas na reconstrução de uma Nação que emerge da ditadura para a democracia. Nenhum deles tenta justificar os erros do passado pela teoria tola do general Leônidas sobre o soldado predestinado ao “exercício cívico da violência”. Nem procuram se eximir de suas responsabilidades, como demonstrou aos berros o coronel Ustra, acusando o próprio Exército.
No Brasil, a hegemonia militar ainda é muito forte. As três forças só perderam o status de Ministério no segundo governo FHC, em 1999, 14 anos depois que o último general-presidente deixou o Palácio do Planalto pela porta dos fundos. Os ministros militares tornaram-se apenas comandantes, chefiados por um civil no posto de Ministro da Defesa. Desde o primeiro ministro, o senador Élcio Alvarez, até o atual, embaixador Celso Amorim, passaram pela Defesa sete ministros no decorrer desses 14 anos, um tempo médio de 25 meses no posto para cada um, ao longo de um governo do PSDB (FHC) e três do PT (dois com Lula, um com Dilma). O mais fugaz, o primeiro, resistiu sete meses como ministro. O mais longevo, Nelson Jobim, sobreviveu 49 meses, somando quase todo o segundo Governo Lula e metade do primeiro ano de Dilma no Planalto.
Sua longevidade pode ser explicada, talvez, pela profunda empatia que estabeleceu com a caserna. Os quartéis adoravam ver a enorme figura de Jobim, com seu corpanzil de 1,90 m e 120 kg enfiado em uniformes de camuflagem para combate na selva, posando orgulhoso para fotos com sucuris de 8 m de comprimento ou alisando com destemor uma onça-pintada devidamente acorrentada. Mas não era só a pantomima de guerra de Jobim que seduzia os quartéis. Ele, de fato, era um ministro de defesa dos militares, mais do que um Ministro de Estado da Defesa.
Foi ao ministro Nelson Jobim que os comandantes militares reclamaram em documento reservado, publicado em março de 2011 pelo O Globo, sobre as movimentações do governo para instalar a Comissão da Verdade, alegando que já tinham decorrido três décadas do “chamado governo militar”… Em vez de condenar o cinismo de seus comandados, Jobim tornou-se o porta-voz da insatisfação militar junto ao Planalto. E, sempre que podia, calçava o coturno pesado das posições castrenses. Repetia, sempre que perguntado, que não havia o que garimpar nos arquivos militares sobre a ditadura.
Documentos “consumidos”
“Não há documentos (sobre o governo militar). Nós já levantamos e não têm. Os documentos já desapareceram, foram consumidos (sic) à época”, disse o conformado Jobim ao repórter de O Estado de S.Paulo, sem esclarecer quem e como “consumiu” (?) documentos relevantes de uma fase decisiva de nossa História. Em julho de 2011, algo ainda mais grave ocorreu. O jornal Correio Braziliense noticiou que sumiram os documentos funcionais do tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, alvo de uma ação civil pública na 4a Vara Cível de São Paulo. Ele e mais três oficiais são acusados pela morte, em 1971, na OBAN (Operação Bandeirante, centro da repressão no II Exército) de seis presos políticos e pela tortura em 20 guerrilheiros – entre eles uma jovem de 22 anos da VAR-Palmares, codinome “Estela”, chamada Dilma Rousseff.
Instado, o Ministério da Defesa do ministro Jobim informou ao Ministério Público Federal que os documentos que poderiam atestar o envolvimento do oficial Lopes Lima na tortura à guerrilheira Dilma – hoje comandante-suprema das Forças Armadas – simplesmente sumiram. A Defesa de Jobim deu uma cândida explicação à Justiça: “Vários dos possíveis documentos referentes aos acontecimentos mencionados, bem como os eventuais termos de destruição foram destruídos (sic)”. Ou seja, a destruição foi autorizada (por quem?), e os documentos que atestavam a estranha liberalidade acabaram também curiosamente destruídos (por quê?)… É fácil, portanto, entender por que Jobim durou tanto na pasta da Defesa dos militares. O general Leônidas Pires Gonçalves, o ministro do Exército de Sarney que hoje ecoa a linha dura de pijama e pantufas, usou O Estado de S.Paulo, em 2012, para atacar a presidenta Dilma (“deveria ter a modéstia de esquecer o passado e olhar para a frente”) e a Comissão Nacional da Verdade (“uma moeda falsa, que só tem um lado”), mas teve o cuidado de exaltar o ex-ministro Nelson Jobim: “Ele se colocava”, lembrou o general, agradecido.
É pouco realista esperar um mea culpa dos generais ao constatar a indisfarçável dificuldade que os militares, passadas quase três décadas do fim do regime autoritário, ainda demonstram para aceitar a supremacia do poder civil. Sempre que podem, nas circunstâncias possíveis, os comandantes e seus arautos mostram o desconforto com a prevalência da autoridade civil, norma essencial dos regimes democráticos. Uma das mais recentes demonstrações do gênero coube ao general Carlos Bolivar Goellner, que representava o Exército brasileiro em São Borja, quando os restos mortais de Jango voltaram à cidade, com honras militares, na sexta-feira 6 de dezembro. Na ocasião, o general negou que a cerimônia fosse uma retratação histórica com Jango: “Nenhum erro histórico. A história não comete erro”.
Outros dois fatos exemplares ilustram bem a renitência ainda forte nos quartéis para se subordinar ao mundo paisano.
No século passado, a influência dos Estados Unidos era forte no pensamento militar do continente – especialmente nas quatro principais ditaduras do Cone Sul. Em três décadas, no período 1950-1979, as academias militares estadunidenses foram frequentadas por 8.659 brasileiros, 6.883 chilenos, 4.017 argentinos e 2.806 uruguaios. Em 1946, o Exército dos Estados Unidos instalou em Fort Gulick, na Zona do Canal do Panamá, então território estadunidense, o Centro de Treinamento do Caribe do Exército norte-americano (US Army Caribbean Training Center). Um ano antes do golpe no Brasil, em 1963, o lugar foi renomeado como Escola das Américas (School of Americas – SOA). Seria daí o mais avançado centro do continente para a instrução de cursos de inteligência, interrogatório e combate à insurgência que desafiava Washington, ainda mais sobressaltada a partir da eclosão em 1959 de uma revolução socialista a 145 km do litoral da Flórida, com a chegada ao poder de Fidel Castro e seus barbudos em Cuba.
Nas três décadas seguintes, sob o álibi da ameaça comunista, passou pela Escola das Américas um exército de 60 mil militares latino-americanos, que ali aprenderam as técnicas e assumiram as fobias que os levariam aos golpes militares e aos centros de tortura que disseminaram pela América Latina. Por lá transitaram 332 militares brasileiros – 325 alunos e sete instrutores, que brilharam nos cursos de Operações de Selva, Interrogatório de Inteligência Militar e Operações Psicológicas. Vinte e um deles acabariam despontando na galeria de torturadores da ditadura brasileira.
Recado adicional
São números eloquentes por si. Em março passado, como seria natural, a Comissão Nacional da Verdade preparou uma minuta solicitando oficialmente a lista de brasileiros que passaram pela SOA entre 1963 e 1984. A comissão queria saber a hierarquia de cada militar brasileiro, tipo e duração do curso e a respectiva lotação e posto, no Brasil, quando esses professores e alunos egressos da SOA retornaram ao País. O pedido foi apresentado ao Ministério da Defesa em abril e formalizado em maio de 2013. Passaram-se um, dois, três meses, até que o comando da Força respondeu informalmente em meados de agosto passado, via Defesa: “O Exército não dispõe desses dados sistematizados”. Um recado adicional tentava mostrar o suposto absurdo do pedido da CNV: “A única maneira de obter esses dados seria acessando a ficha individual de cada militar, o que tornaria o trabalho inviável”. Simples assim.
Outro episódio, nada honroso, sobre a arrogância remanescente do pensamento militar em plena democracia ocorreu no início de 2012 por obra e graça do Centro de Informações do Exército (CIE), que fez e aconteceu na ditadura. Distante pouco mais de 8 km do Palácio do Planalto, a sede do serviço secreto da força terrestre fica no Setor Militar Urbano, ao lado do notório Pelotão de Investigações Criminais (PIC), que integra o Batalhão de Polícia do Exército. No PIC foi torturado em agosto de 1968 um estudante de 25 anos da Universidade de Brasília, Cláudio de Almeida. Na cela, foi acareado com um amigo ainda mais jovem, Honestino Guimarães, um líder estudantil de 21 anos, que estava pálido, cheio de hematomas, boca machucada, olhos roxos. Cláudio se lembra das palavras do coronel, ao colocá-los lado a lado: “Está vendo aí? Olha o líder de vocês. Está todo cagado, olha o que virou. Não aguenta uma porrada!”.
Exigiram que Honestino revelasse quem era Cláudio, qual o seu grupo. Foi espancado e passou por afogamentos, porque não falava nada. A sessão de tortura durou horas: “E ele não abriu a boca. Nem olhava para mim. Ficava com um olhar perdido. Era um menino. E não falava”, lembrou em outubro passado Cláudio, hoje com 70 anos, em um emocionado depoimento à repórter Ana Pompeu, do Correio Braziliense. Quatro meses depois, com a edição do AI-5, Honestino caiu na clandestinidade da luta política contra a ditadura. Ainda escondido, foi eleito presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), até ser preso no Rio de Janeiro, em outubro de 1973, pelo CENIMAR, o serviço secreto da Marinha. Aparentemente voltou ao PIC, em Brasília, de onde sumiu para sempre, transformado em um dos mais emblemáticos desaparecidos da ditadura.
O ministro da Defesa, Celso Amorim, esteve ali, ao lado do PIC, no início de 2013, em uma visita de serviço ao CIE. Convidado para um evento interno do serviço secreto, Amorim chegou acompanhado de alguns assessores civis de seu staff. A comitiva foi barrada na entrada do prédio, por um general que entrou de coturno no tema: “Aqui não entra civil. Só ministro”. E Amorim, sem um ai, teve de se livrar de seus assessores para adentrar o recinto da sigla que marcou o período mais trevoso da ditadura.
Faltou ao ministro da Defesa o discernimento para adotar uma de duas atitudes possíveis:
Alternativa 1: fazer valer sua autoridade e hierarquia, como superior dos três comandantes militares, e exigir imediatamente o acesso dos assessores que desfrutam de sua confiança.
Alternativa 2: cancelar a reunião, sair dali e tomar devidas e sumárias providências junto ao Comandante do Exército para punir o desrespeito e a insubordinação dos chefes do CIE.
No final de janeiro de 2002, quando os Estados Unidos viviam o auge da paranoia com os ataques de 11 de setembro, o chanceler brasileiro Celso Lafer, em visita oficial ao país, teve de tirar os sapatos uma, duas, três vezes nos aeroportos de Nova York e Washington, para atender ao rígido sistema antiterrorista adotado no país. Foi um episódio de humilhação que constrangeu publicamente o Brasil e o governo Fernando Henrique Cardoso. Uma década depois, o incidente com o ministro da Defesa na porta do CIE carrega a mesma dose de aviltamento e reflete igual servilismo, embora ainda seja um episódio desconhecido para o Palácio do Planalto, que provocará os desmentidos de praxe de Amorim, do CIE e do Exército.
O espantoso incidente com Amorim no CIE revela mais do pensamento autoritário que ainda sobrevoa cabeças estreladas da área militar. Fica claro em plena democracia que uma unidade militar, por mais secreta que seja, ainda não admite a hegemonia civil sobre seu espaço. Quando um general subverte a hierarquia e determina ao ministro da Defesa quem de sua comitiva pode ou não adentrar uma unidade militar, está apenas reafirmando a arrogância e a impunidade que definem a herança maldita que as Forças Armadas carregam. Neste cenário, não é ainda razoável imaginar que possamos um dia ouvir o mea culpa dos generais brasileiros.
Sinal amarelo
O mais provável é que, incapazes de reconhecerem suas culpas, os militares brasileiros comprometidos com os abusos da ditadura sejam compelidos a prestar contas à Justiça. É isso que explica a expressão cada vez mais carrancuda do trio de comandantes das Forças Armadas, em contraste com o sorriso contagiante do trio da Rede Globo, que fez o seu mea culpa. Os estrategistas militares já perceberam que têm pela frente uma batalha perdida: a iminente revisão da Lei da Anistia, última trincheira que lhes resta para tentar defender o bastião da impunidade. O sinal amarelo acendeu nos quartéis com a posse, em 17 de setembro passado, do novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, um mineiro de 57 anos.
Rápido no gatilho, uma semana após assumir, Janot provocou uma dramática inflexão na política brasileira fazendo a Procuradoria-Geral da República (PGR) reconhecer, pela primeira vez, que a anistia pode ser revisada. O antecessor, Roberto Gurgel, agasalhava a opinião mais confortável aos quartéis, admitindo que a anistia “resultou de um longo debate nacional para viabilizar a transição entre o regime militar e o regime democrático atual”. Janot revirou essa concepção de pernas para o ar com seu parecer favorável à extradição para a Argentina do agente da Polícia Federal Manuel Alfredo Montenegro, acusado de torturar e matar três pessoas na ditadura e hoje refugiado em Itaqui, cidade gaúcha na fronteira com a Argentina. Janot acolheu a perspectiva de que o Direito Internacional Público resguarda os direitos básicos da população.
É a primeira vez, também, que o procurador-geral se posiciona em favor do acolhimento da sentença de dezembro de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil por não investigar os crimes de tortura e desaparecimento forçado na repressão à Guerrilha do Araguaia. A sanção da OEA ao Brasil ocorreu porque o País usou a Lei da Anistia como pretexto para não apurar nada, nem punir ninguém. Em 2010, por sete votos a dois (Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito), o Supremo Tribunal Federal sustentou a tese equivocada, tão útil aos quartéis, de que a anistia brasileira era fruto de um “acordo histórico”, e tudo deveria ficar como está no reino da impunidade.
Basta atentar aos fatos, porém, para constatar a mentira conveniente que ainda hoje protege quem cometeu crimes de lesa-humanidade no Brasil. A anistia de 1979, ao contrário do que dizem os quartéis e suas vivandeiras, não é produto de um consenso nacional. É uma lei gestada pelo regime militar vigente, blindada para proteger seus acólitos e desenhada de cima para baixo para ser aprovada, sem contestações, pela confortável maioria parlamentar que o governo do general Figueiredo tinha na Câmara dos Deputados. Durante semanas, o núcleo duro do Planalto do general Figueiredo lapidou com esmero as 18 palavras do parágrafo 1o do Art. 1o da lei para infiltrar ali a expressão salvadora que abençoava todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes” e que não foram condenados. De forma ladina, decidiu-se que abusos de repressão eram “conexos” e, se um carcereiro do DOI-CODI fosse acusado de torturar um preso, ele poderia replicar que cometera um ato conexo a um crime político. Assim, em uma única e cínica penada, anistiava-se o torturado e o torturador.
A autoanistia sobreviveu até agora, mas pode estar com seus dias contados. Além do debate crescente sobre a verdade e da nova concepção do procurador-geral, crescem as evidência de que o Supremo Tribunal Federal pode sintonizar o Brasil com a consciência jurídica internacional. O reconhecimento de Janot de que crimes de tortura e desaparecimento forçado são imprescritíveis abre uma nova janela para a revisão da anistia, como pede a OAB, preservando a lei de 1979, mas excluindo de seus efeitos os agentes públicos que cometeram aqueles crimes de lesa-humanidade.
Exumação da verdade
Os militares se fiavam na fossilização da lei e na memória precária da sociedade. Isso está mudando. A começar pela Comissão Nacional da Verdade, hoje com uma segura maioria de quatro votos contra dois pela revisão da anistia. No final de novembro, o novo coordenador da CNV, Pedro Dallari, falou sobre o tema com uma clareza nunca antes explicitada pelos membros da comissão: “Com a informação da monstruosidade dos atos de violação, será inevitável uma rediscussão da lei”. Os únicos dois comissários da CNV alinhados aos generais, que ainda acham que nada deve mudar na lei, são José Paulo Cavalcanti e José Carlos Dias. Até o relatório final, previsto para o segundo semestre de 2014, ambos podem evoluir e seguir a maioria. A mudança de tom mais importante, contudo, acontece no plenário do Supremo Tribunal Federal. Três dos antigos ministros que se decidiram pela autoanistia dos quartéis, em 2010, já deixaram a Corte: Eros Grau, César Peluso e Ellen Gracie.
Seis dos 11 integrantes do STF não votaram na ação da OAB, que ainda não foi concluída à espera dos embargos de declaração. Agora, com o apoio da centena de Comissões da Verdade que vicejam pelo País, a OAB quer reforçar a causa, embalada pela mudança crucial do novo procurador-geral e pela condenação brasileira na corte da OEA. Os ventos são favoráveis. O mais novo ministro da Corte, Luís Roberto Barroso, em sua primeira entrevista ao assumir o posto, em junho, reconheceu que “em tese” a Lei da Anistia poderá ser revista. Como Barroso, não estavam no STF em 2010 outros três ministros – Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavaschi. Joaquim Barbosa, em licença médica, e José Antônio Dias Toffoli, por impedimento, não votaram na ocasião. Lewandowski, que votou pela revisão, continua lá. Assim, na conta do atual Supremo, os militares só podem confiar em uma minoria de quatro votos em 11: Carmen Lúcia, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Celso de Melo. Os outros sete ministros, arejados pelos novos tempos, tendem a reconhecer que a autoanistia dos militares não pode acobertar os crimes de tortura e desaparecimentos forçados cometidos por agentes do Estado.
É o que está expresso no Pacto de San José da Costa Rica, firmado pelo Brasil. O atalho pelo STF parece um caminho mais fácil para a revisão do que o projeto no 573, de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que tenta a mesma coisa, mas esbarra na maioria conservadora ou inerte da Câmara. A nova frente de batalha que se abrirá no Supremo explica a cara fechada do trio de comandantes das Forças Armadas, que esperavam adiar indefinidamente a questão de boca fechada, sem qualquer mea culpa. A férrea decisão dos generais pelo mutismo continua a mesma, mas o debate sobre a anistia e o passado de violência do Brasil já não passa pela decisão, ou pela imposição dos quartéis.
Aos generais brasileiros, agora confrontados com a exumação da anistia, de João Goulart e da verdade, resta refletir sobre a lição de um velho e sábio companheiro de armas. O almirante Isoroku Yamamoto (1884-1943) era o comandante mais brilhante da Armada japonesa, no início da Segunda Guerra Mundial no Pacífico. Tinha apenas 57 anos quando comandou o ataque inesperado à base de Pearl Harbor, que levou os Estados Unidos para a guerra. Contrariando o ufanismo que varria o império, Yamamoto estava pessimista. “Não ganhamos nada. Temo que apenas tenhamos acordado um gigante adormecido e o alimentado com uma vontade terrível”, advertia em vão. Yamamoto lembrava que, em apenas meio dia, o gigante americano produzia o que o Japão consumia em um ano. Fabricava navios em ritmo quatro vezes mais rápido, seis vezes mais aviões de guerra, 700 vezes mais barris de petróleo. Tio Sam era apenas a 17a força militar do mundo quando a guerra explodiu em 1939, e tornou-se a maior força armada do mundo na rendição japonesa, em setembro de 1945. Antes da guerra, o país tinha apenas 14 bases no exterior. No final, comandava uma rede de 30 mil bases militares espalhadas pelo planeta.
Yamamoto antevia tudo isso, ao contrário da multidão que o ovacionava. Um jornalista, ainda eufórico com a vitória no Havaí, insistia em dezembro de 1941 que nada mais poderia conter o Japão.
– Qual deve ser o caminho da vitória? – perguntou o repórter ao almirante.
– Pedir a paz – respondeu Yamamoto. O jornalista não conteve a perplexidade.
– A paz, almirante?
– O dever mais importante de um soldado é terminar a guerra que ele iniciou – ensinou Yamamoto.
Uma lição de 1941 que seria útil aos generais brasileiros de 2013 que ainda vivem em 1964.
Os generais brasileiros não cumpriram o seu dever. Ainda não terminaram a guerra que iniciaram há meio século. Agora, a paz só virá pela verdade e pela Justiça.
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