“Para fazer frente ao Rio de Janeiro e a outras concorrentes litorâneas, sempre mais atualizadas com o que vinha de fora, a provinciana São Paulo se auto-afirma como metrópole cosmopolita, negando recorrentemente ao longo da história sua própria condição sertaneja. Diz-se agora que São Paulo está virando sertão. Não, não está virando. São Paulo é antes de tudo sertão.”
por Nilce Aravecchia*, especial para o Escrevinhador
Sertão: 1. região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (Dicionário Houaiss, citado por ANTONIO FILHO, Revista Ciência Geográfica, Bauru, Jan./Dez, 2011.).
A origem e os significados da palavra “sertão” são temas do artigo científico do professor Fadel David Antonio Filho, da Unesp de Rio Claro, tomado como referência para essa breve reflexão.
Mesmo com a diversidade de significados, e com as possíveis raízes etimológicas distintas que o autor apresenta, o uso da palavra nos termos do significado 4 (“em especial, a zona mais seca que a caatinga”) tornou-se preponderante no discurso e no imaginário da sociedade brasileira logo a partir das primeiras décadas do século XX. Certamente, concorreu para isso o clássico Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902 e que ao identificar a palavra sertão com o semiárido nordestino, a despeito de seu uso enquanto sinônimo da palavra “interior”, marcaria daí em diante a acepção mais aceita e utilizada.
Não cabe aqui reconstruir historicamente o momento em que a categoria sertão é destituída de seus outros significados para corresponder a uma circunscrição geográfica específica do Brasil, caracterizada pelo clima quente e seco, pela vegetação equivocadamente considerada pobre, e cujas características físicas tornavam a vida mais dificultosa. A complexa construção social tanto da ideação quanto das ressonâncias que vinculou a palavra sertão ao semiárido nordestino contou com intelectuais de peso como o próprio Euclides da Cunha, mas também Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, entre outros.
Tal processo levou tempo, não foi simples nem unívoco, e muito menos se tratou diretamente da obra de tais autores. Mas, mesmo marcado de contradições e de contrapontos, acabou por consolidar o simbolismo que legitimou decisões políticas e econômicas.
Essa operação ideológica, como construção social complexa, parece ter sido crucial para o desenvolvimento assimétrico e para a consolidação das desigualdades regionais do País. Serviu também, muitas vezes, para circunscrever o lugar dos pobres no país e sobretudo nas metrópoles do sudeste que, no interior de seus perímetros, destinaram os sertanejos e por extensão os nordestinos e os pobres às “periferias” e aos “subúrbios” – outras duas palavras que cravam ideologicamente a interpretação sobre os territórios que representam.
Assim, desde a década de 1940, as sucessivas ondas migratórias foram carregadas de estigmas e acompanhadas pela ideia de fuga da pobreza e da miséria do “sertão”, definindo socialmente seus homens, tanto em seu local de origem como do destino.
Para São Paulo, a operação social que limitou o uso da palavra sertão foi bastante satisfatória para consolidar o estado, e também a própria cidade, como “locomotiva” da nação, e que nada tinha de sertão. Para fazer frente ao Rio de Janeiro e a outras concorrentes litorâneas, sempre mais atualizadas com o que vinha de fora, a provinciana São Paulo se auto-afirma como metrópole cosmopolita, negando recorrentemente ao longo da história sua própria condição sertaneja. O uso limitado do termo sertão auxiliou nesse processo de distinção.
Com a crise hídrica sem precedentes históricos que enfrentamos hoje, as ironias do destino fazem recair sobre a São Paulo cosmopolita o significado que se evitou por quase um século. A falta d’água, inicialmente circunscrita aos bairros pobres, está na iminência de afetar de forma calamitosa a cidade como um todo, e, a menos que chova muito, atingirá pobres e ricos, nordestinos e sulistas, moradores de Heliópolis e de Higienópolis.
Diz-se agora que São Paulo está virando sertão. Não, não está virando. São Paulo é antes de tudo sertão.
A captura ideológica do sentido dessa palavra, como se viu, foi parte de um processo social de legitimação de orientações políticas e econômicas que produziram as desigualdades regionais, mesmo que tenha havido alguns esforços para combatê-las (como comprova a trajetória tortuosa da SUDENE desde a década de 1950, que contou com inúmeros obstáculos, em que pese a dedicação e compromisso legítimo de técnicos e de intelectuais).
Espera-se uma saída racional para a crise da água. Espera-se que o imponderável dos processos históricos estimule reflexões. Se não para restituir os outros significados da palavra sertão, ao menos para ponderar sobre sua apropriação exclusiva ao longo da história.
A operação ideológica empreendida por parte da elite paulista, que desde o início do século XX procura-se dissociar de forma quase absoluta dos “sertões” nordestinos”**, parece cumprir papel central na estratégia dos setores dominantes da política em São Paulo – que negam-se a aceitar um projeto político nacional, de modernização e redução das desigualdades sociais e regionais.
Repensar a categoria “sertão” pode ser um exercício útil para vencer a resistência paulista em incorporar-se a um Brasil sem tantas desigualdades regionais. Pois, se é certo que elas diminuíram na última década, é certo também que tal processo ainda carece de maior aprofundamento.
* Nilce Aravecchia é professora de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
** Nesse sentido, é sintomático que Euclides da Cunha (jornalista, a serviço da quatrocentona família Mesquita, do “Estadão”) tenha preferido enxergar “Os Sertões” como uma categoria externa a São Paulo, como uma espécie de “outro” a ser decifrado e conhecido; enquanto o mineiro Guimarães Rosa, décadas depois, tenha pensado no “Grande Sertão” como uma categoria interna a Minas Gerais: veredas a interligar o Brasil.
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