Por Edmundo Leite, n’O Estado de S.Paulo
Desaparecido há quase 40 anos nas trevas de uma nascente e sanguinária ditadura argentina, o pianista brasileiro Tenório Júnior continua como um dos casos mais notórios da lista de vítimas dos anos de chumbo cujo paradeiro é totalmente desconhecido dos registros oficiais. Mulher e filhos do exímio pianista que sumiu em 1976 após um show com Vinicius de Moraes e Toquinho procuraram a Comissão da Verdade recentemente com a esperança de que alguma informação nova surja nos milhões de documentos militares agora acessíveis no Arquivo Nacional e outras instituições que receberam papéis dos órgãos de repressão. Ao mesmo tempo, fãs torcem para que o documentário sobre Tenório, do cineasta espanhol ganhador do Oscar, Fernando Trueba, chegue às telas. Depois de tomar mais de 100 depoimentos, Trueba não tem previsão de estrear o filme.
Uma seleção com as gravações do piano de Tenório Júnior acompanhando artistas dos mais diversos estilos renderia facilmente um disco com amostras do melhor da música brasileira pós-bossa nova. Do Índia de Gal Costa ao ‘disco do tênis’ de Lô Borges, passando por Minas, de Milton Nascimento, a lista se estenderia com faixas tiradas de álbuns de Jorge Ben, Nana Caymmi, Joyce, Wanda Sá, Eumir Deodato, Egberto Gismonti, Edu Lobo e Johnny Alf. O fato de virtuoses como Egberto, Edu e Alf quererem o músico em seus trabalhos dá uma pista da grandeza que era Tenório com as teclas. As inúmeras formações instrumentais das quais participou nas míticas boates de Copacabana nos anos 60, onde samba e jazz se juntavam numa explosão de modernidade, já seriam suficientes para dar a Tenório um status de lenda da música.
Se tudo isso ainda fosse pouco, um disco só seu é cultuado aqui e no exterior como obra-prima do instrumental brasileiro. Gravado em 1964, Embalo traz composições do jovem pianista e de outros autores, como Consolação, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, em vigorosos arranjos e acompanhamento de músicos do naipe de Raul de Souza e Edson Maciel nos trombones, J.T Meirelles no sax e Milton Banana na bateria. Junte-se a isso uma personalidade pra lá de exótica, alguns canos em compromissos, um pouco de droga e estaria pronto o perfil de um artista memorável.
Mas, numa madrugada argentina, Tenório deixaria de ser assunto musical para virar personagem político. Quando o pianista saiu do hotel Normandie, no centro de Buenos Aires, para fazer sabe-se lá o quê no meio da madrugada, figuras das trevas rondavam a capital da Argentina. Naqueles dias de março de 1976, o país vivia um clima de terror com atentados a bomba, assassinatos e a eminência de um golpe militar que em alguns dias tiraria Isabelita Perón do poder e daria início a uma carnificina que se prolongaria por alguns anos.
Um show de artistas brasileiros no tradicional Teatro Rex era uma daqueles fatos que traziam um pouco de luz à escuridão. Vinicius de Moraes e Toquinho chegaram para se apresentar na capital argentina numa excursão que já vinha fazendo sucesso pelo Uruguai. O bon vivant Vinicius estava praticamente em casa. Ele e Toquinho eram considerados portenhos honorários.
Para o suporte musical, a dupla contava com um trio formado pelo baixista Mutinho, o baterista Azeitona e Tenório ao piano. Naquela que seria a sua última apresentação, Tenório mostrou que era muito mais que um músico de apoio. O público pediu bis de seu número solo em Tamanduá, onde exibia sua grande capacidade de improvisação e todo o seu lado harmônico, como lembra Toquinho. “Além do carisma, com aquela barba, aquela figura meio parecida com Cristo, ele era um jazzista, suas variações mostravam um virtuosismo sem exagero. Ele sabia se situar. Era um solista com muita criatividade, e também um grande acompanhante. Era muito bom nas duas coisas, uma raridade entre os músicos.”
Passados quase 40 anos, o que aconteceu com Tenório depois que a trupe voltou para o hotel continua um mistério. Segundo relatos publicados na época, o pianista teria deixado um bilhete aos colegas dizendo que sairia para comer um sanduíche, comprar um remédio e que voltaria logo. Nunca mais foi visto. A mobilização para tentar encontrá-lo nos dias seguintes incluiu incursões de Vinicius nos meios diplomáticos e rondas dos músicos e outros integrantes da excursão por delegacias, hospitais e necrotérios. Tudo em vão. Cinco dias depois, quando o Estadão noticiava que o golpe na Argentina era iminente, uma nota na mesma página reportava o desaparecimento de Tenório e que Vinicius impetrara um habeas corpus em favor do músico. A essa altura já se temia pelo pior.
Mas a total ausência de informações fazia com que outras hipóteses fossem cogitadas. Quase um mês depois, jornais publicaram que Tenório havia reaparecido em São Paulo após uma longa viagem de carona. Toquinho não aceitou a história e disse com todas as letras que o sumiço poderia estar ligado à repressão argentina: “Se Tenório tivesse reaparecido, certamente eu saberia. Estávamos trabalhando junto há dois meses e ele teria nos comunicado alguma coisa. Para mim, o mais provável é que ele tenha sido preso na Argentina, pois o jornal La Razón noticiou uma grande batida policial na zona do Hotel Normandie na mesma madrugada do desaparecimento”, declarou ao Jornal da Tarde.
A possibilidade de Tenório estar vagando pelas estradas ou não ter entrado em contato com Toquinho e Vinicius não era de todo incrível. O músico tinha alguns antecedentes que davam margens para histórias do tipo. Caetano Veloso levou um cano do pianista, que havia aceitado convite do artista para ser diretor musical de um disco do baiano. Tenório não apareceu no dia marcado e tampouco ligou para dar qualquer justificativa.
Roberto Menescal, autor do clássico O Barquinho, conta uma história que mostra que a tese de que Tenório poderia ter desbundado tinha lá seu fundamento. “Tenório tinha aparência e atitudes muito sérias, mas era meio louquete. Quando marcávamos um encontro, show ou gravação, ele abria uma agenda e escrevia tudo com detalhes. E não poucas vezes, não aparecia.” Menescal também lembra de outra passagem. “Uma vez fomos participar de um show no Quitandinha em Petrópolis e fomos descendo a serra. De repente vimos um vulto no meio da estrada descendo a pé e alguém no nosso carro falou: ‘Ué, parece o Tenório!’. Então paramos um pouco adiante esperando que essa pessoa passasse. Vendo que era o Tenório, perguntamos: ‘E aí, Tenório, o que está havendo?’. E ele respondeu: ‘Não sei nem mais onde é que eu estou’.”
Das poucas certezas, uma: Tenório foi eliminado após longa tortura
A ser verdade o que o ex-agente da repressão argentina Claudio Vallejos contou ao repórter Maurício Dias, da extinta Revista Senhor, o pianista brasileiro desaparecido em Buenos Aires, Tenório Junior, foi vítima da Operação Condor, o consórcio formado pelas ditaduras sul-americanas para caçar opositores que se refugiavam em países vizinhos. O relato cheio de detalhes de Vallejos, amparados em supostos documentos, é tétrico. Detido nas proximidades do hotel em Buenos Aires, Tenório teria sido torturado por vários dias por agentes argentinos e brasileiros.
Mesmo com a certeza de que o músico não tinha nenhuma atuação ou ligação política, após as seguidas sessões de pancadaria, choque e afogamentos, decidiram que não era prudente soltá-lo naquele estado e liberar a sua volta ao Brasil ou a qualquer outro lugar onde pudesse denunciar a violência pela qual passara. Com a visibilidade de Vinicius, o caso certamente ganharia uma repercussão incômoda aos dois países. Um agente argentino então atirou na cabeça de Tenório e o corpo foi enterrado clandestinamente num cemitério de Buenos Aires. Até um número de sepultura foi dado como o local onde estaria o corpo.
A esperança da família em ter pelo menos os restos mortais de Tenório, no entanto, durou pouco. As buscas no local indicado deram em nada. A credibilidade do ex-torturador, que já não era das maiores por causa da tentativa de negociar suas informações por altas somas, sempre foi questionada e caiu mais ainda quando foi preso no ano passado por estelionato no Paraná.
Nessas quase quatro décadas desde o desaparecimento, Carmen Magalhães Tenório Cerqueira e seus filhos aprenderam a tocar suas vidas, mesmo com as dificuldades burocráticas que a falta de uma certidão de óbito provoca. Indenizações – ainda que irrisórias – amenizaram um pouco alguns dos desconfortos depois que os dois países passaram a adotar programas de apuração das barbaridades cometidas nos anos de chumbo.
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