por Fábio de Sá e Silva na Carta Maior
Graças ao trabalho de setores da imprensa, o país veio a saber que o Procurador da República em São Paulo, Rodrigo de Grandis, incorreu em grave falha na condução de um procedimento que tramitava em seu gabinete.
O erro consistiu na demora e, no limite, na ausência de resposta a pedidos de cooperação advindos de autoridades suíças, com vistas a investigar práticas de corrupção envolvendo executivos da empresa Alston e dirigentes – “funcionários, diria Alckmin – do governo de São Paulo. Por essa razão, o caso acabou sendo arquivado na Suíça.
Possíveis corruptores e corruptos, assim, tendem a ficar impunes. E, tão ou mais grave que isso, o Brasil e os brasileiros perdem uma chance preciosa de obter maiores informações sobre o que, há pouco tempo, graças a denúncias feitas por executivos da Siemens, pareceu ter sido um padrão na forma de condução de vultosas compras de trens pelo governo de São Paulo: a formação de cartel entre as empresas – com a fixação de preços previamente às licitações, na burla do regime de concorrência pretendido por estas –, sob a mediação ativa e o recebimento de propinas por parte das autoridades.
“Falha administrativa”, disse inicialmente o Procurador, explicando que os pedidos das autoridades suíças haviam sido arquivados por engano em pasta errada em seu gabinete. Esta versão, desde sempre problemática, teve, porém, curtíssima existência. Horas depois o Ministério da Justiça revelava que enviou várias cobranças ao Procurador em relação às providências que por ele vinham sendo adotadas para efetivar a cooperação pretendida pelas autoridades suíças.
A situação, não há dúvida, fica complicada para de Grandis. Ou seu descuido na condução do caso era tal que nem as diversas cobranças do Ministério da Justiça permitiram que ele se desse conta de que devia uma resposta aos suíços, ou ele adotou uma atitude deliberada de ignorar os pedidos e frear as investigações que corriam na Suíça, mas que certamente teriam repercussões em solo brasileiro. Se esse quadro admite as mais variadas especulações, o PT resolveu mover a primeira pedra no tabuleiro e representou contra o Procurador no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
A iniciativa petista deve render algum tipo de apuração administrativa em relação à conduta do Procurador. Mas a situação como um todo deve dar margem a uma reflexão mais ampla sobre os poderes e os limites desse que se tornou um dos principais personagens do contexto político-jurídico brasileiro: o Ministério Público.
A história da assembleia constituinte é reveladora de notável capacidade de articulação política dos membros do Ministério Público, que souberam aproveitaram como poucos aquela oportunidade para consolidar uma mudança institucional iniciada nos anos 1980. Em paralelo, assim, às funções tradicionais de persecução criminal, o órgão adquiriu funções ligadas à defesa “da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127), além da autonomia funcional, administrativa e financeira de que já desfrutavam os magistrados.
A experiência histórica que se seguiu à promulgação da Carta, por sua vez, deu um sentido bem mais preciso para aquelas previsões. Estudioso desse processo, o cientista político Rogerio Arantes aponta para a emergência de um “agente político do direito”, motivada, principalmente:
(i) Pelo reconhecimento, na legislação, de direitos coletivos e difusos;
(ii) Pela atribuição, ao Ministério Público, de um virtual monopólio no uso dos instrumentos para a defesa de tais direitos – nomeadamente a ação civil pública e o inquérito civil público –, transformando-o em órgão “tutelar” da sociedade”;
(iii) Pelos grandes níveis de independência interna e externa adquiridos pelo Ministério Público, o que se traduz no ditado comum entre promotores de que “na sua atuação, [eles] só se subordinam à lei e à sua própria consciência”; e
(iv) Pelo desenvolvimento de uma ideologia de “voluntarismo político” no seio da organização, segundo a qual a sociedade é incapaz de defender seus direitos, os poderes instituídos são corrompidos, e “alguém precisa fazer alguma coisa”.
Em tempos mais recentes, o combate à corrupção, especialmente em casos de grande repercussão, como a Ação Penal 470 – tachada pelo então Procurador Geral da República, de maneira no mínimo imprecisa, de “o maior escândalo da história do Brasil” – fez com que essa história entrasse em um círculo aparentemente virtuoso. Pelo exercício de sua identidade institucional ligada à “defesa da sociedade”, o Ministério Público estaria a acumular cada vez mais legitimidade; o que, por sua vez, lhe permitiria e encorajaria a aprofundar o exercício daquela mesma identidade.
O auge desse processo foi a campanha contra a PEC 37, que restringiria a possibilidade de investigação criminal do Ministério Público em favor das polícias judiciárias. A PEC, como se sabe, representava, em grande medida, um front de longas batalhas corporativas. Mas no contexto providencial dos protestos de junho, que teria tido no combate à corrupção uma das principais bandeiras, foi pronta e argutamente tachada, pelo Ministério Público e seus integrantes, de “PEC da impunidade”. O resultado, que muitos puderam acompanhar em rede nacional, foi um massacre da proposta na Câmara dos Deputados, culminando com uma teatral determinação de arquivamento pelo Presidente desta Casa.
Grandes poderes, porém – diria Benjamin Franklin –, trazem grandes responsabilidades. Ao reivindicar tamanha centralidade na “defesa da sociedade”, é natural que o Ministério Público suscite entre os cidadãos expectativas elevadas de que será capaz de apurar e punir seus próprios desvios. E não é impossível que tais expectativas venham a frustradas, como ocorreu no caso de Demóstenes Torres, cuja cassação pelo Congresso e cujas evidências da prática de tráfico de influência ainda não foram suficientes para ensejar qualquer reprimenda na carreira de Promotor de Justiça em Goiás, afora uma suspensão cautelar que há meses lhe garante proventos de cerca de 18 mil reais por mês.
Mas em relação a de Grandis – que, diferente de Demóstenes, atuava efetivamente como Procurador –, mesmo uma rigorosa e célere apuração não será mais que uma resposta tímida. O desafio colocado é o de um aperfeiçoamento institucional bem mais radical para o Ministério Público, que passa por políticas de maior transparência e accountability.
Entre as muitas medidas que podem ser tomadas a esse respeito, algumas são: a superação do modelo de controle de cúpula pelo CNMP em favor de um controle verdadeiramente social; a abertura dos dados de movimentação dos processos que tramitam em cada gabinete, de modo que a população possa entender quais têm sido os casos priorizados – salvo, obviamente, os que requeiram algum tipo de sigilo; a priorização de pautas mais ligadas aos setores populares, como a violência policial e as lutas de minorias e grupos vulneráveis; a utilização de expedientes como audiências públicas para coletar sugestões da sociedade sobre o sentido geral de sua atuação; e a prestação de contas periódica, com a disponibilização de relatórios sobre as tarefas desempenhadas em cada uma das unidades e instâncias do órgão e uma discussão de seus impactos na melhoria das demais instituições e das relações sociais como um todo.
Em se tratando de uma organização complexa, mas também bastante poderosa, a abertura de uma janela de oportunidades para mudanças como essas dependerá de condições nada triviais. Mas em algum momento, forçar essa abertura será medida necessária – se não para garantir que o órgão continue a dispor de legitimidade, ao menos para fazer com que sua atuação ganhe maior congruência com um dos princípios constitucionais que permitiram a sua emergência e consolidação: o de que, em uma República, ninguém pode se pretender a salvo de controles. Nem mesmo os controladores.
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