por Venício A. de Lima no Vermelho
“A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento: a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso e bem aventurança do mundo”. (Aviso ao Povo Bahinence – Revolta dos Alfaites, 1798)
Aqueles da geração que completou 18 anos por volta de 1964 encontramos neste Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento IV –, décimo livro do jornalista e escritor Emiliano José, motivos de sobra para refletir sobre um tempo sombrio da nossa própria biografia e do nosso país. Não me refiro apenas àqueles que, de uma forma ou de outra, se alinharam em oposição ao golpe militar. Também os que o apoiaram ou se mantiveram politicamente distantes, encontrarão aqui memórias, testemunhos, histórias de vida que não se pode ignorar, até porque muitas ainda não foram concluídas, continuam abertas como feridas expostas ao tempo. Por outro lado, outras gerações, sobretudo as mais novas, terão aqui o mosaico de uma triste época que – se ainda não conhecem – precisam e devem conhecer até mesmo para que saibam se colocar dentro da História na qual estão inseridos e, mais que isso, à qual pertencem.
Quarenta e dois artigos, entrevistas, resenhas, reportagens publicados em revistas, jornais e sítios na internet são organizados em doze capítulos, nas palavras do Autor, em torno de “um núcleo central, que é tratar a repressão, voltando-se especialmente para personagens que viveram a luta política baiana [contra a ditadura militar]”, embora estejam também presentes “personagens da luta revolucionária de outros Estados e, inclusive, um pouco da história de luta dos negros, de séculos passados”.
Memórias do ex-Consultor Geral da República, ao tempo do governo de João Goulart, Waldir Pires, em preciosos relatos sobre o encadeamento dramático dos acontecimentos, em Brasília, que culminaram com o golpe de 64 incluindo lembranças de Darcy Ribeiro e uma reflexão “arendtiana” sobre a diferença entre a compaixão e a política.
Memórias de Marighela e Lamarca, da epopeia trágica do Araguaia, do encontro recente da ex-prisioneira política Dilma Rousseff com um novo tipo de arguidor autoritário no Senado Federal, de figuras saudosas da Igreja Católica como Dom Helder, Dom Timóteo e Cláudio Perani e da ação destemida da advogada Ronilda Noblat na defesa de presos políticos baianos.
Memória preservada
O leitor (a) também tomará conhecimento de incríveis histórias de puro horror como a tortura inconcebível perpetrada contra duas crianças – Janaina e Edson Luís – pela simples razão de serem filhos de um casal de jovens opositores do regime, já preso e torturado; ou aquela pela qual passaram os quase homônimos Marco Antonio Pinheiro Silva e Marco Antonio da Rocha, sendo que o primeiro nada tinha a ver com as atividades do segundo.
Há ainda considerações sobre os heróis esquecidos da Revolta dos Alfaiates (1798), e do Levante dos Malês (1835), além do registro da intolerável permanência de diferentes formas de preconceito racial. Ao lado disso, registros dos tempos de resistência às ditaduras no Chile, na Argentina e no Uruguai.
Para aqueles que não sabem, há pelo menos um relato direto que se passou com o próprio Autor quando preso político na Penitenciária Lemos de Brito e, algemado, foi transferido de Salvador para São Paulo. A viagem de avião aconteceu sem que lhe dissessem qual o seu motivo ou para onde seguiam. Todo o horror de expectativas mórbidas está contido no relato de uma interminável jornada que teve a companhia do horripilante delegado Sérgio Fleury, passageiro do mesmo avião.
Dois símbolos malditos da repressão estão presentes em vários dos relatos do livro: o próprio delegado Fleury e o “doutor” Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ambos estiveram na Bahia ao tempo da Operação Radar (1973-1975) que tinha como objetivo desmantelar o que ainda restava do antigo PCB, o Partido Comunista Brasileiro. E lá deixaram marcas profundas.
Muitos livros já foram publicados sobre a repressão militar durante os longos 21 anos de ditadura. Não podemos esquecê-la, exatamente para não permitir que retorne. Alguns desses livros, necessários relatos pessoais, acertos de contas com o passado. Outros, cicatrizes abertas de centenas de mortos e desaparecidos cujas famílias ainda esperam ver cumprido seu direito fundamental de saber como morreram e de enterrá-los dignamente.
O que une os muitos relatos, todavia, é o compromisso com o total esclarecimento da verdade daqueles tempos sombrios. A Comissão Nacional da Verdade foi finalmente criada pela Lei nº 12.528 de 18 de novembro de 2011. Na cerimônia de assinatura da lei a presidenta Dilma afirmou “o silêncio e o esquecimento são sempre uma grande ameaça. Não podemos deixar que no Brasil a verdade se corrompa com o silêncio”.
Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento IV de Emiliano José é muito mais do que um depoimento de alguém que experimentou na própria carne a sanha criminosa dos torturadores. Na verdade, constitui um clamor vivo, quase um lamento.
O que se espera da Comissão Nacional da Verdade, oficialmente instalada com a posse de seus sete membros em 16 de maio de 2012, é o resgate histórico da memória daqueles que tombaram pelo caminho, um compromisso de todos nós, em nome da liberdade – “o descanso do homem com igual paralelo de um para os outros”. [Brasília, outono de 2012]
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