Por Mauro Santayana, no Jornal do Brasil
A grande tragédia de Santa Maria, como todas as semelhantes que a precederam, pode ser resumida em sua causa medíocre e repulsiva: a ânsia do lucro do empresário. E isso nos conduz a outras lancinantes indagações. Podemos começar pela superfície.
No mundo inteiro há estabelecimentos como a boate gaúcha. A palavra boate, vinda do francês boite, é expressiva para designar — mais do que no passado — essas casas noturnas. São caixas, fechadas, com uma só abertura. É preciso que os seus sons não saiam, para não incomodar os vizinhos, que o confinamento favoreça o convívio e amplie a estridência alucinadora dos sons.
O homem, sendo muitos, é, na definição de Huizinga, homo ludens, um ser que brinca. Essa atividade, a do jogo lúdico, não é atributo exclusivo destes primatas aprimorados que somos. Todos os animais brincam, e não só em sua própria espécie: os pesquisadores mostram relações afetivas de bichos diferentes, tanto entre os domesticados quanto entre os selvagens.
É na vida dos homens que as atividades lúdicas chegam à excelência — na música, nas artes, nos encontros sociais, entre poucas pessoas, mas também nos grandes shows musicais e no baile que, em nossa civilização de massas, pode reunir centenas ou milhares de pessoas. Algumas vezes, esses encontros só se fazem para a alegria, em outras, para ações claramente políticas, como ocorreu em Woodstock, em agosto de 1969 — na sequência do ano surpreendente de 1968.
Produzir sons e acompanhar o seu ritmo com o movimento do corpo é uma atividade que vem dos primeiros tempos da Humanidade, ainda no Paleolítico. Da madrugada da espécie, com a descoberta da beleza, que se expressava no som do soprar dos ventos sobre as árvores e arbustos, do choque das grandes ondas do mar contra os rochedos e do murmúrio sedutor das águas dos riachos. Isso sem falar no canto dos pássaros e dos insetos, todos saudando o milagre da vida, e chamando os parceiros para o amor.
A descoberta de uma flauta feita de osso de abutre, e datada de há 35 mil anos, mostra que, já naquele tempo, o homem era capaz de retirar das coisas naturais os sons e recriá-los, na doma das notas. E, deduzimos, acompanhá-los com seus movimentos corporais, na busca de harmonia e de cumplicidade com a natureza.
Em 1969, em Woodstock, os que se reuniram ao lado de Nova York tentavam retomar a estrada libertária aberta um ano antes, em Paris, em Berkeley, em Berlim, em Praga — e no Rio de Janeiro. Era o tempo de belo e antigo sonho, em que se pretendia que só fosse proibido proibir.
Em Santa Maria, os jovens só queriam ser felizes, nos momentos de ternura e no encontro com os amigos. De repente, no recinto fechado, o fogo irrompe. Como já ocorreu em outros casos, com mais vítimas e menos vítimas, o que era a celebração da vida passou a ser o festim da morte.
Não foi exatamente uma fatalidade. Não se tratou de ato de terrorismo. Tratou-se de cumplicidade criminosa entre o poder público, que não cumpre o seu dever de impor normas rígidas de segurança a tais casas de espetáculo e fiscalizar seu cumprimento; a ganância empresarial privada e a irresponsabilidade dos jovens músicos, que agiram sem a orientação de pessoas mais experientes.
Estamos perdendo a capacidade de associar uma ideia à outra, no planejamento de qualquer ato. E muito mais do que isso, estamos perdendo a noção de que pertencemos à Humanidade. Esquecemo-nos da advertência de John Donne em seus belos versos: nenhum homem é uma ilha. Quando os sinos de Santa Maria dobram nos sons de finados, eles dobram pela nossa agonia como seres humanos. Não estamos mais seguindo o mandamento cristão de doar o que temos, seja o pão, seja o afeto, mas obedecendo ao mandamento diabólico do egoísmo, do lucro fácil, do desrespeito às normas necessárias de convívio.
Quando passar o luto, se não agirmos como cidadãos, casas noturnas como a de Santa Maria continuarão a superlotar seus recintos e a manter fechada a porta, a fim de impedir que as pessoas saiam sem provar que pagaram a conta.
Os adolescentes e jovens começaram a ser sepultados ontem, com a terra salgada pelas lágrimas de seus pais e irmãos. E com as lágrimas da nação, que a presidente da República deixou escorrer em sua visita aos mortos.
É preciso punir este crime hediondo.
Mas devemos pensar em como usufruir a graça da vida, em como repartir, com igualdade, os bens e a alegria do mundo, assim como quase todos nós — menos alguns poucos — estamos dividindo, com os que perderam os seus seres amados, as dores destas horas.
Todo o Brasil que se merece está em Santa Maria.
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