A chegada ao viaduto do Chá foi surpreendentemente rápida. Trabalhadores e lojistas tinha ido embora mais cedo, deixando o centro de São Paulo estranhamente vazio às seis horas da tarde. Contornei o Teatro Municipal, e segui a pé, para cruzar o viaduto rumo à Prefeitura – onde os manifestantes se concentravam. Estava acompanhado da equipe de gravação da TV.
No sentido contrário, a massa marchava. Pareciam estudantes razoavelmente organizados: carregavam faixas de diretórios acadêmicos, bandeiras da UJS, mas também muitos cartazes desenhados a mão: “O Brasil acordou”, “Fora FIFA”, entre outros. Um rapaz me informou: ”estamos indo pra Paulista porque o Haddad nem está mais aí na Prefeitura”. Haddad tinha seguido ao encontro da presidenta Dilma, para uma reunião no Aeroporto de Congonhas. Pensei em tomar o rumo da Paulista, mas meu chefe de reportagem avisou pelo rádio: “acho melhor você ficar por aí, porque um grupo pequeno resolveu ficar pra atacar a Prefeitura”.
Pouco a pouco me aproximo do prédio. O grupo que ficou não era tão pequeno assim. E o que vejo e ouço é estranho – pra dizer o mínimo. Há homens mascarados, muita gente de coturno. E há também jovens que conversam com a gíria típica da periferia paulistana. Misturados a eles, moleques com jeito de playboys de classe média. Gritam palavras de ordem de forma desorganizada e aleatória.
Um menino, a meu lado, grita “Fora, petralhada”, e “Fora, Dilma”. Puxo papo, e ele conta: “Sou do grupo Mudança Já, que luta por menos impostos e uma gestão eficiente”. Esse não parece da periferia. Pelo papo e pelas roupas. De fato, mora no Jabaquara – bairro de classe média. O menino fala mal do MPL – Movimento Passe Livre, que puxou as manifestações desde o início. “Esses não me representam, são agitadores e falam com jeito de comunista”.
Êpa…
De repente, o grupo dos mascarados se exalta e avança sobre os portões da Prefeitura. Voam pedras, arrancadas do calçamento do centro antigo. Pedras portuguesas. Jovens mascarados arremetem contra os homens da Guarda Civil Metropolitana. Um deles usa camiseta branca justa, bota em estilo militar e age com a volúpia típica dos provocadores que conhecíamos tão bem nos anos 80 – quando a Democracia ainda engatinhava. É o rapaz que aparece nas fotos acima…
Alguns picham as paredes da Prefeitura. A turma mais moderada grita: “sem vandalismo”. Os mascarados devolvem: “sem moralismo”. Um rapaz passa a meu lado e grita: “vamos quebrar tudo”. E quebram mesmo.* Pedras voam perigosamente sobre nossas cabeças.
Mas a imagem mais chocante eu veria logo depois. Um grupo segura uma bandeira brasileira e queima. Um rapaz grita: “foda-se o Brasil, Nacionalismo é coisa de imbecil”. E aí tenho certeza que há um caldo de cultura perigoso por aqui.
Um Brasil fraco, um Estado nacional sob ataque, não será capaz de melhorar a vida do povo. Isso interessa para os conservadores e para seus aliados nos Estados Unidos.
De repente, chega um grupo novo, mais de cem pessoas. Trazem uma faixa amarela, com a frase “Chega de Impostos – Mooca”. O bairro da Mooca é um reduto da classe média – em geral, conservadora. A palavra de ordem é “Fora, Dilma”.
Um funcionário da Prefeitura meio gordinho aparece na janela. Ao meu lado, um grupo berra pra ele: “Gordo, filho da puta, você vai morrer. Você come nossos impostos, filho da puta”.
Penso com meus botões: essa turma foi pra rua pra pedir serviços públicos de qualidade e, de repente, está pedindo também menos impostos, menos Estado. E queimando a bandeira do Brasil. O que é isso?
Ah, é o sintoma de uma sociedade que incluiu jovens pelo consumo, sem politização. Ok. Isso está claro. Desde 2010, dizíamos nos blogs que essa equação do lulismo poderia não fechar. Despolitização? Ou pior que isso: um pé no fascismo? O discurso que nega a Política é a melhor forma de deixar a avenida aberta para uma Política autoritária.
Claro que o povo na rua é muito mais que isso. O recorte que descrevo acima é bastante específico. Entre os milhares que foram para a Paulista, na segunda e na terça-feira em São Paulo, havia muita gente progressista, disposta a mudar o Brasil. Mas ali também imperava o “Fora, Políticos”. Ora, se todos foram eleitos, o que será que essa turma imagina? Sovietes no Grajaú e no Morro do Alemão? Nada disso. A idéia de muitos por hora é botar fogo em tudo. Qual será o fim disso?
A esquerda organizada, hoje tive certeza, precisa disputar as ruas. Lula precisa reaparecer e botar o bloco na rua.
Outro dia escrevi aqui: quando vemos esse clima de “Fora, todos os Políticos” podemos imaginar duas saídas possíveis
- a Argentina que escolheu os Kirchner para se recuperar depois do caos;
- ou a Espanha, que levou jovens “indignados” para as praças (e lá também bandeiras de partidos eram “proibidas”) mas no fim das contas elegeu os franquistas do PP.
No Brasil, o jogo está sendo jogado. A massa lulista – aquela massa forte das periferias das capitais, e do Nordeste – essa massa não está nas ruas. Isso ficou claro pelo que vi e ouvi nas ruas de São Paulo.
Nas ruas há uma mistura: ultra-esquerda, nova esquerda, indignados em geral e, infelizmente, também há o velho lúmpen que pode virar – fácil, fácil – caldo de cultura para uma saída autoritária.
Quem conhece bem a história do Brasil não ficaria surpreendido se, desse processo todo, nascesse não “uma nova política”. Mas um governo (mais) conservador, que botasse o Brasil de novo “nos trilhos” da submissão aos EUA, jogando fora os tênues avanços da Era Lula.
Afinal, “foda-se o Brasil”, não é? Essa cena não vou esquecer: a nossa bandeira queimada por jovens tresloucados que afirmam querer mudar o país. Foi estranho.
* Ao fim da manifestação, parte dos jovens mascarados avançou em direção ao carro da TV Record que estava diante da Prefeitura e tocou fogo no veículo. Tudo que parece – ou é – símbolo de poder acaba virando alvo. Nenhum jornalista ficou ferido. O alvo era a empresa.
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