A Morte do Pingo d'Água
10 de Março de 2015, 13:33Foi bem na aurora do dia, aquela hora mais fria, que ouvi o sapo cantar. Era tanta água caindo, tanta água escorrendo que no pátio deu pra nadar. Mas foi o primo do Oliveira, entregador de tomates e cebolas, quem fez meu cabelo arrepiar. Puxou adaga, pistola e machado e dentro dos pingos d'água um buraco começou a fuçar. Descarregou o tambor da pistola. Abriu brechas com o fio do machado. Mas foi com a arma mais curta, certeira e fina que o coração de um pingo foi encontrar. Com terror nos olhos, o assassino cutucou um pequeno cutuco e o pingo numa charla deitou-se a cantar e quanto mais entrava o punhal mais o pingo conversava com quem não estava lá. Foi falando e foi falando e quase um ano e tanto se passou. Só não houve mais tempo porque até o fim do cabo o punhal entrou. Foi bem na aurora daquele dia, a hora mais fria, de arrepiar, quando o bem-te-vi sequer pia e a coruja já não está, que a saparia danada pô-se a cantar. Desafinada. O punhal que furou o pingo também furou o ar, e o meu dedo, e diferente da gota d'água eu parei de cantar. Foi até o punhal danado dar uma volta e meia e a gota dilacerar, e escorrer pelo fino fio da navalha e também pela ponta do cabo, e os dedos do assassino molhar. Estrebuchado e despencando, o pingo de chuva se foi, mas foi sorrindo maroto com o feito que deixou. E eu, ferido no dedo, chorei pelo dedo ferido e pelo sangue que pingou. E você, de armas em punho, riu até cambalear, gritando a todo o universo o feito que marcou: com adaga traiçoeira o pingo d'água matou. E justo aquele que regaria o pé de feijão de Maria!Interiores azedos
4 de Março de 2015, 19:51Olhava meus pedaços amontoados. Alguns eram só metades de ontem. Esquisitos. Submersos. Rascunhos. Nem a bela chuva que risca o céu e nem o céu que risca a vida me deram avisos de você. Só as plantinhas crescendo encostadas num muro, no mesmo lugar em que me amontoei. Deve ser a Primavera que corre pra me encontrar no calendário, rindo dos ótimos dias em que não existi!Grossas Nuvens de Sol no Guarda-chuva de Elena
27 de Fevereiro de 2015, 9:38Pequenos tomateiros enfiados no chão arenoso, amparados por tijolos empilhados, grudados com cola, pintados de branco por onde escorre a água translúcida da chuva, observados por antigas árvores e um pássaro que grasna para a madrugada. O bem-te-vi canta de tempos em tempos, e coça e revira e arranca penas que deixou nas estrelas do céu do Campeche. Vez ou outra aparece um João de Barro... Ah!, esses joões que cantam fora de suas casas e dentro delas se ajoelham, imperdoáveis!!!"Me respira, Humanidade, giram pó e cacos (de memórias e carne de braços e corações) enquanto o Sol espana com furor a total superfície do planeta (e eu aqui, olhando os tomateiros que morrem quase ao final do Verão). Sob uma pedra meio aberta, um conjunto de poemas em folhas de diversas cores sorri ao incendiar-se a partir das bordas (esvai-se o tempo e embarcado nele, a verdade). Me respira, desoxigenado Mundo (e que eu entupa todos os teus caminhos, e nessas obstruções, dilarece as verdades, transformando-as em nada), o acorrentado ao trabalho, ao possuir, à falta de tempo, gritam as letras no exato momento em que fritam e se esvaem como uma réstia de carbono (e com as letras me vou, sucumbindo ao grito que não saiu, e morrendo no fundo dos olhos que esfriam). O Homem ergue as mãos em busca de ar e céu (e no céu, os tomateiros revigoram sem tomates, enfeitando potes que ficam pelos caminhos, e em cada pote amostras de cinzas de cada ser que há-de-vir), num ato primeiro e, depois, de joelhos e rendido e acorrentado e preso às poucas palavras que ainda balbucia, recomeça: (estava na esquina, como um ás de espada, fumando um cigarro enrolado com minhas memórias sonhadas e perversas, e mais malditas, memórias sussurradas ao pé do ouvido da maldade e da manipulação e da mentira, olhava a cidade que passava em filas e eu sempre fora delas, correndo parado, estralando os ossos de tanto peso e orgulho, sem nada para carregar nos ombros e nos braços. E em cada sono, recomeça: me respira, Humanidade, para que eu possa apagar numa combinação metabólica e reiniciar imitando a voz que sussurra!)