“Por acreditar que no Brasil de hoje a
busca pelo “direito à verdade e à memória” é condição essencial para nos
libertarmos de um passado que não podemos esquecer, aceitei o convite
da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro para fazer hoje, aqui, esse
depoimento.
Mesmo sem nenhum mandato, quero falar em
nome dos presos, torturados, assassinados e desaparecidos pela ditadura
militar que vigorou no nosso país entre 1964 e 1985.
Como historiadora, sei que a memória não
diz respeito apenas ao passado. Ela é presente e é futuro. Os
testemunhos que estão sendo dados à Comissão da Verdade, embora sobre o
passado, dizem respeito ao presente e apontam para o futur o, por isto
mesmo espero que ajudem a construir um Brasil mais justo e solidário.
Sei também que da memória - sempre seletiva - , fazem parte o silêncio e
o esquecimento. Por isso, nessas minhas fortes lembranças, permeadas
por ruídos, odores, cores e dores, estarão presentes ausências e
esquecimentos.
Nascida e criada em Recife, fiz parte de
uma geração que sonhou e lutou muito. Queríamos romper com as
tradições, acabar com miséria e com as injustiças sociais, reformar a
universidade, derrubar a ditadura, enfim, queríamos transformar o Brasil
e o mundo.
Em 1968, um ano marcado por muitas
paixões e fortes embates políticos e ideológicos, eu, cursando o segundo
ano de Ciências Sociais, fui eleita secretária geral do Diretório
Central dos Estudantes da Universidade Federal de Pernambuco, DCE,
entidade que congregava todos os estudantes daquela universidade.
Naquele ano o movimento estudantil explodiu por toda parte. No Brasil,
depois da famosa Passeata dos Cem Mil, realizada aqui no Rio de Janeiro e
que tentamos replicar nas diversas capitais do país, o ano terminou com
a decretação do Ato Institucional n. 5. A partir daí, as prisões, as
mortes e as torturas, iniciadas em 1964, aumentaram. A radicalização do
regime, para muitos de nós, justificava a continuidade da nossa luta.
Foi também em 1968 que ingressei em uma organização de esquerda armada, a
Ação Libertadora Nacional, ALN.
No início de 1970, perseguida pelos
órgãos da repressão, fugi do Recife e vim para o Rio de Janeiro. Poucos
meses depois, fui presa.
Naquela noite do dia 20 de agosto de
1970, no momento em que entrei no quartel da Polícia do Exército situado
na Rua Barão de Mesquita número 425, no bairro da Tijuca, no Rio de
Janeiro, ouvi uma frase que até hoje ecoa forte nos meus ouvidos: “Aqui
não existe Deus, nem Pátria, nem Família. Só existe nós e você.” Hoje,
passados mais de 40 anos, penso no efeito que aquela frase produziu, em
mim. Com vinte e um anos de idade, cheia das certezas e transbordando de
paixões, eu não queria morrer. Embora totalmente acuada e literalmente
apavorada, aquela frase, não deixava a menor dívida para algo que eu já
sabia, mas que naquele momento ganhou força e concretude. Não havia
comunicação ou negociação possível entre aqueles dois mundos: o meu e o
deles.
Era naquele quartel que funcionava o DOI
CODI. O prédio tinha dois andares. Diferentemente do que muitos dizem,
aquele lugar não era um “porão da ditadura”, um local clandestino.
Embora ali não existisse “nem Deus, nem pátria, nem família”, eu estava
em numa dependência oficial do Exército brasileiro. Uma instituição que
funcionava a todo vapor, com todos os seus rituais, seus símbolos, seus
hinos, sua rotina. Ali fiquei mais de três meses.
No andar térreo, tinha a sala de
tortura, com as paredes pintadas de roxo e devidamente equipada, outras
salas de interrogatório com material de escritório, essas às vezes
usadas, também, para torturar, e algumas celas mínimas, chamadas
solitárias, imundas, onde não havia nem colchão. Nos intervalos das
sessões de tortura, os presos eram jogados ali. No segundo andar do
prédio havia algumas celas pequenas e duas bem maiores, essas com
banheiro e diversas camas beliches. Foi numa dessas celas que passei a
maior parte do tempo.
Normalmente os torturadores, embora
quase todos militares, andavam à paisana. Os fardados cobriam com um
esparadrapo o nome que estava gravado em um dos bolsos do uniforme.
Cabia aos cabos e soldados, cuidar da infraestrutura. Eram eles que
fechavam e abriam as celas, nos levavam para os interrogatórios, ou
melhor, para as sessões de tortura, faziam a ronda noturna, levavam as
nossas refeições. Ali não havia banho de sol, visita familiar, conversa
com advogado. Nenhum contato com o mundo lá de fora. Naquela fase,
éramos presos clandestinos. Só saíamos das celas para os
interrogatórios, de olhos vedados, sempre com um capuz preto na cabeça.
Quase todos os que faziam o trabalho de infraestrutura, incorporavam o
ambiente da tortura. Mas, tinham algumas exceções. Um dos soldados, por
exemplo, me deu um pedaço de papel e uma caneta para eu escrever uma
carta para meus pais. E, de fato, a carta chegou ao destino.
Durante os mais de três meses que fiquei
no DOI CODI, fui submetida, em diversos momentos a diversos tipos de
tortura. Umas mais simples, como socos e pontapés. Outras mais grotescas
como ter um jacaré, andando sobre o meu corpo nu. Recebi muito choque
elétrico e fiquei muito tempo pendurada no chamado “pau de arara”: os
pés e os pulsos amarrados em uma barra de ferro e a barra de ferro,
colocada no alto, numa espécie de cavalete. Um dos requintes era nos
pendurar no pau de arara, jogar água gelada e ficar dando choque
elétrico nas diversas partes do corpo molhado. Parecia que o contato da
água com o ferro, potencializava a descarga elétrica. Embora, essa
tenha sido a tortura mais frequente havia uma alternância de técnicas.
Uma delas, por exemplo, era o que eles chamavam de “afogamento”.
Amarrada num cadeira, de olhos vedados, tentavam me sufocar, com um pano
ou algodão umedecido com algo com um cheiro muito forte, que parecia
ser amônia.
De um modo geral, para os presos, a
barra mais pesada ocorria nas primeiras 24 horas após a prisão. Era a
corrida contra o tempo: para eles e para nós. Durante essas primeiras
horas, duas eram as perguntas básicas: ponto e aparelho. Ponto era o
local, na rua, onde os militantes se encontravam e aparelho era o local
de moradia ou de reunião.
Não sei quanto tempo durou a minha
primeira sessão. Só sei que ela acabou quando eu cheguei no limite.
Muito machucada, e sem conseguir me locomover, ouvi, ao longe, um bate
boca entre os torturadores se eu deveria ou não ser levada para o
Hospital Central do Exército. A minha prisão, consequência de um contato
familiar, tinha muita testemunha. Ou seja, muitos familiares, que nada
tinham a ver a minha militância foram presos e levados para o DOI CODI.
Sobre essas prisões nada ficou documentado.
Quando eu passei a correr risco de vida,
montaram uma pequena enfermaria em uma das celas do segundo andar. Ali
fui medicada, ali fiquei tomando soro. Meu corpo parecia um hematoma só.
Por conta, sobretudo, da grande quantidade de choque elétrico, fiquei
com o corpo parcialmente paralizado. Achava que tinha ficado paralítica.
Aos poucos fui melhorando. Fiquei um bom tempo sem descer para a sala
roxa. Mas, ouvir gritos dos outros companheiros presos e ficar na
expectativa de voltar, a qualquer momento para a sala roxa, era
enlouquecedor.
Uma noite, que não sei precisar quando,
desci para a sala roxa para ser acareada com o militante da ALN, Eduardo
Leite, conhecido como Bacuri. Lembro até hoje dos seus olhos, da sua
respiração ofegante e do seu caminhar muito lento, quase arrastado, como
se tivesse perdido o controle das pernas. Num tom sarcástico, o
torturador dizia para nós dois, na presença de outros torturadores:
“viram o que fizeram com o rapaz. Essa turma do Cenimar é totalmente
incompetente. Deixaram o rapaz nesse estado, não arrancaram nada dele e
ainda prejudicaram nosso trabalho”. No dia 8 de dezembro daquele ano,
mataram Bacuri.
Durante o tempo que fiquei sozinha na
tal cela grande do segundo andar, com muita dor, sem ter absolutamente
nada para fazer, achava que ia enlouquecer. Para passar o tempo,
inventei duas atividades: contar os ladrilhos do chão e fazer pequenas
tranças com palhas retiradas dos colchões.
Foi nessa mesma cela que, naqueles
primeiros dias, foi acolhida, durante alguns minutos, por Ana Burzitin,
encarregada de dar meu primeiro banho. Depois de algum tempo , chegaram
ou passaram por lá Cecília Coimbra, que também me ajudava no banho,
Margarida Solero, a canadense Tânia Chao, Maria do Carmo Menezes,
Carmela Pezzutti, Vânia, Marcia e Josi. Todas igualmente torturadas.
Juntas, totalmente apoiadas umas nas outras, chorávamos, cantávamos e
rezávamos muito.
No dia 20 de outubro, dois meses depois
da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia
para uma aula de tortura. O professor, diante dos seus alunos fazia
demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática, com
algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada
no tal do pau de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais
eficaz”. Acho que o professor tinha razão. Como comecei a passar mal, a
aula foi interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois,
vários oficiais entraram na cela e pediram para o médico medir minha
pressão. As meninas gritavam, imploravam, tentando, em vão, impedir que a
aula continuasse. A resposta do médico Amilcar Lobo, diante dos
torturadores e de todas nós, foi: “ela ainda aguenta”. E, de fato, a
aula continuou. A segunda parte da aula foi no pátio. O mesmo onde os
soldados diariamente, faziam juramento à bandeira, cantavam o hino
nacional. Ali fiquei um bom tempo amarrada num poste, com o tal do capuz
preto na cabeça. Fizeram um pouco de tudo. No final, avisaram que, como
eu era irrecuperável, eles iriam iam me matar, que eu ia virar
“presunto”’, um termo usado pelo Esquadrão da Morte. Ali simularam meu
fuzilamento. Levantaram rapidamente o capuz, me mostraram um revolver,
apenas com uma bala, e ficaram brincando de roleta russa. Imagino que os
alunos se revezavam no manejo do revolver porque a “brincadeira” foi
repetida várias vezes.
No final de novembro fui transferida
para o DOPS, na rua da Relação, no centro do Rio de Janeiro. Ali,
durante um mês, fiquei numa cela com a médica Germana Figueiredo. A ela,
também, muito devo. Com o dobro da minha idade, cuidou de mim como uma
mãe. Durante a minha estadia no DOPS fui levada para o Instituto Médico
Legal, IML, para fazer um exame de corpo de delito. Achavam que eu seria
uma das presas políticas trocadas pelo embaixador suíço, sequestrado no
dia 8 de dezembro. Uma das exigências da embaixada era que os
prisioneiros que fossem trocados pelo embaixador tivessem um laudo
médico oficial do Estado brasileiro sobre o seu estado físico. E eu,
quase quatro meses depois, ainda estava marcada pelas torturas. Essas
marcas constam do laudo oficial do IML, que, o meu advogado Heleno
Fragoso, conseguiu anexar ao meu processo. Mas, no final de dezembro, ao
invés de sair rumo ao Chile, como os companheiros que foram trocados
pelo embaixador suiço, eu fui transferida para o presídio Talavera
Bruce, em Bangu, zona norte do Rio de Janeiro. Depois de ter ficado ali
quase seis meses, enfrentando uma barra bastante pesada, fui
transferida para o presídio Bom Pastor, em Recife.
Ao todo fiquei presa um ano e quatro
meses. Como tinha vários processos, mas nenhum julgamento concluído, saí
da prisão no dia 14 de dezembro de 1971, com um recurso jurídico
chamado “relaxamento de prisão preventiva”. Era uma espécie de
“liberdade condicional”. Tinha várias restrições e não podia me ausentar
do país. Anos depois, a Justiça Militar me absolveu. Mas, nenhuma
absolvição pode apagar os métodos utilizados durante o tempo que estive
presa sob a responsabilidade do Estado brasileiro.
No momento em que estava escrevendo esse
depoimento, me veio à cabeça um texto que li, também no famoso ano de
1968, no curso de literatura que fazia na Aliança Francesa de Recife.
Esse texto, que muito me mobilizou tem o título de J’Accuse, em
português, Eu Acuso. Em carta endereçada ao Presidente da República
Francesa, escrita em 1898, o escritor francês Emil e Zola fazia uma
defesa pública de Alfred Dreyfus, preso e condenado à morte por conta de
uma falsidade e de um grave erro judicial. Começando todas as frases da
carta com a expressão Eu Acuso, aquele documento produziu um enorme
impacto na sociedade francesa. Obviamente sem a pretensão literária de
Zola, mas esperando que os trabalhos da Comissão da Verdade produzam
também impacto forte na sociedade brasileira, eu finalizo esse meu
depoimento, fazendo uma espécie de plágio ao texto do famoso escritor
francês.
Eu acuso todos os torturadores, civis e
militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam
apenas cumprindo ordens dos seus superiores.
Eu acuso os altos oficiais e comandantes
do Exército brasileiro que, em visitas oficiais ao DOI CODI, entravam
nas nossas celas e faziam gracejos com as nossas torturas. Em uma dessas
visitas, um desses oficiais, colocou seu acompanhante, um cão pastor,
para lamber minhas feridas.
Eu acuso quem, durante a minha primeira sessão de tortura, me deu uma injeção na veia, dizendo ser o tal “soro da verdade”.
Eu acuso o major da Polícia Militar
Riscala Corbaje, conhecido como doutor Nagib, que ao perceber que o tal
soro da verdade não havia produzido o efeito esperado, me levou para uma
pequena sala, me deitou no chão, subiu nas minhas costas, começou a
pisotear e me bater com um cassetete, dizendo, aos gritos, que ia me
socar até a morte. O seu descontrole foi tamanho e seus gritos tão
estridentes que os outros torturadores entraram na sala e arrancaram ele
de cima de mim.
Eu acuso o major do Exército João Câmara
Gomes Carneiro, conhecido como Magafa, que em uma daquelas noites, dias
depois que eu havia saído do soro, me deixou durante algumas horas, em
pé, com um capuz na cabeça e os fios amarrados nos meus dedos. De tempos
em tempos ele cochichava nos meus ouvidos que eu tivesse “um pouco de
paciência” porque ele estava muito ocupado, mas que “a sessão dos
choques elétricos iria começar a qualquer momento”. Para mim aquele foi
um tempo quase infinito. A despeito de ser aquela uma noite muito fria,
quando voltei para a cela, minha roupa estava totalmente molhada, colada
no corpo, de tanto que eu havia transpirado de medo.
Eu acuso o médico Amilcar Lobo que fez
uso dos seus conhecimentos médicos para auxiliar no esquema da tortura.
Um dia, diante do nosso clamor para que ele tentasse impedir que Maria
do Carmo Menezes, grávida de cinco meses, continuasse sendo torturada,
ele nos respondeu: “comunista não pode engravidar”.
Eu acuso o cabo Gil, um dos responsáveis
pela infraestrutura do quartel da PE. O seu sadismo era sem fim. Lembro
até hoje do barulho forte das chaves quando ele abria a porta da nossa
cela com o capuz na mão. Propositalmente, ele demorava um tempo e, como
se tivesse fazendo um sorteio, dizia: “acho que agora é sua vez”. Descer as escadas de olhos vedados, guiadas por ele, era um horror. Sempre
inventava mais um degrau ou colocava o pé para nós tropeçarmos.
Eu acuso o agente da Polícia Federal Luiz Timóteo de Lima, conhecido como Padre, que me deu muito choque elétrico.
Eu acuso o coronel da reserva Paulo
Malhães que em recente entrevista ao jornal O GLOBO, no dia 26 de junho
de 2012, afirmou que em 1970, trouxe do rio Araguaia cinco jacarés e
levou para quartel da PE na rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro,
para atemorizar os presos políticos.
Eu acuso todos os que assistiram e os que ministram aulas de torturas comigo e com outros presos.
Eu acuso a diretora do Presídio Talavera
Bruce em Bangu, no Rio de Janeiro, que me deixou durante seis meses,
sozinha, isolada, numa cela mínima, insalubre, chamada solitária. Em
solitárias semelhantes estavam, naquele mesmo período, as presas
políticas Estrela e Jessie Jane.
Eu acuso os ex presidentes da República
Humberto Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto
Geisel e João Batista Figueiredo. A despeito das divergências entre eles
e das diferentes conjunturas em que chefiaram o país, todos, sem
exceção, foram responsáveis e coniventes com a tortura.
Finalmente, eu acuso o regime ditatorial implantado no Brasil em 1964, que fez da tortura, uma política de Estado.”
Dulce Chaves Pandolfi
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