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Depoimento de uma Mãe pela Igualdade, Giorgina Martins

2 de Abril de 2013, 20:43 , por Desconhecido - 0sem comentários ainda | No one following this article yet.
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Por parte de mãe
Georgina Martins (Professora de literatura infantil e juvenil do curso de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escritora de livros para crianças e jovens e integrante do grupo Mães pela igualdade).

— Mãe, eu queria tanto ser menina.
— É mesmo, meu filho?
— Eu queria ser menina pra poder passar batom, você deixa eu passar batom?
— Você tem asma, não pode usar batom, pode lhe fazer mal... mas você queria ser menina só para isso? Hoje em dia não vemos por aí os homens usando batom, mas quem sabe quando você crescer isso já não se tornará uma coisa comum?  Antigamente os homens não usavam brincos e agora usam, não é? Se isso acontecer mesmo, você não vai precisar ser menina, não acha?
Essa conversa já faz dezesseis anos, por isso não me recordo com exatidão da resposta do Camilo à minha pergunta sobre a manifestação do seu desejo de tornar-se uma menina; no entanto, tenho a certeza de que naquele momento, do alto da sabedoria dos seus quase três anos de idade, meu filho já dava sinais de que outras tantas conversas como aquela seriam extremamente importantes, não só, para a construção de sua identidade de gênero, como também para iluminar os incertos e muitas vezes espinhosos caminhos que a função materna me obrigava a trilhar.
Ainda que eu soubesse que seu manifesto desejo pelo batom, assim como sua preferência por brincadeiras tradicionalmente reconhecidas como sendo de menina, bem como seu fascínio por tudo que pertencia ao universo feminino, não necessariamente se configurassem em índices que o aprisionassem para sempre a uma identidade feminina — principalmente pelo fato de tudo isso se manifestar em tão tenra idade —, algo da categoria do inefável alimentava minha certeza de que Camilo seria gay. Em função disso comecei a me preparar junto com ele para os conflitos que teríamos de enfrentar.
Muito embora eu não desconsidere as diversas opiniões acerca da origem da identidade homoerótica, como aquelas que defendem ser essa identidade uma construção cultural, tenho por convicção que meu filho nasceu gay. Constatação que não utilizo como único parâmetro para refletir sobre as diversas identidades homoeróticas existentes, sobretudo por conta dos mais variados matizes que modulam essa questão.  Na verdade, a meu ver, saber a origem do homoerotismo, necessidade tão cara a vários cientistas, tem contribuído muito pouco, ou quase nada, para municiar a luta constante contra a violência diária a que estão expostas as pessoas lgbts em todo o mundo.
Diferente das crianças que tiveram de enfrentar o preconceito e consequentemente a violência física e verbal dentro da própria casa — situação determinante para a construção de uma identidade frágil e muitas vezes desestruturada—, Camilo, em todos os momentos em que foi obrigado a enfrentar os conflitos que se colocavam entre ele e as outras crianças com as quais se relacionava, pode contar com a compreensão e o acolhimento de sua família, o que julgo ter sido muito importante na construção de sua personalidade.
Um dos primeiros problemas que Camilo teve de enfrentar por conta de sua admiração por tudo que dizia respeito ao universo feminino, foi aos seis anos de idade, ocasião em que começou a cursar o primeiro ciclo do nível fundamental de ensino. Logo na primeira semana de aula, sua identificação com as personagens femininas das histórias que a professora lia para a turma foi posta em xeque de maneira um tanto desrespeitosa, o que demonstrou o total despreparo da referida professora e, consequentemente, da escola para lidar com a questão que se apresentava.
Alegando o fato de que ele era um menino e não uma menina, a professora o impediu de ser a bruxa de uma história que estava sendo construída coletivamente com a turma; oferecendo como solução para o impasse, que ele exercesse o papel de bruxo e não de bruxa. Tal solução, para alívio da professora, foi acatada por ele sem nenhum questionamento, penso eu que em função de sua pouca intimidade com aquele espaço. No entanto, ao chegar em casa, a questão, aparentemente resolvida, voltou a incomodá-lo, e para resolvê-la ele solicitou que eu lesse a tal história substituindo a palavra bruxo por bruxa, uma vez que sua identificação era com a bruxa e não com bruxo.
Diante de tal situação procurei a escola para esclarecer que Camilo poderia ser o que quisesse ser: bruxa, bruxo, fada, príncipe ou princesa, e que a equipe da escola deveria, não só estar preparada para lidar com essa questão, como ainda garantir que ele fosse respeitado e acolhido pelos amigos, independente do papel que quisesse exercer nas histórias ficcionais trabalhadas pela escola. Felizmente, para minha surpresa, a direção da escola assumiu seu despreparo para lidar com o assunto e se prontificou a buscar soluções no sentido de instrumentalizar toda a equipe para que coisas como aquela não ocorressem mais. Dentre essas soluções, estava posto um convite para que eu ajudasse nesse processo de reflexão sobre o tema, o que acabou por proporcionar a minha inserção no corpo docente daquele estabelecimento de ensino, lugar onde atuei por cinco anos.
Foi a partir dessa experiência que comecei a pensar em como promover essa reflexão também entre os alunos e seus pais, o que me levou a escrever um livro de ficção para crianças: O menino que brincava de ser, publicação muito elogiada, mas até hoje, muito pouco adotada nas escolas, penso que em decorrência da grande dificuldade dos professores em lidar com o tema.
Depois desse livro escrevi e publiquei mais dois sobre o assunto, e sempre que sou convidada a falar sobre literatura e ensino procuro incluir o tema nas discussões como forma de contribuir para a erradicação do preconceito.
Como filha de nordestino pobre, que na década de 50 veio tentar a vida no “Sul maravilha”, aprendi desde cedo a lidar com o preconceito e a rejeição. Meu pai, típico cearense de um tempo em que a seca e a fome dizimavam a população nordestina, trazia em seu corpo as características que no eixo Rio e São Paulo o distinguiam como cidadão inferior: a baixa estatura e a cabeça achatada, daí suas três alcunhas: “Seu Baixinho”, “Ceará” e “Cabeça Chata”; além de vez por outra ser chamado de “Paraíba”, adjetivo até hoje utilizado para qualificar os porteiros dos prédios da Zona Sul do Rio de Janeiro e os operários da construção civil, profissionais vistos como cidadãos de segunda classe.
Essa forma de exclusão, que em vários momentos me fez sentir vergonha de minha origem, somada aos conselhos de minha mãe (uma ex empregada doméstica que sequer ouvira falar da ética aristotélica) sobre como deveríamos nos comportar em sociedade: — “Minha filha, não devemos fazer ao outro aquilo que não gostamos que façam com a gente”— municiaram minha luta diária contra todo tipo de preconceito e discriminação. Circunstância que alicerça minha militância em prol das causas do movimento LGBT, como uma das integrantes do grupo Mães pela igualdade.
Concebido por Joseph Huff-Hannon, ativista da All out, organização não governamental americana que organiza campanhas via redes sociais para garantir os direitos LGBTs em todo o mundo, o Mães pela igualdade busca resgatar a tradição histórica da força e da coragem da figura materna em todas as culturas, plasmada nas diversas representações da humanidade, como na literatura, via a mãe de Pavel, o camponês pobre e militante do romance de Gorki, a Mãe coragem de Brecht, mulher pobre que tenta impedir que a obrigatoriedade do alistamento à guerra destrua sua família, e no plano da realidade quase ficcional, as Mães da praça de maio, até hoje incansáveis na luta contra a opressão e à violência.
Identificadas através da extensa rede de amigos e simpatizantes da população lgbt, essas mães foram convocadas, em um primeiro momento, a se unirem em torno da luta contra a violência e a discriminação a que são diariamente submetidos os próprios filhos. Para tanto foi organizada, em parceria com a Coordenadoria especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro, uma exposição fotográfica, que circulou por três praças públicas da cidade durante o mês de maio de 2012. Durante esse período, seis monitores forneciam informações e material publicitário ao público que visitava a exposição, bem como recolhiam mensagens e depoimentos de apoio à causa lgbt. Esse material foi afixado a uma árvore artesanal que será  oportunamente entregue à presidente Dilma Rousseff como representação do nosso desejo de implantação urgente de políticas públicas eficazes de combate à homofobia. Uma árvore simbólica capaz de frutificar o respeito, a justiça e a solidariedade.
Umberto Eco disse uma vez que cada presente elege um passado que lhe é familiar, e nesse sentido, em relação à violência que assola a população lgbt, apesar de nós, brasileiros, não termos vivido a Idade Média, no que se refere ao preconceito contra aqueles que ousam dizer seus nomes, não devemos nada ao fundamentalismo religioso que assombrou a Europa medieval,  e se não estivermos atentos e fortes corremos o sério risco de em pleno século XXI sucumbirmos a ele.
Por tudo isso nossos corações de mães de filhos lgbts se põe vinte e quatro horas por dia em estado de alerta e sobressalto quando nossos filhos saem de casa, quando testemunhamos a violência tão próxima e íntima de nós, como ocorreu há uns meses na Lapa, um point turístico desta cidade que se quer maravilhosa, onde quatro jovens gays, amigos de nossos filhos, abandonados à própria sorte, foram humilhados e espancados, sem que pudessem contar com o direito inerente a todo cidadão de ser protegido pela polícia de sua cidade.
Segundo relatório feito pelo grupo gay da Bahia, que há mais de três décadas coleta informações sobre homofobia, o Brasil ocupa a posição de primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos homofóbicos, pois só no ano de 2011 foram documentados 266 assassinatos de gays, lésbicas e travestis. Daí a importância da nossa união, daí nossa luta constante contra toda forma de violência. E ainda que pareça óbvio, essas mulheres, cujos filhos são gays, lésbicas, travestis ou trans precisam a todo momento lembrar a sociedade que esses filhos, como quaisquer outros, têm mães.
Infelizmente, em nosso grupo há três mães cujos filhos foram vitimas de crimes homofóbicos, todos impunes até hoje, como a mineira de Montes Claros, Marlene Xavier que há dez anos tenta fazer colocar na cadeia os assassinos confessos de seu filho. É dela a carta que segue como denúncia para que o crime não mais continue impune. São delas as palavras que escolho para encerrar esse depoimento:
No dia 1º de março de 2002, a cidade de Montes Claros foi surpreendida com a notícia do bárbaro assassinato do bailarino e ator IGOR LEONARDO LACERDA XAVIER, cometido pelo assassino confesso RICARDO ATHAYDE VASCONCELOS, tendo como comparsa seu filho DIEGO RODRIGUES ATHAYDE VASCONCELOS.
O assassino encontrando Igor em um bar, o convidou para ir até seu apartamento, com o pretexto de lhe emprestar material que o ajudaria na produção de seu próximo espetáculo. Lá com a ajuda do próprio filho, torturou e matou o meu filho com cinco tiros. O crime aconteceu em um prédio de apartamentos no centro da cidade. Os moradores ligaram com insistência para a polícia. Mas esta não se fez presente. Os criminosos arrastaram o corpo do meu filho por três andares escada abaixo, maltratando terrivelmente o seu corpo; colocaram o mesmo na carroceria do carro de um parente chamado para ajudar no ato criminoso, lavaram o sangue do apartamento e das escadas, lançaram o corpo em uma estrada vicinal, desmontaram e jogaram fora as armas e fugiram para Belo Horizonte.
 Não sei quanto tempo levaram para fazer tudo isso; mas a polícia só apareceu de manhã quando os bandidos já estavam em segurança a caminho da capital do estado. Foi pedida a prisão preventiva dos assassinos. Eles fugiram e pediram Habeas Corpus que foi negado no TJ MG e concedido no STJ, supostamente por meios fraudulentos, pois todos sabem do poderio econômico e político dos assassinos, que escorados na impunidade, desafiam a nossa família e a sociedade, andando livremente pelas ruas. 
“Desde 2002 a família, amigos e a classe cultural montesclarense vêm lutando ininterruptamente por justiça, respeito aos direitos humanos e diferenças, colocando o caso IGOR XAVIER como uma bandeira de reflexão e luta permanente por direitos iguais, não só em Montes Claros e no Norte de Minas, mas também em todos os lugares em que o ser humano vem sendo ultrajado.  Entretanto, os assassinos alicerçados na tradição familiar e no poder do dinheiro, ainda hoje se encontram em liberdade, pelo fato de seus advogados estarem impetrando recursos seguidamente mesmo perdendo todos.”
 Sendo um crime hediondo, onde os bandidos demonstraram premeditação, frieza e crueldade e que por respeito à justiça já era para estarem na cadeia, o caso se arrasta, pois a todo momento a defesa aproveita as brechas nas leis brasileiras para requerer embargos, recursos especiais, extraordinários entre outras invenções jurídicas protelando o julgamento. Finalmente o júri foi marcado para o dia 27/06/2007. Com todo o aparato e prontas todas as demandas que envolvem um julgamento, o mesmo foi cancelado no dia 25/06/2007 dois dias antes de acontecer; trazendo com isso, mais angustia e decepção com os poderes públicos.
 Nova esperança se vislumbra em 2011. O júri foi marcado para o dia 07/06/2011. O juiz responsável pela vara, Dr. Antonio de Souza Rosa, retira o processo da pauta alegando que as minhas lamúrias e declarações do meu repúdio contra a demora, iriam interferir na decisão do júri. Começa para a família e a comunidade uma espera angustiante por pronunciamento do tal juiz marcando uma nova data para o júri; até que em 25/08/2011, o processo é suspenso. O tiro de misericórdia veio em 14/10/2011 quando acontece o desaforamento do caso para Belo Horizonte, dificultando ainda mais o nosso acesso a informações, já que, por absoluta falta de condições financeiras, não temos advogado constituído.
 O jogo macabro novamente se inicia em 2012. Nova data para julgamento é marcada para o dia 29/11/2012. O pingue-pongue justiça X bandidos continua e o júri é desmarcado; e como das outras vezes o motivo permanece em segredo. No dia 05/09/2012 é designada nova data, agora para 27/08/2013. Enquanto isso assassino pai e assassino filho vão adquirindo cada vez mais vantagens; e a justiça cada vez mais cega agora dorme placidamente em berço esplêndido.
 Infelizmente o Código Penal Brasileiro, caduco e ultrapassado, permite todos esses abusos, facilitando que criminosos continuem em liberdade enquanto o processo fica parado e mofando nas prateleiras dos órgãos responsáveis até cair no esquecimento e talvez nem haver julgamento. É o império da impunidade. 
IGOR XAVIER, profissional da arte, batalhador incansável pelo avanço da cultura em sua cidade natal – Montes Claros. Bailarino, coreógrafo, produtor e diretor de espetáculos. Impressionava a todos pela retidão de caráter, humildade e responsabilidade.

Motivo do crime: Homofobia.

Eu sou a mãe de Igor Xavier e não me conformo. Em março deste ano de 2012, se completaram dez anos em que não sinto o abraço do meu filho, não vejo o brilho dos seus olhos e o som da sua risada cristalina nunca mais chegou aos meus ouvidos. Há muito nossa família convive com a dor, a saudade e a decepção com a justiça, enquanto os assassinos desfilam de cabeça erguida apostando na impunidade. Seus advogados afogados em rios de dinheiro providenciam para que não aconteça julgamento.
Apelo ao PODERES CONSTITUIDOS que façam com que a lei seja cumprida e esse julgamento aconteça o mais rápido possível. É preciso que façamos alguma coisa que mostre ao mundo nosso repúdio contra a covardia, a violência e o desrespeito aos Direitos Humanos. Enquanto isso não acontece, e enquanto me restar um sopro de vida, lutarei para que a justiça seja feita. É preciso não se curvar diante da injustiça.
 O estado brasileiro está em dívida com seus filhos; e eu me envergonho disso.
                                                                            Marlene Xavier

Fonte: http://feedproxy.google.com/~r/BornToBeAlone/~3/SnfNc84p7EA/depoimento-de-uma-mae-pela-igualdade.html

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