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Conceição OliveiraFilmes e Pareceres pedagógicos para e sobre o universo infantil
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Criança e Consumo: Sapatos de pano contra o vazio de afetos
2 de Março de 2009, 20:24 - sem comentários ainda(29/06/2008)
Ao olhar uns sapatos em uma vitrine, veio-me à mente uma antiga lenda. Embora a tenha escutado em diferentes versões desde a infância, uma delas me incita a reconstruí-la voltada para esta sensação de vazio da qual cada vez mais pessoas se queixam.
Aurora era uma menina pobre que não tinha sapatos. Criada pela avó, não demorou muitos anos para que se visse completamente sozinha no mundo. Arqueada pelo peso do tempo, a velha senhora se foi, não antes de transmitir à neta tudo quanto sabia sobre seu ofício de costurar. Para não sobrecarregar a menina com o peso das responsabilidades adultas, a sábia senhora começou por ensinar a pequena a confeccionar sapatinhos para as nove bonecas que lhe fizera, uma para cada aniversário. Na perspectiva da arte, uma mais linda que a outra. Na perspectiva do afeto, presentes que não tinham preço. Por ser ainda criança para trabalhar, em troca da proteção que recebia de todos, Aurora encantava a aldeia com sua radiante alegria. Com o tempo, seus pés, inchados de tanto brincar e dançar, reclamaram melhores cuidados. Por não ter onde conseguir sapatos, abriu seu baú de idéias e eles estavam lá. Aurora confeccionou a mão, recordando a arte da avó, um par de sapatos de pano. Os retalhos jazidos nos cestos da velha costureira renasceram em uma combinação singular de detalhes, cores e flores, dando ao saltitar de Aurora um toque de fantasia.
Certa tarde, porém, chegou em uma carruagem dourada uma velha e rica senhora. Adotada pela idosa, Aurora não estava mais só. Cercando-a de todo o conforto, a primeira coisa que a mulher execrou foram os sapatinhos de pano, atirando-os logo ao fogo. Depois de muito chorar pela perda, Aurora, enfim, consolou-se. Levando-a a uma loja moderna, a idosa permitiu que a menina escolhesse o mais luxuoso sapato. Havia um magnífico, vermelho, todo em verniz reluzente. Extasiada, Aurora calçou os sapatos e logo se pôs a dançar. E saiu pelas ruas dançando em ritmo acelerado. Porém, quando quis descansar, percebeu que não era por sua vontade própria que dançava, mas sim pela determinação dos sapatos vermelhos. E foi assim que, com os sapatos fundidos aos pés, seguiu dançando noite e dia, exaurindo suas últimas forças naquela coreografia de morte. Para não me alongar na história, Aurora recorreu a um carrasco, habitante de uma floresta lá perto, pedindo-lhe que decepasse seus pés. E foi o que o homem fez, salvando-lhe a vida enquanto os pés nos sapatos saíram dançando mundo afora com vistas a nunca parar.
Concordo que a lenda seja aterrorizante. Foi o que senti quando criança, razão pela qual tratei logo de imaginar um final mais promissor para Aurora, um que talvez faça sentido hoje com a questão do consumo na infância. Assediadas por tantos brinquedos e produtos sofisticados, fora o bombardeio de anúncios chamando sua atenção, nossas crianças parecem não saber mais como brincar de verdade. O tempo que levavam antes criando seus próprios brinquedos de “pano”, levam agora seguindo as instruções impressas nas embalagens e tentando encaixar as pilhas no carrinho eletrônico ou na boneca falante de frases repetitivas. Como os sapatinhos vermelhos de verniz, os brinquedos ultra-equipados já vêm brincando sozinhos. Antes desses avanços, pelo som do “brrumm” que as crianças emitiam, forjando o ronco do motor, e pelo combustível da inventividade que injetavam na brincadeira, o carrinho feito a mão pelo avô largava em alta velocidade. Pulando barreiras, subindo montanhas, atravessando rios e até voando sobre as cidades, era literalmente o veículo que as levava ao futuro. Mas vieram as pomposas estratégias do marketing, em suas carruagens douradas de sedução, propondo-se a oferecer às crianças um mundo de maravilhas e tratando de atirar ao fogo as criações infantis.
Pouco a pouco, sem perceber, os pais deixam que os filhos embarquem na carruagem furada da ânsia de consumir
Tal como Aurora, as crianças não têm maturidade mental e nem física para acreditar em si mesmas e para entender que a verdadeira identidade está no gesto espontâneo e na contribuição única de cada um. Acreditando naquilo que ouvem e vêem, elas se tornam presas fáceis da ganância comercial. E não é bom que os pequenos desconfiem das manobras mercadológicas. Saber disso antes do tempo compromete a beleza de sua inocência, embotando-lhes a imaginação na qual a produção de brinquedos é uma história sem fim. Porém, não sabendo mais sobreviver sem TV, sem shoppings, sem marcas e sem brinquedos dos quais logo mais vão se enjoar, cada vez mais crianças se deixam levar nessa dança do “quero isso e aquilo também”, que os pais já não sabem como deter. Pouco a pouco, e sem perceber, perdem a certeza de dizer “não” aos desmandos mercadológicos, acreditando que o melhor para os filhos é deixar que embarquem na carruagem furada da ânsia de consumir. Se aos pais é tão difícil resistir ao assédio de tantas mensagens envernizadas de afeto, quanto mais para as crianças. Se não forem protegidas a tempo, um dia, quando elas tentarem voltar ao que eram e procurarem as saídas que tinham dentro de si, as portas poderão estar fechadas, e o carrasco da dependência terá decepado sem dó as bases de sua autonomia.
Talvez por este prognóstico assustador, criei um final mais feliz para a lenda. Depois que o carrasco amputou os pés de Aurora, ela saiu rastejando de volta à aldeia onde todos a acolheram curando suas feridas. Não podendo mais retribuir os cuidados com sua alegria de antes, retomou o baú de retalhos que herdara da avó e pôs-se a confeccionar sapatinhos para as outras crianças vizinhas. Certa tarde, porém, sentindo a falta de quem ela era e de seus sapatinhos de pano, atreveu-se a calçar nos cotos doídos um modelo que havia acabado de confeccionar. Sentiu um conforto tão grande que manteve os sapatinhos ali a aquecer-lhe as bases ceifadas, adormecendo de tanto chorar.
Ao raiar da manhã seguinte, gritou o quanto pôde até se convencer de não estar ainda sonhando: seus pés haviam brotado de novo, sob medida para o sapato de pano. E a menina voltou a brincar e dançar, recuperando a espontaneidade e o modo genuino de ser. Pena não termos mais a ingenuidade criança de atribuir à fantasia um caráter de realidade para crermos, ao pé da letra, num final tão feliz assim. Em compensação, temos, na consciência adulta, razões para crer que a recuperação da auto-estima é possível. Neste caso, a magia é o amor e a confiança dos pais e responsáveis naquilo que sabem e podem fazer para preencher nos filhos o vazio causado pela compulsão consumista. Que abrindo o baú das lembranças, eles juntem os retalhos de sabedoria legados pelos mais velhos, relançando a moda de acreditar no ser em lugar da preocupação com o ter. Que resistindo ao chamariz das vitrines, fujam com suas crianças para as bibliotecas, para os jardins e praças ou para o porto seguro das conversas em volta da mesa, recuperando o papel protetor e abrindo espaço para brilhar uma aurora de paz e esperança na vida de nossas crianças.
Mais:
Ler o Mundo
2 de Março de 2009, 20:22 - sem comentários ainda(Affonso Romano de Sant'Anna)
Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não.Depende de quem lê.
Paixão de ler. Ler a paixão.
O corpo é um texto. Há que saber interpretá-lo. Alguns corpos, no entanto, vêm em forma de hieróglifos, dificílimos. Ou, a incompetência é nossa, iletrados diante dele?
Quantas são as letras do alfabeto do corpo amado? Como soletrá-lo? Como sabê-lo na ponta da língua? Tem 24 letras? Quantas letras estranhas, estrangeiras nesse corpo? Como achar o ponto G na cartilha de um corpo? Quantas novas letras podem ser incorporadas nesta interminável e amorosa alfabetização? Movido pelo amor, pela paixão pode o corpo falar idiomas que antes desconhecia.
O médico até que se parece com o amante. Ele também lê o corpo. Vem daí a semiologia. Ciência da leitura dos sinais. Dos sintomas. Daí partiu Freud, para ler o interior, o invisível texto estampado no inconsciente. Então, os lacanianos todos se deliciaram jogando com as letras - a letra do corpo, o corpo da letra.
Portanto, não é só quem lê um livro, que lê.
Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural. A paisagem pode ter sotaque. Por isto se fala de um jardim italiano, de um jardim francês, de um jardim inglês. E quando os jardineiros barrocos instalavam assombrosas grutas e jorros d'água entre seus canteiros estavam saudando as elipses do mistério nos extremos que são a pedra e a água, o movimento e a eternidade.
O urbanista e o arquiteto igualmente escrevem, melhor dito, inscrevem, um texto na prancheta da realidade. Traçados de avenidas podem ser absolutistas, militaristas, e o risco das ruas pode ser democrático dando expressividade às comunidades.
Tudo é texto. Tudo é narração.
Um desfile de carnaval, por exemplo. Por isto se fala de "samba enredo". Enredo além da história pátria referida. A disposição das alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas narrativas.
Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber ler uma partida - este o mérito do locutor esportivo, na verdade, um leitor esportivo. Ele, como o técnico, vê coisas no texto em jogo, que só depois de lidas por ele, por nós são percebidas. Ler, então, é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e o leitor.
Paulinho da Viola dizia: "As coisas estão no mundo eu é que preciso aprender". Um arqueólogo lê nas ruínas a história antiga. O astrônomo lê a epopéia das estrelas. Ora, direis, ouvir & ler estrelas. Que estórias sublimes, suculentas, na Via Láctea.
Não é só Scheherazade que conta estórias. Um espetáculo de dança é narração. Uma exposição de artes plásticas é narração. Tudo é narração. Até o quadro "Branco sobre o branco" de Malevich conta uma estória.
Aparentemente ler jornal é coisa simples. Não é. A forma como o jornal é feita, a diagramação, a escolha dos títulos, das fotos e ilustrações são já um discurso. E sobre isto se poderia aplicar o que Umberto Eco disse sobre o "Finnegans Wake" de James Joyce: "o primeiro discurso que uma obra faz o faz através da forma como é feita".
Estamos com vários problemas de leitura hoje. Construímos sofisticadíssimos aparelhos que sabem ler. Eles nos lêem. Nos lêem melhor que nós mesmos. E mais: nós é que não os sabemos ler. Isto se dá não apenas com os objetos eletrônicos em casa ou com os aparelhos capazes de dizer há quantos milhões de anos viveu certa bactéria. Situação paradoxal: não sabemos ler os aparelhos que nos lêem. Analfabetismo tecnológico.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto também lê o mundo. Às vezes, sabiamente. Em nossa arrogância o desclassificamos. Mas Levi-Strauss ousou dizer que algumas sociedades iletradas eram ética e esteticamente muito sofisticadas. E penso que analfabeto é apenas aquele que a sociedade letrada refugou. De resto, hoje na sociedade eletrônica, quem não é de algum modo analfabeto?
Vi na fazenda de um amigo aparelhos eletrônicos, que ao tirarem leite da vaca, são capazes de ler tudo sobre a qualidade do leite, da vaca, e até o pensamento de quem está assistindo a cena. Aparelhos sofisticadíssimos lêem o mundo e nos dão recados. A camada de ozônio está berrando um S.O.S , mas os chefes de governo, acovardados, tapam (economicamente) o ouvido. A natureza está dizendo que a água além de infecta, está acabando. Lemos a notícia e postergamos a tragédia para nossos netos.
É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa com a interpretação. Feiticeiros e profetas liam mensagens nas vísceras dos animais sacrificados e paredes dos palácios. Cartomantes lêem no baralho, copo d'água, búzios. Tudo é leitura. Tudo é decifração.
Ler é uma forma de escrever com mão alheia.
Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Mas bem escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem, quem ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.
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LEITURA DO CRIME: disse o general Cardoso: "Crime está mais organizado que nós". A frase é verdadeira, mas com o enfoque invertido. A desorganização social e econômica é que organiza o crime.
Brasil perde um dos maiores símbolos da culinária afro-baiana
17 de Maio de 2008, 10:11 - sem comentários ainda
História da Dinha
Homenageada e cantada em prosa e verso, essa baiana demonstrou força, coragem e superação desde menina.
Após a morte da sua mãe, Rute, que havia sucedido a avó Ubaldina no tabuleiro, Dinha, ainda aos 10 anos, percebendo que o sustento da família estava comprometido com a ausência das vendas dos acarajés, decidiu assumir o ponto de quitutes da mãe, tornando-se referência para a família e sociedade.