Ele por alguma razão pensava em um deus. No deus que, ele imaginava, deveria ser o Deus de todos. Enquanto isso enxergava búfalos bem à sua frente, na paisagem mansa da serra e das nuvens, da estrada pedregosa, encharcada, estreita.
Não havia cercas. Ou algumas poucas. Os búfalos experimentavam o comando daquelas paisagens, na planície da última grande faixa de mata atlântica.
A maior parte da manada repousava debaixo de uma figueira. Apenas três búfalos mascavam o pasto à beira da estrada. E exatamente todos miravam quando ele surgiu no horizonte.
Atentos a cada gesto dele, os búfalos não pareciam ter a distração comum às vacas e bois. Ao lado dos plantios de arroz, verdes e amarelos, e das áreas inacessíveis de floresta, os búfalos pareciam um personagem deslocado naquele cenário de latifúndio.
A mochila era carregada ao peso de uma cruz. O caminhoneiro lhe avisou que a caminhada até a comunidade levaria meia hora. Isso só no fim da carona. A travessia de dois rios ele não havia inserido na advertência, o tamanho da solidão que viria carregada na água gélida do rio, limpa e lenta, também não.
Tampouco o vazio das casas. Era como passar em frente ao que era recorrente nos sonhos: casas da infância, casas da juventude, casas vazias com ele por dentro, casas abandonadas, vazias, vazias, vazias, sonho repetido à exaustão e agora bem ali à sua frente. Alguns pássaros agarrados nos poucos pedaços de cercas que surgiam. Chegou a pensar na sua relação estranha e torta com um Deus que ele sem querer já passava a buscar na travessia.
Agora, iria cruzar simplesmente o caminho dos búfalos, que o miravam com olhos fixos, desconfiados. Não podia voltar atrás, depois de dois rios e de ter sido deixado nessa região de plantios de maracujás e caronas magras, de gente sem linha fixa de ônibus.
Não podia recuar.
A estrada era de pedra, terra, água, talvez sal. As casas eram de barro, sem janelas, vento e deserto. Nunca conheceu um búfalo na vida, só nos desenhos animados, associado a alguma estepe africana, a fama de agressividade, frente a frente com um animal gigantesco que, assim como ele, também estava em um ambiente estranho. Como analisar o temperamento de um búfalo?
Mas não teve coragem. A casa abandonada há alguns metros dali serviu de refúgio naquela noite. Ele não podia passar pelos búfalos e nem calculava condições de retornar. Os búfalos seguiam mastigando o mundo real na base da serra.
Várias vezes ele cogitou retornar, mas desistia da ideia, julgando que, por ora, não valia a pena pelo tempo desperdiçado até aquele lugar.
No interior da casa, foi muito bem tratado por uma família local, o que atenuava um pouco a angústia de não ter chegado até a comunidade onde planejou, o objetivo inicial do seu trajeto.
Os dias passavam e a presença das crianças, o cheiro do almoço, o balanço da rede tranquilizava um pouco a presença incômoda dos búfalos que seguiam no raio da sua visão e não se moviam da estrada.
Ele permaneceu ali, oscilando entre momentos quando decidia voltar e outros poucos quando criava coragem de atravessar a trilha dos búfalos. Logo voltava ao ponto onde estancou. Não conseguia criar confiança nos deuses. E sabia que também não confiava naqueles animais.
A chuva castigou o telhado daquela casa por meses, logo depois por anos.
Por Pedro Carrano
Crônicas de Sexta
Terra Sem Males