A população de rua quer ser tratada como cidadão com direito à justiça, à cidadania e à dignidade. Quer acesso à moradia, ao trabalho, saúde, educação, esporte e lazer.
“É muita covardia da Tribuna não ter chamado o outro lado para dar resposta”, afirma Leonildo, coordenador nacional do Movimento Nacional da População de Rua ao referir-se a uma notícia publicada na última sexta-feira, 27 de julho, com manchete chamada “Problema sério” e destaque nas redes sociais como “Em Curitiba, mendigos e moradores de rua incomodam moradores e comerciantes”.
O mesmo entendimento de criminalização é externado por Tomás Melo, do Instituto Nacional de Direitos Humanos da População em Situação de Rua (INRua): “Não é novidade, tanto na forma como parte da mídia vem representando as pessoas em situação de rua como a gestão pública também, que é uma campanha de criminalização, uma tentativa de culpar o sujeito sobre aquela condição que ele se encontra. Sem olhar com profundidade para o tema e tentar entender a perspectiva das pessoas, e quais os motivos que criam toda essa circunstância, é mais fácil dizer que as pessoas não querem, que estão na situação por conta própria”.
A referida abordagem tem como entrevistados pessoas não identificadas, mas nominadas como guarda municipal, comerciante, aposentada, funcionária de loja, e somente uma fonte identificada, representante da Fundação de Ação Social (FAS). As pessoas em situação de rua são resumidas a expressões depreciativas como “só podem ser levadas aos abrigos se quiserem”; “reclamação constante”; “usa drogas”; “a cidade está cada vez pior”; “cheiro ruim”; “As pessoas chegam a desviar pela rua para não passar pela calçada, porque sentem medo”; “Tinha que ter uma lei para impedir que ficassem na rua”; “quando essas pessoas são acordadas, começam a incomodar”; “nem sempre pode fazer o que a população julgaria como necessário”; “de um ano pra cá a coisa piorou”; “mais da metade deles, está na rua porque quer”; “essas pessoas não querem é seguir regras”; “numa situação deplorável”.
Ainda que os trechos tenham sido retirados do contexto, denotam que a reclamação de Leonildo tem procedência. O outro lado não foi convidado a se manifestar. “A mídia só usa a população de rua associando ao crack mas de fato não vai fazer um diagnóstico, do porquê (o morador) continua na rua, porque vem pra rua. A população de rua quer ser reconhecida como sujeito de direito, que possa acessar de fato esses direitos, os três poderes, que possa voltar a ter uma moradia e uma família”, afirma. Na pauta do Movimento Nacional da População de Rua constam as medidas adequadas para eles: uma política intersetorial, um plano de ação e atividade para que a população de rua acessar a moradia. “A nossa bandeira é o acesso à moradia, à casa”, define.
Nesse sentido, o InRUA explica como seriam essas medidas intersetoriais: que saia do escopo da assistência ou da assistência social e do tratamento de saúde, através de investimento numa política rigorosa de moradia permanente. “Eu acredito que essa é a forma real de sair dessa situação, de criar condições das pessoas morarem, produzir um direito à moradia pública”, explica Tomás. “Hoje a gente nem consegue de fato falar sobre prevenção porque é um número que só cresce (da população em situação de rua), que não consegue oportunidade de fato de sair dessa situação. Isso não se resume a Curitiba, é praticamente no Brasil inteiro. Mas muitas alternativas para isso, como locações sociais em parques públicos, o aluguel social. Tentativas não só de produzir o acesso à propriedade, mas garantir que as pessoas tenham acesso à moradia permanente e gratuita quando for o caso da necessidade. Ou com uma colaboração acessível, que as pessoas possam de fato contribuir para que saiam desse ciclo imobiliário onde só mora quem pode pagar”.
Outro questionamento dos movimentos é o papel da FAS utilizado para legitimar esse viés de criminalização, ao referendar que o processo de abordagem das pessoas em situação de rua “é só para quem quer”. Para Tomás, do InRUA, ao dizer que as pessoas estão na rua porque querem, se omite o fato que o número de leitos com acolhimento é muito inferior ao número de pessoas em situação de rua e que historicamente a relação entre a entidade FAS e os moradores de rua “é muito ruim”, na avaliação dele. “A relação é muito ruim pelo tipo de situação que (os moradores de rua) passam nas unidades. Em determinado momento muitas pessoas decidem não buscar mais o serviço, em virtude da (falta de) qualidade, dos problemas que esses serviços têm”, explica. Leonildo define da seguinte forma: “A política da FAS é de manter o morador na rua, de albergue e sopa, não provê acesso ao trabalho, saúde, educação, esporte e lazer, e a moradia. Sem a moradia o morador não sai da rua. A população de rua não quer ser tratada como coitadinha, mas como cidadão”.
Outro aspecto invisibilizado pela Tribuna foi o contexto sobre o aumento da população em situação de rua. De acordo com avaliação do Instituto Nacional de Direitos Humanos da População em Situação de Rua – INRua, o aumento pode ser estimado como consequência de uma série de fatores conjunturais do país, como a crise econômica, a política de austeridade, o corte dos programas sociais, o aumento do desemprego. “Você tem um número muito grande de pessoas desempregadas que ficam sob risco de terminar em situação de rua. Assim como o corte dos programas sociais e assistenciais, que de alguma maneira pessoas conseguiam permanecer numa determinada situação em virtude desses programas, que quando são cortados e diminuídos, as pessoas perdem esse benefício e podem cair numa situação mais vulnerável ainda. E eventualmente acabar até em situação de rua. A gente tem visto o crescimento de mulheres em situação de rua, de famílias em situação de rua. Famílias inteiras que começam a ir para as ruas, um público muito novo, de idade economicamente ativa, que deveria estar começando a vida profissional, e que em virtude de N motivos acaba não tendo essas oportunidades e empobrecidos não conseguem fazer a manutenção de seus domicílios e acabam em situação de rua”, explica Tomás, do InRUA.
Saiba mais: Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente
Por Paula Zarth Padilha
Terra Sem Males
Foto: Julio Carignano, registro de Vigília em defesa da população de rua na noite de 26 de junho de 2018, em Curitiba.