É segredo, então, peço que não espalhem, mas eu tenho um péssimo hábito. É o de sair lendo as coisas que os outros insistem em escrever por aí. Isso me coloca em embaraço, mas é inevitável. Outro dia li, sem querer, um meme, todo trabalhado no verde e no amarelo, que dizia, se não me engano, que a arte, ou os artistas, não serviam para nada. Porque, afinal, se você fica doente, procura um médico. Se você quer construir sua casa, procura um engenheiro. Se você quer consumir, procura quem vende trecos por aí. Que mais poderia se esperar da vida?
A minha primeira reação a esse meme foi a mesma de quando vi, também sem querer, uma imagem de um suposto vídeo íntimo de um candidato a governador: arrancar meus olhos, colocar os dois num saco plástico da Havan e jogá-los na lixeira. Mas aí eu lembrei que eu nunca comprei nada na Havan, então, deixei pra lá. Nesses tempos bélicos isso acabou me lembrando, depois, de uma historinha. Ela está num troço que apareceu na minha frente, tempos atrás. Era um livro. “As aventuras de Huckleberry Finn”. O autor era um cara chamado Mark Twain. Acho que é um desses caras que as escolas obrigam os alunos do ensino médio a ler, lá nos EUA. Ele tinha bigode maneiro.
Enfim, essa historinha, que segundo o Roberto Bolaño deveria ser fixada nas paredes de cada bar neste mundo – e de cada escola, também, e arrisco dizer que de cada condomínio fechado com piscina, também, e de cada supermercado e loja de departamento, menos na Havan, claro – é mais ou menos assim: numa pobre cidade sulista dos EUA do século XIX um bêbado inconveniente se prostra na frente da casa de um militar reformado e começa a insultá-lo. Assim, do nada. Lá pelas tantas o milico, que se enfeza com calma, se é que é possível se enfezar com calma, vai até o bêbado e diz algo como “Você tem até as 13h pra continuar me xingando. Se você disser mais uma vírgula a meu respeito depois desse horário, vai pagar caro”. Ou vai pagar com a vida, sei lá. O sentido foi esse. Bem claro. Achei até legal da parte do militar, quero dizer, achei bacana o cara alertar sobre uma punição que nem seria retroativa.
Vou interromper a narrativa só um minutinho, que tem barulho estranho aqui perto.
Voltei. Foi só um veículo militar fortemente armado passando. Tive que tirar as crianças da janela. Continuemos.
Ocorre que o bêbado acabou, sim, dizendo vírgula a respeito do milico depois das 13h. Esse, com toda a placidez do mundo, saiu de casa, atirou no inconveniente no meio da rua, deitou a pistola na calçada e voltou pra dentro. Aí foi aquele drama. A filha do baleado chegou, em prantos. Juntou curioso. Carregaram o bêbado pra dentro de um bar, botaram uma bíblia no peito dele, mas, não adiantou: morreu.
Foi aí que o cidadão semi-anônimo, ali, na multidão que juntou, disse algo a respeito de linchar o milico.
A situação ficou séria. Mais séria ainda, quero dizer. Foram pra casa do assassino, com paus e pedras nas mãos. Gritaria, poeira levantada, alvoroço. Portão derrubado. O barulho ensurdecedor da turba só parou quando se deram conta de que o militar estava de pé no telhado, com um rifle na mão, olhando pra baixo, ameaçador qual um liquidificador sem tampa. E foi aí que ele falou o seguinte (agora vou transcrever):
“Essa ideia de vocês lincharem alguém é divertida. A ideia de vocês acharem que têm coragem pra linchar um homem! Só porque são valentes pra cobrir de piche e penas umas pobres mulheres párias e desamparadas que aparecem por aqui, acham que têm força pra pôr as mãos num homem? Ora, um homem tá seguro nas mãos de dez mil da laia de vocês… desde que seja de dia e que vocês não ataquem por trás. Eu não conheço vocês? Ora, conheço vocês por dentro e por fora. Nasci e fui criado no Sul, e já vivi no Norte, por isso conheço o homem comum por toda parte. O homem comum é covarde”.
Já teria bastado. Mas ele continuou:
“Os seus jornais tanto falam que vocês são um povo valente, que vocês acham que são mais valentes que qualquer outro povo… mas vocês são apenas tão valentes quanto. Por que os seus júris não enforcam os assassinos? Porque têm medo de serem mortos com tiros pelas costas disparados pelos amigos do cara no escuro… exatamente o que eles próprios fariam”.
Já teria bastado, mais ainda. Mas ele continuou:
“Vocês não queriam vir. O homem comum não gosta de encrenca e perigo. Vocês não gostam de encrenca e perigo. Mas se meio homem que seja… como Buck Harness, ali… grita ‘Lincha o cara, lincha o cara!’, vocês ficam com medo de recuar, com medo de todos descobrirem o que vocês são… uns covardes… e assim soltam um berro e agarram-se no rabo da casaca daquele meio homem e vêm vociferar aqui, praguejando e prometendo as grandes coisas que vocês vão fazer. A coisa mais desprezível é uma turba, é o que é um exército… uma turba. Eles não lutam com a coragem que nasce dentro deles, mas com a coragem que tomam emprestado da sua massa e de seus oficiais. Mas uma turba sem nenhum homem à frente está abaixo do desprezível. Agora, o que vocês devem fazer é pôr o rabo entre as pernas, ir pra casa e se meter num buraco. Se qualquer linchamento real acontecer, vai ser no escuro, à maneira do Sul”.
A multidão se arrastou para trás, se despedaçou, e a vida continuou.
O que eu quis dizer com essa historia toda? Nada. Em absoluto.
Ou ao menos nada em aparência.
Provavelmente o próprio Mark Twain não quis dizer nada, ou nada em especial, também. Afinal as pessoas continuarão se provocando, e continuarão reagindo às provocações. Civilização que é barbárie e coisa e tal. E se as pessoas sangrarem, bom, elas procurarão por um médico, e não pelo Mark Twain, que só sabia escrever, e muito menos por mim, que só sei ler. Então, por que se preocupar?
Querer, mesmo, acho que o Mark Twain não queria dizer nada.
E é exatamente por isso, por esse monte de nada, que é engraçado que você tenha lido o que eu escrevi até aqui. Engraçado e terrível. Primeiro, porque talvez você tenha o mesmo péssimo hábito que eu. Que é mais ou menos parecido com o hábito de sobreviver. Segundo, porque o nada que eu quis te dizer alimenta o tudo que você quer entender.
Mais engraçado e mais terrível ainda é o fato de que ninguém avisou aos censores de tempos passados – imagina quanto trabalho seria poupado! – que o Chico Buarque também não quis dizer nada. Nem a Cassandra Rios.
Por Bruno Brasil, jornalista curitibano radicado no Rio de Janeiro, escreve para o Terra Sem Males na coluna “entre aspas”
Foto: Bruna Brasil
Terra Sem Males