Uma semana após incêndio que destruiu ocupação, moradores limpam terreno e iniciam reconstrução da comunidade
Como uma fênix que renasce das cinzas, a alusão mitológica define bem a situação da área que até semana passada era ocupada por casas precárias de madeira, construídas com as próprias mãos, por cerca de 400 famílias da Ocupação 29 de Março, em Curitiba.
Um ato cultural realizado no último domingo, 16 de dezembro, possibilitou a centenas de curitibanos solidários à causa andar por aquelas terras, já sem entulhos ou rescaldo de incêndio, sem esqueletos de casas destruídas. Agora, talvez pela primeira vez, um terreno limpo e adequado para que moradias sejam erguidas.
Muitas pessoas circularam pela 29 de Março no domingo. As que vinham de fora traziam roupas, móveis, água, alimentos arrecadados durante a semana em diversas iniciativas coletivas ou individuais. As que já estavam lá abriam pacotes, separavam, escolhiam, enchiam seus carrinhos de mão, dando continuidade nesse processo de reconstrução. De casas e de vidas.
“Você sabe onde tem brinquedo?”, perguntou-me Henrique, seis anos, que parou ao meu lado. “Não chega nunca”, disse. Para quem não vive essa existência de perder tudo num incêndio ou morar ao lado de quem perdeu, é difícil mensurar tudo o que falta para essas famílias, ainda que o incêndio tenha gerado uma grande comoção social em parte da cidade e que tenha desencadeado ações diversas de ajuda.
Não é normal aceitar tanta desigualdade.
“Aqui é o exemplo de quando falta vontade política da administração pública”, afirmou Miriam Gonçalves, vice-prefeita de Curitiba no período de 2012-2016, enquanto visitava a área incendiada. No final de seu mandato, ela assumiu a Prefeitura numa viagem do titular e assinou decreto que declarava as áreas de ocupação da CIC como de utilidade pública para construção de habitação popular. O decreto nunca foi publicado e posteriormente engavetado pelo então prefeito Gustavo Fruet antes de entregar a prefeitura para Greca. “Não era uma bomba-relógio, o decreto dava mais 5 anos para a Prefeitura. Nesse meio tempo poderia ser aprovado um projeto da Cohab, de construção de moradias dignas”, disse.
Nesse mercado de trabalho sou um produto barato.
O ato cultural foi definido coletivamente pelos moradores locais, em reuniões durante a semana, e teve a adesão de coletivos de militância, apresentações musicais e artísticas durante toda a tarde de domingo, para marcar simbolicamente um ponto de encontro para recebimento de todas as doações e organizar o que for preciso.
Na casa ao lado, era possível ver a TV ligada. Na tenda de doações, uma celebração paralela com música, crianças sorrindo, dançando na chuva. Na tenda do palco, mensagens de resistência, denunciando o racismo institucional e o descaso. Ao lado, uma mãe e seus filhos separavam materiais recicláveis. Passou o Papai Noel distribuindo balas na caçamba de um carro. Logo apareceram as crianças exibindo pacotes de doces diversos.
Pantera Negra. Negro não nego. Marielle Presente.
No trajeto da rua principal, que atravessa as quatro ocupações, Nova Primavera, 29 de Março, Dona Cida e Tiradentes, tinha material de construção fechando a estrada, telha aguardando paredes, duas equipes de TV, moradores dando entrevistas e apontando para os espaços vazios, onde antes havia gente morando. Na entrada da 29, uma estrutura erguida pelo coletivo Teto demarca o início das obras: um espaço comunitário construído em poucas horas. Quando as primeiras casas forem reconstruídas, já será em cima de um projeto viário e de saneamento básico desenhado por estudantes e professores universitários conforme demanda da população.
Encontrei um militante da luta por moradia do Espírito Santo andando pela área do incêndio. Mikail Coser Cavalcante está em Curitiba há alguns meses, na Vigília Lula Livre, e falou sobre a importância da organização desses moradores. Para ele, coletivamente, até mesmo a segurança das casas pode ser melhor preservada. “É muito difícil controlar uma ocupação. Mas podem ser feitas orientações aos moradores”, diz ele, defendendo a presença de movimentos por moradia.
Oficialmente, a Prefeitura se fez presente no apoio aos moradores enviando a Defesa Civil e servidores da Cohab para inscrever os afetados. O Prefeito anunciou, via perfil pessoal no facebook, que os cadastrados teriam acesso a aluguel social pelo período de seis meses. Na narrativa oficial, somente 18 pessoas estariam desalojadas, morando numa ONG.
Vamos reconstruir a comunidade 29 de Março. Custe o que custar.
Quem disse isso num microfone não foi um morador que perdeu tudo. Foi o vereador Professor Euler. Também passaram por lá Professora Josete, Goura, Doutor Rosinha, Angelo Vanhoni, Renato Freitas, a defensora pública Olenka Lins. O prefeito Greca nunca esteve na ocupação. Continua a defender a propriedade privada como direito constitucional acima do direito à moradia. E os moradores continuam a reconstruir suas vidas, sem o poder público.
Por Paula Zarth Padilha
Fotos: Joka Madruga
Terra Sem Males