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Terra Sem Males

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Opinião: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

January 4, 2018 12:24 , par Terra Sem Males - | No one following this article yet.
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Habitar qualquer periferia deste país significa habitar um território onde o processo de colonização ainda se perpetua. Adentramos o ano de 2018 carregando as violências do século XVII.  Alguns de meus colegas historiadores me chamarão de anacrônica, mas não temo as críticas. Como posso temê-las se aqueles que vivem a meu lado enfrentam a morte e a humilhação em suas vidas cotidianas? 

Alimento um gosto peculiar, talvez um tanto pequeno-burguês: Tomar café da manhã na padaria enquanto leio um bom livro ou absorvo rapidamente as manchetes dos jornais.  Quando anoitece gosto de caminhar sem destino e olhar a lua, sobretudo quando está cheia, com aquele círculo amarelo-dourado a envolvendo, dando-lhe certa áurea de magia. Após viver muitos anos presa ao ambiente acadêmico e longe da periferia, retornei a meu lugar de origem: Um bairro periférico do interior paulista. Nesse lugar me dei conta que a polícia me olha diferente e é diferente também o sentimento que me acomete quando nos encontramos. 

Em uma dessas manhãs em que retornava de meu passeio diário à padaria de meu bairro cruzei com um camburão. Sempre me causa um frio na barriga. É como se fosse um presságio de morte, o medo percorre meu corpo e eu peço a Ogum que me proteja.  Peço a meus orixás que olhem por meus irmãos e irmãs que por trazerem em seus corpos sua herança africana são humilhados e ameaçados ao caminhar pelo bairro onde eu também vivo.

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. A frase não sai de minha cabeça enquanto eu caminho lentamente para casa. Os policiais me olham e passam por mim. A minha frente caminha um jovem negro. Assim como eu, podia estar caminhando sem rumo apreciando a manhã. Podia estar saindo de sua casa para comprar o pão que comeria com manteiga e café. Ele caminhava por seu bairro. O camburão para a seu lado e os policiais descem com armas em punho.

Em meu bairro, onde não existem praças bonitas e limpas, os moradores fizeram de um terreno baldio o espaço de sociabilidade de todos. Nesse espaço plantaram árvores, criaram galinhas… Nesse espaço os velhos, as crianças e os jovens passam as tardes de verão. Nesse espaço um jogador de basquete famoso construiu uma quadra e mandou botar banquinhos de cimento. Era nascido ali e não se esqueceu de seu bairro depois da fama. Nessas mesinhas a polícia espancou um garoto – negro- que podia estar olhando a lua como eu tantas vezes faço.  A mesinha de cimento foi quebrada pelo cassetete do policial que buscava acertar as mãos do adolescente.

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. A frase ecoa em minha mente enquanto eu me sento em frente ao computador com uma caneca de café quente para escrever esse texto. Um privilégio dado por minha pele branca, por meus cabelos lisos… Se trouxesse em meu corpo a herança africana de meus antepassados estaria eu escrevendo essas linhas, ou estaria sob a mira do açoite? Até quando nos calaremos diante da violência? Até quando defenderemos anacronismos ao invés de defender a vida de nossos irmãos? Em meu bairro, assim como em todas as periferias deste país, a colonização não teve fim. Ela é violenta, tem cheiro de sangue e o sentimos em todos os músculos de nossos corpos.

Por Anajá Santos

Foto: Daniel Guimarães/A2img/Fotos Públicas


Source : http://www.terrasemmales.com.br/opiniao-todo-camburao-tem-um-pouco-de-navio-negreiro/