Conto de Pedro Carrano, do livro Meninos sem Matilha, que deve sair em breve
Não entendi por que aquela Kombi estava estacionada na frente do prédio, sendo carregada de livros, que já preenchiam toda a caçamba. Não havia outro vizinho que lesse tanto como o meu pai. Então os livros só podiam ser dele mesmo. Naquela pilha eu reconheci a marca do pai. Todos eles brilhavam, mantinham as lombadas intactas e as páginas pouco amareladas. Lá estava uma edição de O Velho e o Mar, um dos seus primeiros livros, que há pouco tempo ocupava um espaço privilegiado na biblioteca, na frente da escrivaninha. Agora era um livro antigo apenas, jogado de qualquer jeito. Não eram só as obras que estavam sendo jogadas dentro da Kombi. Os recortes de jornal, os fichários, diários de trabalho, os esboços também! Quilos de pastas com uns trinta anos de pesquisa. Quantas famílias de escritores não dariam tudo pra ter acesso àquele material? Meu pai é o verdadeiro parente dos escritores. Aquelas pastas guardavam tudo sobre eles. Com a internet, muita gente dizia que era uma besteira isso. Eu mesmo nunca mais colecionei recortes sobre futebol. A rede tem milhares de imagens de jogadores, não tem mais sentido ficar recortando do jornal. De repente um gelo percorreu minhas costas. Imaginei que meu pai fosse se mudar. Mas só os papéis eram removidos da casa. “Seu Ricardo deu uma saída, mas volta depois do almoço”, disse o cara que carregava os livros. Ele cruzava o meu caminho com indiferença, pouco se importando se tinha em mãos fragmentos da nossa vida. Por que não cortam as árvores? Por que não mudam a pintura da casa e pronto? O impacto foi pior ainda quando entrei. O cômodo principal da biblioteca doía na vista mais do que um deserto, pior do que um vazio. Sem cuidado nenhum o desgraçado da Kombi ia desmontando trinta anos de trabalho. Ao menos demonstrasse constrangimento! O alvo das críticas da minha mãe e do marido dela era esse: meu pai não se apega às coisas práticas da vida. Carro, computador, fax, telefone, churrascaria, datas, aniversários, televisão, gravata, vasos, cortina, a nada disso ele dava valor. Apenas aos livros. Minha mãe exagera. O velho, ex-sindicalista e funcionário de banco, ultimamente andava atrás de um emprego. Tentou até o concurso do Censo do IBGE, ao lado da moçada nova, e dos grisalhos que ainda não podem se aposentar. Claro que ele sente a realidade, ninguém escapa desse minotauro. “A gente vai pro almoço, mas avisa o seu Ricardo que está quase tudo certo”. Não olhei pro cara. Como ele podia dizer que estava tudo certo? Foi aqui que eu descobri o que é a solidão de uma pessoa, e até hoje não sei se a solidão é um gesto de coragem. Mas, quando estou no campo, aguardando um passe, é na biblioteca que eu penso, na solidão do meu pai travando uma batalha contra os livros. Súbito bate uma angústia. Me sinto culpado. Aprendi tudo em silêncio, disfarçando, falando de futebol. Uma vez perguntei: “O que um poema tem a ver com a realidade?” Um elefante não pisaria tão forte. A porta abre e ouço meu pai caminhando pela sala. Seus passos ecoam pela casa vazia. Caverna abandonada. Casa depois do despejo. Como ele consegue andar neste descampado sem tropeçar na falta de referências? Como ele pode dizer “Oi filho, já almoçou?” e não olhar pro musgo e pro mofo das paredes nuas? “O cara da Kombi estava aí quando você chegou?” Gaguejei. Não respondi nada. Seu olhar não se detém em direção alguma, recusa-se a olhar para mim. Meu pai olha apenas a fumaça do seu cigarro dispersando-se pela janela.