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Quem vigia o vigia do vigia do vigia?

10 de Abril de 2019, 11:15 , por Terra Sem Males - | No one following this article yet.
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Domingo passado foi dia do jornalista.

E o jornalismo está morto.

Na verdade, não está. Não 100%. Há jornalismo de verdade por aí, só é pouco. A frase acima foi pra chamar atenção. Usei de sensacionalismo: uma expressão forte, mesmo que inexata – que é um elogio para mentirosa – só pra chamar a atenção do leitor. Se essa frase consegue antecipar a informação que o leitor quer ler, então, melhor ainda. No fim, se não mantive a atenção de ninguém, paciência. Eu nem queria ela mesmo.

Como o jornalismo não está de todo morto, dá pra dizer que ele está, ao menos, meio morto. Zumbi. Há que levar ainda em consideração esses bagulhos da tecnologia de hoje em dia. Então, acho razoável dizer: o jornalismo hoje está um ciborgue zumbi. 25% humano, vivo, 25% robô e 50% morto.

Resta, talvez, uma redefinição do que seja, de fato, jornalismo.

Digo isso porque acabei de topar com um desses ciborgues zumbis por aí. É uma matéria do site Metrópoles assinada por Cleuci de Oliveira, sobre o caso Sabrina de Bittencourt. Ela contém um levantamento exaustivo que aponta somente pra uma direção: Sabrina, apesar de ser apontada como uma das responsáveis pela prisão de João de Deus, é uma mentirosa patológica, e que seu suposto suicídio pode ter sido forjado. Ali, no entanto, João de Deus não é defendido – é apenas uma grande pena para suas vítimas, e talvez para o feminismo, como um todo, que a pessoa que mais atraiu a atenção da opinião pública, fora o religioso, nesse caso, seja absolutamente não-confiável. Na matéria, a construção do discurso deixa no ar que há alta probabilidade não só de Sabrina estar viva, o que daria gás aos seus supostos perseguidores, como de que quem simpatizou com a ativista foi feito de trouxa.

Caso você tenha ficado com a pulga atrás da orelha a respeito de Cleuci de Oliveira, não, a autora não é a esposa do Luís Estevão, aquele senador condenado a 31 anos de prisão por peculato, corrupção ativa e estelionato. Esposa ou ex-esposa, porque no lugar dela eu teria me separado: imagina ser casada com alguém do PRTB. Mas, enfim, a Cleuci de que estou falando é uma jornalista brasileira com matérias no Guardian e no NY Times – pelo menos conforme diz em seu perfil no Tuíter. É certo que a patroa, ou ex, do Luís Estevão também aparece no site de notícias que dá a matéria de sua homônima, mas isso é detalhe. E talvez elas sejam homônimas pelo fato de serem mãe e filha, mas isso é detalhe menor ainda.

O coautor da matéria de Cleuci de Oliveira é David Agape, que não é jornalista, mas que fundou um negócio chamado Agência Dossiê – Jornalismo Investigativo de Verdade. Bom, sabe como é, né? Como ele não é jornalista, teve que chamar uma pra registrar o site, aparentemente. Apesar de o site se afirmar apartidário, está cheio de defesas a Bolsonaro, ataques à esquerda a às “feministas”, ataque à legalização do aborto, aquele tipo de coisa. Aquele tipo de coisa contra o qual Sabrina lutava, mitomaníaca ou não, aliás. A jornalista responsável pela Agência Dossiê, por sinal, não faz questão de esconder seu bolsonarismo nas redes.

Antes de Cleuci publicar sua matéira na Metrópoles, na Agência Dossiê já existia uma stalkeada, ou melhor, um dossiê a respeito de Sabrina de Bittencourt. Esse, igual à matéria de Cleuci, que na verdade é uma versão desse dossiê, “desmascara” a ativista que aparentemente ajudou a colocar João de Deus na cadeia: ela é mitomaníaca, esse é o ponto principal. E, assim como Cleuci, embasa Paulo Pavesi, o cara citado na suposta carta que a suposta Sabrina supostamente escreveu antes de seu suposto suicídio.

Apesar de Cleuci, em sua matéria, tentar esconder a identidade do filho de Sabrina, alegando “proteção” a ele, David Agape não é tão cuidadoso. Publica, inclusive, a foto do rapaz, junto com Jamie Oliver. Sim, aquele cara da comida. Tanto Agape quando Cleuci parecem surpresos que celebridades, como Felipe Neto, tenham sido envolvidas pelo ativismo travestido de rede de mentiras – ou rede de mentiras travestida de ativismo – de Sabrina.

Tanto a stalkeada de Agape quanto a matéria de Cleuci estão sendo parabenizadas como exemplo de bom jornalismo. Porque vão fundo em Sabrina. E vão mesmo. Impressiona porque, afinal, mesmo entre jornalistas, no mundo de plástico – com pessoas de plástico – de hoje em dia, quem tem tempo de fazer qualquer coisa que não seja superficial?

Só que tem um problema. O problema de quando você vê quem está checando a checagem. E percebe que afinal deve checar quem está checando a checagem.

O fato de existirem pessoas de extrema direita por aí publicando conteúdo – jornalístico ou não – não é nenhum drama. A não ser quando enveredam pelo discurso de ódio. Mas, em geral, é apenas uma galera que pensa muito diferente de mim e que, no caso que cito aqui, decidiu fundar um troço que parece com uma agência de checagem – já que todas as que existem, o 25% de jornalismo humano que existe por aí, aparentemente são invenções do Foro de São Paulo, recheadas de grana da Lei Rouanet. No entanto, no caso da Agência Dossiê, ainda se bate na tecla de uma isenção política que não só não existe, como ludibria. É um pouco como no revisionismo histórico promovido pelo atual governo, ao negar os malefícios da ditadura militar no Brasil. Em seguida, o problema aumenta um pouco quando o conteúdo de uma fonte como essa Agência Dossiê migra, mesmo que reformulado, para um site que ao menos parece, de fato, “jornalístico”.

Estou falando abertamente contra o governo atual aqui do Terra Sem Males, também abertamente contra o governo atual. Desde 2000 meus votos foram Lula, Lula, Dilma, Dilma, Haddadd. Da mesma forma que o conteúdo da Agência Dossiê não me inspira, eles não devem achar qualquer texto do Terra Sem Males atraente. Ou sequer válido. Uma reportagem com o dedo dessa galera vai me gerar desconfiança, ainda mais quando eles não deixam claro quem são. Posso até ler, cheio de reservas. Como quem recebe uma carona do Mr. Magoo. Quem lê a partir do compartilhamento em rede, entanto, pode estar lendo sem filtro.

Doida varrida ou não, mentirosa ou não, promotora de si própria ou não, Sabrina fez muito mais pelas vítimas de abuso – principalmente femininas – do que Cleucis, Agapes e quetais. Fez mais do que eu ou você, quem sabe. A que serve a exposição de suas mentiras e contradições, verdadeiras ou não? A que serve a verdade, sem a devida contextualização e complexificação?

Por Bruno Brasil, jornalista curitibano radicado no Rio de Janeiro, escreve para o Terra Sem Males na coluna “entre aspas”
Acesse aqui a coluna


Fonte: http://www.terrasemmales.com.br/quem-vigia-o-vigia-do-vigia-do-vigia/