No meio da multidão encontrei o Alfredo. Foi um alívio porque eu precisava mesmo de alguém para me traduzir o que significava aquele tumulto em meio àquela manifestação. No começo ele foi lacônico, como sempre, num misto de transe e certa euforia visível:
- Temos que impedir os Ratos de voltarem para a Assembleia. Eles querem decidir tudo sem nós!
Logo ele olhava para o lado, coordenava o bloqueio da entrada do que um dia foi a chamada casa do povo. Falava com várias pessoas, lançava palavras de ordem no megafone rouco.
Ter entrado em férias no começo do ano havia sido uma péssima decisão. Tudo aconteceu e mudou sem a minha presença.
Eram centenas de pessoas naquela entrada e nas várias outras. Agora, eu estava pasmo com a cena: em frente ao tribunal de contas, magistrados centenários de ternos polidos e rostos de cera, pingando no calor daquela tarde, eram obrigados a frear suas caminhonetes último modelo e abrir os bagageiros para que a multidão vasculhasse lá dentro. Não adiantava qualquer carteiraço que tentassem desferir. A multidão desviava e revirava o porta-malas.
- Alf, vocês estão loucos? Os Ratos não iam se esconder aí dentro.
Alfredo não falou muito. Depois de dois carros vazios, o terceiro automóvel continha sinais. Ele apenas exibiu, com ar de razão, um tufo de pêlos. Passados mais dois carros, encontramos um pedaço de cauda, balançado por ele como um troféu.
- Vai que é do presidente da casa. Está vendo? Eles estiveram por aqui e vão tentar entrar. Os roedores são ágeis.
Na confusão, eu havia desistido também de tentar entender como os policiais com quem houve vários confrontos nos últimos anos agora faziam o serviço para a gente, obstruíam aquelas mercedes último modelo. Àquela altura, num instinto coletivo, estávamos todos caçando roedores, por preservação de nossa espécie e sobrevivência. Não havia muita diferença naquele instante: éramos nós contra os Ratos. Nós nunca decidiríamos nada dentro da tal da casa do povo. Mas naquele momento ninguém estava disposto a deixar os Ratos fazer o que bem entendessem.
Mas os Ratos deram sinais. E, diga-se, possuem um senso de sobrevivência maior que o nosso. São bons jogadores. Alfredo teve que ter muita firmeza na sua liderança para dispersar as informações falsas de que os Ratos haviam invadido na verdade o canal da música, a universidade federal do paraná e o teatro guaíra.
- Nada disso, eles vão querer entrar aqui, na Assembleia.
Ficamos naquela entrada ainda por um bom tempo. Achamos de tudo, cartuchos de balas, achamos boletos, achamos mandatos de morte para jornalistas.
Mas tudo estava mudando em segundos e Alfedo, na excitação do momento, custou a acreditar. Já havia uns vinte minutos que o cenário havia mudado e já não havia sentido em buscar mais os Ratos na bagagem. A informação chegou de um companheiro de fonte firme: Alfredo foi puxado para um canto. Irritado, chegou a desferir um pequeno tapa no capô brilhante do magistrado.
- O que aconteceu?
- Eles entraram. Do outro lado da assembleia. Vamos correr pra lá porque está rolando enfrentamento com a polícia.
- Mas a polícia não estava nos ajudando? As entradas não estavam bloqueadas? Como os Ratos entraram?
Antes de se dispersar com o seu grupo, Alfredo viu minha cara de pasmo, deu um tapa nos ombros e me confortou:
- Cavaram um buraco por baixo da cerca e se enfiaram ali dentro.
- Os Ratos cavaram?
- Esse é o problema e o difícil da coisa. Já não eram ratos. Os que entraram na casa do povo já tinham virado texugos. Esses bichos costumam ser mutantes.
- Verdade. Às vezes também são animais de manada.
Alf não riu. Apenas correu. Na direção do horizonte já contaminado pelo gás e fumaça.
- Mas lá dentro novamente se tornam invertebrados.
Por Pedro Carrano
Crônicas de Sexta
Terra Sem Males