pro Bruxo
Eu sempre desconfiei daquelas imagens que me perseguiram a vida inteira.
Elas seguiam – seguem – no meu encalço, dançando nos meus calcanhares. Folhas rodopiantes, às vezes dispersas, às vezes em fileiras, cartas num jogo de baralho, que se podem organizar ou então virar um caos.
Eram rostos de velhos com sulcos profundos. Eram movimentos de crianças, olhos negros e cabelos negros. O rio era um corpo estendido sempre tão perto de nós. Eram vozes o que eu conseguia ouvir na minha memória.
E havia também os cheiros. Estes eram mais raros, só que também me assaltavam dependendo da situação e do lugar e tomavam conta, tomavam conta do corpo inteiro, mostrando que a memória é feita de mesmo barro, real, seco e concreto.
Nossas peles, pelos e cabelos eram diferentes. Ou eram iguais? Que importava? Nós não nos sentíamos diferentes. Isso importa mais aqui onde estou hoje do que lá onde ficou minha memória, ao lado de um incômodo permanente.
Nunca mais voltei às comunidades. Quando me tornei independente o bastante, optei por pensões no centro da cidade e a madrugada que se estendia no ritmo do próximo copo de cerveja. Mesmo assim meu apelido desde o cursinho ficou “índio”, por causa da minha pele e da vida do meu pai.
Meu pai seguiu indigenista. De comunidade em comunidade. De campanha em campanha, liberto de qualquer coisa que fosse fixa, rodando no seu Del Rey último modelo. Na sua bolsa de ombro, ele carregava uma câmera que era a síntese da personalidade dele: fotos tiradas, momentos vividos na intensidade. Sem nunca, contudo, tempo e disposição para revelá-los.
Resolvi tomar o busão até a aldeia onde ele finalmente, depois de muito convencimento de amigos e lideranças, topou juntar os materiais e fazer a exposição.
Os dois teimamos: meu pai em parar um momento para lançar química sobre os lances que nunca na vida tivemos impressos, nem mesmo registrados no computador. E agora eu me preparava na estrada para encarar o ambiente que sempre neguei, que sempre escapei, no interior de algum rincão perdido desse estado imenso.
Logo veio um furacão esperado de coisas na cabeça, enquanto viajava de uma imagem a outra, de preto-e-branco para, de repente, uma imagem colorida e desgastada.
E, no desafogo, me perdendo no susto e no desentendimento, do que eu nem mesmo sabia, meu pai me traduziu:
- Bonitos olhos.
- É o que mais chama a atenção na imagem.
Algo magnético havia naquela foto em preto-e-branco de um menino de uns quatro anos, cabelos cacheados e talvez loiros, diferentes da maioria de nós que estávamos na exposição na aldeia.
- De onde é isso?
- Talvez seja um espelho.
- …..
- O que te parece?
- Espelho do que você viveu, como assim. Da onde?
- Isso também.
- Como assim?
- É que esses olhos na verdade são os seus.
Por Pedro Carrano
Crônicas de Sexta
Terra Sem Males