A Jundiaí na qual fui criado e da qual me despedi no fim dos anos 80 do século passado marcou a minha personalidade de maneira indelével: o fato de ser extremamente conservadora e, até mesmo, de certa forma, intelectualmente sufocante, ajudou a me tornar uma pessoa mais contestadora, mais crítica e, confesso, menos tolerante com alguns componentes da psique que a média.
O julgamento que faço da Jundiaí de 40, 50 anos atrás pode estar comprometido por ela se encontrar, naquele tempo, imersa na névoa cinzenta da ditadura militar que, como sabem os que a vivenciaram, não foi exatamente uma era de luzes.
Dado esse desconto, lembro que morava numa cidade de rara atividade artística, escassas manifestações culturais, excesso de religiosidade simplória e uma estratificação social rígida - havia os pobres - muitos -, uma classe média também extensa e poucos ricos - extremamente ricos.
E havia, sobretudo, uma calmaria inquietante, um silêncio que doía na alma.
Parecia que nada acontecia no mundo - pelo menos naquele mundinho a que se resumia a Jundiaí de então.
A rotina escolar, com as inevitáveis amizades que se formavam e as tarefas que eram impostas, amenizava um pouco essa sensação de desesperança.
A minha vida mudou, porém, apenas quando comecei a trabalhar, aos 16 anos, no Jornal da Cidade.
A partir desse momento fui conhecendo mais pessoas, muitas interessantes, descobri que queria fazer na vida e pude, graças ao contato diário com uma diversidade que desconhecia até então, evoluir profissional e pessoalmente.
O jornalismo me fez aprofundar a análise da sociedade na qual vivia.
Por meio dele percebi que o homem se adapta a qualquer situação, se molda às circunstâncias de maneira a tirar delas o melhor para si - percebi, em resumo, como o homem é egoísta e coloca o seu bem-estar acima de tudo.
Um exemplo disso eram as "edições especiais" que os jornais locais faziam para comemorar o que se chamava, naquela época, de "revolução": páginas e mais páginas de anúncios do comércio e indústria da cidade louvando o 31 de março, a data da "Redentora".
Ou os disputados cursos promovidos pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, a notória Adesg, pelos quais os civis proeminentes da comunidade se engajavam, de corpo e alma, à filosofia das Forças Armadas, contra o comunismo ateu e a favor da propriedade, da família e da pátria.
Lembro ainda de um contraparente nosso, que nas festinhas de aniversário se dizia indignado com o que os militares estavam fazendo com o Brasil, mas que, num determinado dia, anunciou que havia ingressado nas fileiras da Aliança Renovadora Nacional, a Arena, partido criado para sustentar a ditadura. A justificativa que deu ao meu pai, o capitão Accioly, que se surpreendeu com a sua decisão, ainda me faz refletir, tantos anos depois, sobre a canalhice humana: "Na Arena eu posso combater o inimigo de dentro dele", disse, sem nenhuma vergonha, esse contraparente.
Só para constar: o sujeito se tornou, pouco depois, prefeito de Jundiaí. Terminado o mandato, nunca se elegeu para nenhum cargo público.
Fui tomado por essas recordações da Jundiaí provinciana de tanto tempo atrás ao ver o desalento de alguns amigos e conhecidos com o que se passa no Brasil hoje, no qual uma parcela expressiva da população clama pela quebra da democracia, sob as alegações mais esdrúxulas, abrindo, assim, o caminho para a volta ao poder de políticos identificados com o que pior existe na natureza humana.
Como há 50 anos, naquela cidade interiorana em que cresci e na qual vivi três décadas, a atmosfera está hoje impregnada de um enjoativo odor agridoce, indefinível, que penetra pelas frestas das portas das casas e domina as mentes, deixando nas pessoas uma sensação de incômodo, de que estamos prestes a nos render, novamente, à paz dos cemitérios.
Este Brasil de agora me assusta principalmente por isso, por sentir que ele está muito próximo de se tornar aquela quieta, ordeira e inamovível Jundiaí do passado.