Artigo da economista Ana Luíza Matos de Oliveira para o site Pragmatismo Político mostra que o programa de um hipotético governo sob a liderança do PMDB, expresso no documento "Ponte para o Futuro" seria uma desgraça completa para a sociedade brasileira.
Segundo ela, no documento "ficam de lado assim os objetivos sociais e o enfrentamento dos problemas históricos do país, como a alta informalidade e rotatividade do mercado de trabalho, as desigualdades no acesso à educação e saúde, a desigualdade tributária que penaliza os mais pobres, a violência contra a juventude negra, o problema da moradia e do saneamento básico, a mobilidade urbana, entre diversos outros fatores".
O artigo é intitulado "A Ponte para o Abismo do Impeachment" e a sua íntegra vai a seguir:
Para além das inconsistências jurídicas (“‘Pedalada fiscal é desculpa’, diz autor de pedido de impeachment de Collor”) e do risco à democracia (“Nota: ABCP expressa preocupação e perplexidade com a aceitação do pedido de impeachment do mandato de Dilma Rousseff”), outro motivo deveria motivar as brasileiras e brasileiros a não apoiar o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.
Esse motivo foi divulgado há cerca de um mês, pelo próprio PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer e que poderia vir a assumir a presidência: o motivo é o documento “Ponte para o futuro”. No documento, são expostas propostas de políticas a serem aplicadas pelo partido, talvez motivados por dar uma resposta a outro conjunto – bem diverso – de propostas elencadas no documento “Por um Brasil justo e democrático”, lançado em agosto de 2015 por Brasil Debate, Centro Internacional Celso Furtado de Políticas Para o Desenvolvimento, Fundação Perseu Abramo, Fórum 21, Le Monde Diplomatique Brasil, Plataforma Política Social e Rede Desenvolvimentista.
Mas o documento “Ponte para o futuro” não foi escrito para que as cidadãs e cidadãos comuns do Brasil conheçamos as propostas do partido, mas sim para marcar o compromisso da legenda, caso passe a comandar o executivo, com certos interesses econômicos poderosos no país e no exterior.
“Ponte para o futuro” começa por apontar as estratégias para a questão fiscal, que parece ser a prioridade inquestionável. Para isso, seria necessário “reconstituirmos o Estado brasileiro” a fim de colocar em prática uma política de “ajuste de caráter permanente”. O diagnóstico do documento é de que “o Governo Federal cometeu excessos, seja criando novos programas, seja ampliando os antigos, ou mesmo admitindo novos servidores ou assumindo investimentos acima da capacidade fiscal do Estado”. Afirma ainda que “algo muito errado está acontecendo com o nosso país nestes últimos anos”, ainda que o próprio PMDB tenha tido papel chave no Governo Federal. O documento é parcial ao não apontar as melhorias dos índices sociais ocorridas até 2014 no país, muito em decorrência das políticas públicas adotadas a nível nacional e do dinamismo do mercado de trabalho.
O documento em questão condena a criação de despesas obrigatórias, o “que tornou impossíveis ações de ajuste” e propõe, para atingir o equilíbrio das contas públicas, “devolver ao orçamento anual a sua autonomia”, acabando com as vinculações constitucionais e dando poder a que o parlamento eleja prioridades: ipsis literis, o documento propõe que “é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação”. Assim, a proposta representa a possibilidade de redução dos já insuficientes gastos em tais áreas.
“Ponte para o futuro” segue condenando o crescimento das despesas públicas primárias a partir da Constituição de 1988, que correspondem, por exemplo, a despesas com direitos sociais. O documento continua questionando a Constituição e a legislação brasileira, ignorando a luta de um dos fundadores do próprio PMDB pela chamada “Constituição Cidadã”, Ulysses Guimarães. Aliás, o documento tem o selo da Fundação Ulysses Guimarães.
Ainda, o documento parece ignorar a importância social do sistema de previdência social brasileiro e propõe uma reforma na previdência para a redução dos custos – elevados em especial para o setor privado, segundo o documento -, além de defender o Fator Previdenciário. Ignora ainda o papel crucial da política de valorização do salário mínimo na redução da desigualdade de renda no país, tratando da mesma somente para questionar o uso de mecanismos de indexação pelo salário mínimo, como é o caso dos benefícios sociais, que geram “graves distorções”.
Quanto à questão dos juros, o documento justifica que estejam altos agora porque “a inflação está muito acima da meta de 4,5% e ameaça sair de controle”, no entanto os juros altos no Brasil não vêm do período recente, mas são um problema histórico e que é um entrave para o crédito e o setor produtivo no Brasil. O documento, no entanto, justifica que os juros aqui são altos por um motivo fiscal (voltando à prioridade do documento): “o Brasil nunca exibiu uma garantia sólida de equilíbrio fiscal de longo prazo e os juros altos talvez sejam o preço que pagamos por isso”. Mas não trata dos interesses dos que ganham com a altíssima taxa de juros praticada no Brasil. Novamente, a questão fiscal (através das propostas de “reforma do orçamento, adaptação da previdência às mudanças demográficas e um esforço integrado de redução dos custos da dívida pública”) é tida como a chave para a queda dos juros, crescimento econômico etc.
Ficam de lado assim os objetivos sociais e o enfrentamento dos problemas históricos do país, como a alta informalidade e rotatividade do mercado de trabalho, as desigualdades no acesso à educação e saúde, a desigualdade tributária que penaliza os mais pobres, a violência contra a juventude negra, o problema da moradia e do saneamento básico, a mobilidade urbana, entre diversos outros fatores. Aliás, não ficam de lado, mas são usados como moeda de troca a fim de atingir o “equilíbrio fiscal”. Preservando quais interesses? Em detrimento de quantos milhões de brasileiros que sofrem com esses problemas históricos?
Que não permitamos que o ano que começou com o ajuste fiscal – e que transformou um problema fiscal em uma crise econômica e social – não termine com a “Ponte para o abismo” do PMDB, com o agravamento da nunca resolvida questão social brasileira.
(Ana Luíza Matos de Oliveira é economista e doutoranda em Desenvolvimento Econômico)
Motta
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