Numa de suas mais recentes entrevistas, o compositor, violonista e cantor Carlos Lyra, um dos pais da Bossa Nova, melodista de primeira, autor de inúmeras canções que se tornaram clássicos da música brasileira, disse que artistas como ele têm cada vez menos espaço para se apresentar e, além disso, acha uma estupidez monumental que o Rio de Janeiro não use, como ferramenta de marketing, o movimento que mudou e levou a MPB para o mundo.
- O pessoal de fora que vem ao Rio me liga querendo saber onde se escuta Bossa Nova na cidade. E eu respondo: no meu apartamento.
No fim de semana passado, Lyra teve um palco para mostrar seu imenso talento - e para contar histórias que de certa forma resumem a sua vida artística e a da Bossa Nova. Ele foi a atração de sábado, 27 de agosto, do 10º Festival Etapa de Música de Arte, realizado anualmente na cidade de Valinhos, ao lado de Campinas. Neste ano também estiveram lá outros artistas que formam um time de primeira - não só do Brasil, mas de todo o mundo: Nelson Ayres, Egberto Gismonti, João Bosco, Carlos Malta, Duo Fel, Jaques e Paula Morelenbaum, e Robertinho Silva.
A professora do Etapa que fez as honras da casa para a plateia que lotou o auditório do colégio, com capacidade para umas 500 pessoas, no mínimo, ressaltou que o festival, que reúne a fina flor da música brasileira desde 2007, é realizado pelo colégio sem nenhum tipo de ajuda de fora, ou seja, de programas de incentivo fiscal.
Não entendi bem o que ela quis dizer com isso: afinal, pelo menos na minha concepção, o Estado tem o dever de apoiar a arte e a cultura.
Talvez o pessoal do Etapa não pense assim e ache que os empresários é que devem cuidar disso, no papel de mecenas. Ou apenas usem o festival como uma grande sacada de marketing.
Seja como for, o fato é que, convenhamos, pagar R$ 40 ou R$ 20, no meu caso que já passei dos 60 anos, para ver e ouvir Egberto Gismonti, Carlos Lyra e João Bosco, que foram os shows que pude assistir, é uma pechincha.
E também uma benção.
Já escrevi sobre Gismonti outro dia - acho que ele está, artisticamente, no nível de um Villa Lobos, de um Hermeto Pascoal, de um Tom Jobim, para citar só os gênios brasileiros.
Sobre Carlos Lyra também não há muito o que dizer. Um cara que fez "Primavera", "Minha Namorada", "Maria Moita", "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", "Influência do Jazz", entre tantos outros clássicos da riquíssima MPB, já conquistou o seu lugar entre os mestres.
Aos 83 anos, sem tocar violão por causa de um acidente doméstico que machucou o ombro, Lyra ainda está muito à vontade no palco, cantando tal qual um "chansonnier" num recital intimista, e contando histórias saborosas sobre seus parceiros, seus amigos e sua carreira.
Resta, para encerrar esta croniqueta, falar sobre João Bosco. Aí, como dizem,é chover no molhado: a sua obra é uma das mais importantes dos últimos 40 anos da MPB, seu estilo de tocar violão e cantar é original e inconfundível, mas isso qualquer crítico musical e quem acompanha o artista está cansado de saber.
O que deixou a plateia estupefata foi ver que João, aos 70 anos, está cantando ainda melhor que antes, com um pique de um artista iniciante - seu show durou duas horas -, e que atingiu um domínio musical raramente visto nesta e em outras terras, oferecendo ao público arranjos novos e sofisticados para antigas canções, executados por um grupo de excepcional qualidade, formado por Ricardo Silveira, na guitarra, João Batista, no baixo, e Kiko Freitas, na bateria - o que ele faz com as baquetas, escovas e mãos é algo difícil de acreditar e descrever.
Gostaria de ter visto as outras atrações do festival, principalmente Carlos Malta, Duo Fel e Robertinho Silva, mas infelizmente não deu.
O que vi, porém, serviu plenamente para reforçar a fé que tenho de que o solo brasileiro é fértil o suficiente para que brote dele muita coisa boa, muita árvore frondosa, forte e com frutos que alimentam o corpo e o espírito, e não apenas as ervas daninhas que hoje parecem tomar conta de tudo. (Carlos Motta)