A ideia de que as autoridades possam estar envolvidas na produção e na comercialização de tais drogas é instintivamente rejeitada: afinal não são estas mesmas autoridades que combatem o cultivo e que tentam desmantelar as redes de importação e venda?
O facto do Afeganistão ter-se tornado o principal produtor mundial de opio (e de heroína, o seu derivado) após a "libertação" das forças ocidentais é encarado como um acaso e qualquer ligação entre os dois factos é visto como fruto da conspiração.
Esta atitude nasce da ignorância (do latim ignorare = não saber) de precisos factos históricos.
Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, as elites políticas dos Estados Unidos e britânicas tiveram que enfrentar a ameaça do Socialismo na escala global: decidiram responder através da mobilização de recursos, públicos e ocultos, para implementar um programa de Roll Back e reverter o avanço do Comunismo.
Paradoxalmente, um autêntico bloqueio contra a mobilização anti-comunista vinha do interior dos Estados Unidos: a maioria da população desconfiava dum projecto de política externa com um tal alcance. Isso porque, do ponto de vista do americano médio, o mundo era representado pela América do Norte e os seus interesses no âmbito da política externa eram mínimos. Devido a enraizado isolacionismo, no início da Guerra Fria os grandes gastos governamentais para alimentar a política externa estavam fora de questão. Além disso, a CIA, a principal fonte de rendimento no campo da política externa americana, era para a maioria dos norte-americanos do pós-guerra uma agência como qualquer outra, quando na verdade já caminhava para ocupar o papel do jogador-chave.
É nesta altura que as substâncias estupefacientes cruzam o percurso com aquele das autoridades: para realizar maciças operações globais, a CIA pediu à Casa Branca uma licença para encontrar fontes alternativas de financiamento. E claro está: "alternativas" significava fora do circuito da legalidade.
A droga pareceu logo como o negócio mais rentável entre os conhecidos. A natureza ilegal então ditou as regras do jogo: enquanto alguns dos ganhos foram realmente utilizados para apoiar as operações encobertas, outros foram desviados para o enriquecimento pessoal de agentes e gerentes da Agência, ou manteve-se nas mãos de grupos financeiros com poder de pressão sobre o governo norte-americano. Evitar atitudes ilegais no âmbito de grandes operações ilegais é empresa muito complicada. Consequentemente, a cumplicidade no negócio da droga começou a espalhar-se para os níveis superiores do establishment da América do Norte.
O primeiro exemplo das conexões entre a CIA e o negócio da droga apareceu por volta de 1947, quando Washington, preocupada com o aumento do movimento comunista na França do pós-guerra, decidiu associar-se com a nota e cruel máfia da Córsega na luta contra a Esquerda. Uma vez que o dinheiro não podia ser oficialmente gasto em alianças desagradáveis através dos canais oficiais, uma grande fábrica de heroína foi criada em Marselha com o apoio da CIA, que também alimentou o negócio. O empreendimento empregava habitantes locais, enquanto a CIA organizava o ciclo de fornecimento e o terror físico e psicológico contra os comunistas na França.
Posteriormente, o esquema foi adoptado em outras partes do planeta.
No início dos anos '50 a CIA dirigia uma rede de fábricas de heroína no Sudeste Asiático e uma parte dos lucros ajudou Chiang Kai-shek na luta contra a China comunista. A seguir, a CIA começou a patrocinar o regime militar do Laos, fortalecendo os seus laços na região do Triângulo Dourado: Laos, Tailândia e Birmânia, Países que na altura contribuíam para 70% da oferta mundial de ópio.
A maior parte da droga era enviada para Marselha e a Sicília, para ser processada nas fábricas geridas
pela máfia siciliana e francesa.
Na Sicília, a organização criminosa que geria as várias fábricas de drogas tinha sido fundada por Lucky Luciano, um gangster americano nascido na Itália e aí regressado após a Segunda Guerra Mundial. Tinha sido o governador do Estado de New York, Thomas E. Dewey, a agradecer Luciano por causa dos serviços prestados à Marinha dos EUA e a estabelecer a sua transferência para a Italia; e tinha sido a Máfia dos EUA, com a participação da comunidade hebraica americana, a apoiar (também financeiramente) a sua transferência.
As informações de-classificadas não deixam dúvidas sobre o trabalho que Luciano desenvolvia para a intelligence americana: os lucros eram divididos entre a Máfia e a CIA, que também utilizava os fundos para combater a sua guerra secreta contra o Partido Comunista Italiano.
A CIA continuou a receber dinheiro do Triângulo Dourado durante a Guerra do Vietnam. Os estupefacientes desta região eram importados de forma ilegal nos Estados Unidos e distribuídos para as bases militares no estrangeiro: muitos dos veteranos da guerra foram marcados não apenas pelos eventos bélicos mas também pelo uso dos narcóticos.
Obviamente, as actividades relacionadas com o tráfico da droga realizadas pela CIA tinham que permanecer em segredo, mas isso não era simples. Um enorme escândalo estourou já na década dos anos '70, envolvendo o banco Nugan Hand de Sydney (Austrália) com as filiais nas Ilhas Cayman e o ex-director da CIA, William Colby, que actuava como um consultor jurídico. A CIA utilizava o referido banco para operações de lavagem de dinheiro na gestão dos recursos obtidos com o tráfico de drogas e armas na Indochina. Colby dirigia operações anti-comunistas em Roma durante os anos '50 e na década sucessiva operava no Vietnam. Em 1971 foi nomeado director da CIA mas, envolvido nas polémicas do Relatório Pike (que tratava dos financiamentos ilícitos da Agência, do FBI e da NSA), foi substituído por George Bush em 1976.
A geografia do tráfico de drogas da CIA expandiu-se constantemente. Nos anos 80, a troca droga-armas foi replicada para financiar os Contras da Nicarágua, mas depois das descobertas do Comité de Relações Exteriores do Senado foi aberta uma investigação. Uma frase do relatório do Senado afirmava:
Os decisores dos Estados Unidos não estavam imunes à ideia de que o dinheiro da droga era uma solução ideal para o problema do financiamento dos Contras.
O livro The Mafia, CIA and George Bush de Pete Brewton (1992) oferece uma série de dados concretos que provam as ligações entre o director da CIA e depois presidente dos EUA, George Bush, e a máfia: em determinadas fases da sua carreira, Bush combinou a sua função pública com aquela política e do negócio da drogas.
O establishment americano tinha concluído que os estupefacientes, além de ser utilizados em circunstâncias políticas, poderiam ser úteis para alcançar objectivos geopolíticos de longo prazo. Quando Paul Brenner se tornou chefe de Bagdade, após a "libertação" do Iraque de 2003, nada fez para levantar uma barreira contra a vaga das substâncias ilícitas que varreu o País.
E é importante realçar como o negócio dos estupefacientes não existia durante o governo de Saddam Hussein: a cidade nunca tinha visto o vício das drogas até Março de 2003 (enquanto agora está submersa nele, principalmente heroína).
De acordo com um relatório publicado pelo diário inglês The Independent, os cidadãos de Bagdade se queixam do facto das drogas (heroína, cocaína, etc.) estarem a ser comercializadas nas ruas das cidades iraquianas. Escreve Brenda Stardom:
Alguns relatos sugerem que o tráfico das drogas e das armas foi apoiado pela CIA, a fim de financiar as suas operações internacional.
Terias sido enforcado por causa do tráfico de drogas. Mas agora podes obter heroína, cocaína, qualquer coisa.
No Iraque apareceu e espalhou-se o tráfego de substâncias ilegais enquanto o Afeganistão tornou-se o primeiro produtor mundial de ópio. Deve ser um caso, justo? É o que vamos ver na segunda parte do artigo.
Ipse dixit.
Fontes: no fim da segunda parte.