Em causa estão os vereditos do Tribunal Supremo de Justicia (TSJ) que, de facto, desautorizou a Assembleia Nacional da Venezuela.
Então, qual a versão verdadeira?
Simples: ambas são verdadeiras.
Golpe e não golpe
Com os recentes vereditos nº 155 e 156, o Tribunal Supremo de Justicia (TSJ) venezuelano decidiu que a Assembleia Nacional estava "em situação de desprezo", por causa da eleição de alguns dos seus membros (os representantes do Estado da Amazonas). Portanto, retirou à Assembleia os poderes legislativos, o que significa que o Tribunal pode agora criar leis.
O Tribunal não indicou se ou quando entregará o poder de volta, mas uma declaração emitida afirmou que o TSJ irá manter os poderes do legislador até que a "situação de desprezo persista e as acções da Assembleia Nacional sejam invalidadas". Os vereditos também concedem ao Presidente Maduro o poder de suspender as eleições, prender deputados da oposição e retirar a Venezuela da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Qual esta "situação de desprezo"?
Segundo Tribunal, a Assembleia deu posse a três deputados do Estado do Amazonas, cuja eleição (6 de Dezembro de 2015) foi impugnada em razão de indícios de fraude eleitoral, tais como gravações nas quais a então secretária de governo do Amazonas, Victoria Franchi, oferecia dinheiro a grupos de pessoas para votar em candidatos da oposição. Para esta, manter os três deputados significava garantir a maioria de dois terços, necessária para revogar ou modificar as leis orgânicas, como a Lei do Trabalho ou a Lei da Educação. Portanto, o TSJ assumiu as competências do Legislativo.
Pormenor: a investigação acerca dos três membros do Estado do Amazonas ainda não acabou. É uma situação muito parecida com aquela que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, na qual os apoiantes da Presidente protestavam pela falta dum veredito de culpa emitido pela autoridade judiciária: existem uns investigados mas ainda o processo encontra-se em curso. Tecnicamente, todos os representantes da Assembleia até a data actual os requisitos para ocupar os lugares deles e isso até a condenação.
É então possível falar de "golpe"? Não, não estaria correcto.
Esta não é apenas uma questão de quem está certo ou quem está errado do ponto de vista legislativo ou processual. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça permite que sejam resolvidas questões de interesse nacional que, em caso contrário, ficariam bloqueadas por causa da atitude da oposição parlamentar. Esta ganhou as eleições e tomou o seu assento no Parlamento com o claro (e único) propósito de criar problemas ao executivo de Maduro, para arrasta-lo num impasse.
O que Maduro fez com o veredito do TSJ foi, afinal, procurar aquelas condições que permitam ao Estado de funcionar, coisa que nos últimos 16 meses (desde as últimas eleições) não aconteceu por causa da Assembleia.
Se a Assembleia Nacional quisesse, poderia usar os seus poderes em prol do País: seria suficiente respeitar as anteriores decisões do TSJ sobre os três deputados do Amazonas (o Tribunal já tinha rejeitado os três membros por causa das alegadas irregularidades na eleição) e começar a legislar. Mas a oposição não está interessada na legislação agora: quer é criar um acidente tão grande quanto possível, a fim de justificar a expulsão de Maduro.
Crise: as soluções
Dito isto: a Venezuela está a passar por uma crise gravíssima, como afirmado, o colapso do preço do
petróleo é acompanhado por uma recessão muito severa, uma inflação fora de controle, a grave escassez de alimentos e de medicamentos básicos, a paralisia da produção. O governo não consegue encontrar uma solução que é seu dever de encontrar.
Mas é claro que a solução passaria por rejeitar a essência do projecto político de Chávez: todas as conquistas da revolução destruídas, abolição das missões sociais, empresas e terras nacionalizadas devolvidas aos seus antigos proprietários, direito ao trabalho abolido também (permitindo demissões em massa nas empresas estatais e privadas), pensões de velhice cortadas, cortes nos cuidados de saúde e na educação. Seria uma cópia das primeiras medidas tomadas pelos governos que alcançaram recentemente o poder na Argentina e no Brasil.
De facto, existem apenas duas maneiras de sair desta crise económica:
- uma é permitir que o mercado capitalista possa funcionar "normalmente", o que significaria que os trabalhadores estariam forçados a pagar a totalidade do preço da crise;
- a outra maneira seria expropriar os capitalistas e gerir toda a economia, com base num plano democrático de produção que possa satisfazer as necessidades da população e, ao mesmo tempo fazer um apelo internacionalista para trabalhadores e camponeses apoiarem a revolução. Isto faria com que os capitalistas paguem a crise.
Rumo à "normalização"
A oposição não tem o poder de mobilizar em massa as pessoas, não tem o apoio dos militares e nem um suficiente controle da economia. Pelo que, as escolhas estão nas mãos de Maduro.
Este, em ocasião da Venezuela Potencia Expo 2017, fez algumas declarações no sentido de aumentar as concessões aos capitalistas, nacionais e internacionais. Rejeitou aquela que definiu como uma "campanha suja que diz que olhamos para o modelo comunista e rejeitamos a iniciativa privada". E anunciou outras concessões aos empreendedores, nacionais e estrangeiros, com empréstimos dos bancos estatais (tanto em Bolivar quanto em Dólares dos EUA) e a liberalização dos controles de câmbio para permitir que as empresas privadas tenham um acesso mais fácil aos Dólares.
São declarações que têm causado desconforto nas fileiras do Movimento Bolivariano e são uma continuação e um reforço da política que o governo Maduro tem seguido desde que foi eleito: responder aos ataques da oposição no campo político e institucional, concedendo mais espaço ao mercado privado no campo económico.
A razão? Maduro entende que não pode confiar apenas nos lucros do petróleo: os preços do crude aumentaram, é verdade, mas com isso o fracking dos EUA tornou-se mais rentável, o que prejudica as exportações de Caracas, 96% das quais são constituídas pelo petróleo. A alternativa é conceder mais espaço ao empreendedorismo privado (10% da economia agora), na tentativa de aligeirar os encargos do Estado em tempos curtos e médios.
Mas não foi este o legado de Chávez.
Nos últimos discurso antes da morte, Chávez tinha destacado duas ideias-chave:
- ainda estamos numa economia capitalista e devemos ir para o Socialismo
- temos de destruir o Estado burguês e substituí-lo por um "Estado comum".
Ipse dixit.
Fontes: Iela, Efecto Cocuyo, Investire Oggi, Information Clearing House, Telesur