A situação nem sempre era fácil: as relações entre indígenas e holandeses às vezes eram tensas e foi por isso que a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais tinha enviado Minuit naquelas terras, para organizar melhor a comunidade dos seus compatriotas.
Minuit identificou o lugar ideal para desenvolver a colónia: o ponto final da ilha de Manhattan. Mas como ocupar o lugar sem irritar os habitantes locais? Minuit quis fazer as coisas direitinhas (afinal era sempre um exponente do espírito mercantilista europeu) e propôs aos nativos um regular contracto de compra e venda. Os nativos, é claro, não sabiam o que fazer com o dinheiro europeu, mas o chefe da tribo dos Lenape, Seyseys, aceitou alguns bens em troca da concessão da terra: espelhos e ferramentas, por um valor de 60 Florins (cerca de mil Euros).
Assim, os holandeses tomaram posse, através de uma troca livre e legítima, de uma terra que actualmente é uma das mais preciosas do mundo; há quem defina esse como o negócio mais lucrativo de todos os tempos.
Esta, pelo menos, é a versão oficial (como pode ser lida também na Wikipedia). A realidade foi um pouco diferente.
Na verdade, o que os nativos americanos acreditaram negociar com os recém-chegados era um simples direito de explorar a terra: achavam que os holandeses estivessem a pedir a permissão para caçar e obter a madeira daquelas terras. Isto porque para os nativos americanos a ideia de "vender" a terra era inconcebível: na cultura deles, "comprar a terra" era um conceito que nem sequer poderia ser levado em consideração pois a terra não tinha proprietários, tal como os rios, as montanhas, o céu. No máximo era possível explorar os recursos aí presentes, nada mais.
De todos, de ninguém
E pode parecer estranho, mas o mesmo conceito tinha vigorado na Europa também, até alguns séculos antes da era moderna. Isto é evidenciado por numerosos contractos que remontam ao final da Idade Média: neles são estimados os bens de privados e associações, o valor das casas e dos imóveis, mas nunca é calculado o valor da terra. O rendimento de uma propriedade era estabelecido com base nos frutos que oferecia (a produção de trigo, de vinho, o número de árvores presentes, etc.), ou no número de animais que podiam aí pastar, mas as estimativas do valor da terra em quanto tal nunca eram feitas.
Isso acontecia porque a terra não era considerada um objecto material que pudesse ser comprada ou vendida: ninguém poderia reivindicar a propriedade, como a entendemos hoje. Antes da era moderna, a terra no máximo era concedida.
O próprio Rei, no topo da pirâmide social, não era dono da terra, mas "administrava" o território por
conta de Deus, sendo ele o soberano por direito divino. Aos nossos olhos essa distinção pode parecer ridícula, quase um eufemismo para esconder a realidade, mas na altura era um facto estabelecido e implícito, que não podia ser questionado: a terra não tinha donos, da mesma forma que ninguém podia reivindicar a propriedade do céu.
No esquema piramidal medieval, no topo havia então o Rei que administrava a terra em nome de Deus; por sua vez, o Rei concedia o direito de administrar parte deste território aos senhores, aos condes, aos marqueses: estes tinham a tarefa de administrá-lo em nome do Rei, e costumavam conceder a trabalhadores e camponeses partes desta terra para poder utiliza-la. Os camponeses que trabalhavam na terra podiam construir edifícios para aí viver e continuar assim as suas actividades: aqueles edifícios eram de facto os imóveis deles, mas não a terra onde os edifícios surgiam.
Quando os Papas voltaram em Roma no final do século XIV, após o cativeiro de Avignon, encontraram uma cidade com grandes áreas abandonadas, que tinha pouco a ver com a gloriosa Urbe da era clássica. Para incentivar a chegada de novos cidadãos e o renascimento urbano, vários lotes foram concedidos a preços quase insignificantes, com contratos de emphyteusis: na prática, o terreno era alugado aos recém-chegados por períodos principalmente de 99 anos, desde que fossem construídos edifícios e fossem abertas novas actividades. Mais uma vez: a terra não era vendida, apenas concedida por um certo período de tempo, com opções favoráveis para que o "aluguer" fosse renovado no final do contrato.
O conceito de terra como um bem não sujeito a venda sobreviveu até todo o período medieval e encontrou a sua expressão máxima naquelas que hoje são conhecidas como "terras do estado": em origem eram grandes extensões de território que não "pertenciam" a ninguém, onde qualquer pessoa podia ir para pastar os animais ou colectar madeira. Não eram espaços "municipais" ou "públicos", tal como os entendemos hoje, porque nem o próprio Rei podia impedir o livre acesso.
Os Enclosures Acts
Quando é que a terra começou a tornar-se "privada", objecto que pode ser vendido e comprado?
O fenómeno teve início na Inglaterra com os "cercamentos legais" (enclosures em inglês): a partir do momento em que se processou a transição para o modo de produção capitalista, a terra passou a ser encarada como um bem de produção e os senhores locais cercaram as terras para arrenda-las como pastagens (século XVII).
O processo intensificou-se no século sucessivo até que o Parlamento inglês aprovou as leis dos recintos (Enclosures Acts, entre 1700 e 1810), o que pode ser visto como o acto simbólico que põe fim à antiga concepção da impossibilidade da posse da terra na Europa: com os recintos, acabam os abertos e as terras comuns, que representavam um recurso essencial para os pequenos agricultores e criadores ingleses.
Desde então, cada faixa de terra foi delimitada, seccionada e vendida com regulares contratos que estabelecem a propriedade total como nós o entendemos hoje. É assim também que começa a era moderna, caracterizada pela industrialização na qual confluiu a massa de camponeses incapazes de continuar as suas antigas actividades.
Ipse dixit.
Fonte: Tra Cielo e Terra.