Nos dias de hoje, o que põe em rota de colisão as duas vertentes do Islão é um conjunto de múltiplos factores (principalmente políticos e económicos), mas não deixa de existir o aspecto teológico também que, pelo contrário, é sempre forte. E é disso que vamos falar.
A origem da divisão
As divisões no seio da religião islâmica nasceu muito cedo, logo após a morte do Profeta Maomé (ou Muhammad) em 632 d.C.. Na altura, a questão da sua sucessão tornou-se central.
Os discípulos de 'Ali ibn Abi Talib (primo e genro do Profeta) acreditavam que os únicos habilitados a exercer o poder fossem os Ahl al-Bayt, as "pessoas da casa" (ou seja: a família do Profeta) e, portanto, que Ali fosse o único legítimo sucessor. A ideia era apoiada por um episódio: perto do Ghadir Khumm, uma espécie de lagoa não longe de Medina e de Meca, o Profeta Muhammad, já perto da morte, disse: "Daquilo de que eu sou mawlā [tutor], também 'Alī será mawlā", levando assim os presentes a reconhecer 'Alī como seu sucessor. Uma espécie de investidura.
Portanto, os xiitas argumentaram que o papel do Imam (o líder religioso) e do Califa (a autoridade política) devem ser combinadas numa única pessoa; e esta pessoa deve estar ligada à família do Profeta ou aos companheiros deste. Opinião diferente aquela dos sunitas, segundo os quais o Imam pode ser uma qualquer pessoa que demonstra ser um bom fiel.
A disputa continuou ao longo de décadas com vários episódios até que, em 680, os seguidores de 'Alī optaram para a cisão do resto da Umma (o conjunto de todos os fieis islâmicos). Com o tempo, os seguidores começaram a pôr em forma escrita as suas reflexões teológicas e políticas, evoluindo em direção ao que se tornará o verdadeiro islamismo xiita.
A escola sunita, por sua vez, mesmo tendo prevalecido nos factos desde o princípio, encontrou um enquadramento teológico só muito tempo depois e, neste aspecto, é posterior ao nascimento das escolas xiitas. É preciso frisar como as duas almas do Islão conseguiram conviver de forma bastante pacífica ao longo os séculos. Houve episódios de violência, sem dúvida, mas nunca houve um confronto comparável à Guerra dos Trinta Anos, em que as diferentes confissões cristãs na Europa do século XVII confrontaram-se provocando um grande número de mortes; e nunca chegou-se a uma situação tão precária como a presente. Onde é possível encontrar o recente ponto de partida do choque que hoje enche as páginas dos jornais?
O āyatollāh Khomeini |
A Revolução Islâmica de 1979 no Irão mudou parcialmente essa atitude: a chegada do Aiatolá Khomeini, após 14 anos no exílio, provocou a fuga do Xá Reza Pahlavi, a queda do regime filo-ocidental e a instalação do mesmo Khomeini como chefe máximo do País. Estabeleceu-se uma república islâmica, com leis conservadoras inspiradas no Islamismo e com o controle político nas mãos do clero: o poder passou para as mãos de juristas religiosos (Velayat-e Faqih) entre os quais destaca-se a figura do líder supremo (Rahbar) que, assistido por alguns Mulla (estudiosos islâmicos), tentar gerir a sociedade islâmica, preparando também as condições adequadas para o regresso do esperado Último Imam.
O problema é que não é possível ignorar as diferenças entre xiitas e sunitas, pois elas existem e interessam as fundamentas da religião islâmica. Portanto, este novo poder temporal xiita (mas também o renovado poder espiritual) entrou em choque com os governos dos Países sunitas. Entre as duas vertentes religiosas, a principal diferença sempre foi o conceito de "guia do Islão", algo que envolve não apenas o poder espiritual mas também aquele temporal: este é o motivo principal da fractura. Vamos observa-lo com mais atenção.
As diferenças
Como vimos, xiitas e sunitas diferem principalmente por causa de questões religiosa e política. Todos os muçulmanos concordam que Allah é o único Deus, que Muhammad é o seu profeta, que é preciso observar os pilares do Islão e compartilhar o Alcorão. No entanto, cada uma das duas vertentes islâmicas acha encarnar o legítimo legado do Islão e se hoje a esmagadora maioria dos muçulmanos é sunita, os xiitas, assumiram ao longo do tempo as suas próprias características doutrinárias que os distinguiram do resto dos muçulmanos.
Para os sunitas, falta a ideia de uma mediação entre o homem e Deus, e não há um verdadeiro clero: o título de Imam, que normalmente é referido à pessoa que conduz a oração comunitária, entre os sunitas não envolve prerrogativas propriamente religiosas.
Para os xiitas, no entanto, o Imam é ao mesmo tempo o chefe temporal e o guia espiritual da comunidade, um autêntico intérprete do significado oculto da revelação. Aos Imams são atribuídos os privilégios de infalibilidade e de intercessão com Deus em favor dos crentes, os seus ensinamentos são seguidos tal como acontece com as palavras do Profeta e os lugares onde estão enterrados tornam-se um destino para peregrinações, centros de ensino e vida espiritual.
Se desejarmos fazer uma (forçada) comparação com o cristianismo, o movimento xiita acaba por ser mais parecido com a religião católica, com a figura do Papa qual representante de Deus em Terra e por Ele inspirado, enquanto a fação sunita é mais "protestante".
Existem outras diferenças, embora secundárias.
- Os xiitas oram três vezes por dia com as mãos paralelas ao corpo, diante das coxas. A oração termina repetindo três vezes o takbir (uma formula para glorificar): Allahu akbar. ("Deus é grande").
- Celebram a Ashura, em que é lembrado o martírio de Hussain em Kerbela, em cuja batalha foi morto com toda a sua família o sobrinho do Profeta Muhammad, al-Husayn ibn'Alī, o segundo filho de 'Alī ibn Abī Ṭālib e da filha de Maomé.
- O xiismo tem um clero organizado e preparado em universidades específicas das ciências islâmicas.
- Os pilares do culto são 10.
- Os sunitas rezam cinco vezes por dia com as mãos unidas na altura do diafragma e repetem a fórmula "Testemunho de que não há divindade, se não Deus, e Maomé é o seu Profeta", uma frase que também aparece nas bandeiras do Isis. Eles baseiam a prática religiosa na sunna ou nos atos e ensinamentos do Profeta.
- Têm duas celebrações: o Eid al-Fitr, que marca o fim do mês de jejum, e o Eid al-Adha, festa do sacrifício no final da peregrinação a Meca.
- Os pilares do culto são 5.
Aos olhos dum sunita, a Sunna representa o ponto central da religião islâmica: são as palavras e os actos do Profeta, portanto inspirados directamente por Allah. A Sunna é muito importante também aos olhos dum xiita, mas este vê também nos seus líderes religiosos (os āyatollāh) um reflexo de Allah na Terra. Isso leva os sunitas a acusar os xiitas de heresia, enquanto os xiitas sublinham como o dogmatismo sunita deu origem a seitas extremistas, como os puritanos wahabistas.
Não acaso, o uso do véu para as mulheres muçulmanas é obrigatório no mundo sunita e no mundo xiita, mas as versões mais rígidas, como o niqab e a burka, são comuns nos Países sunitas, tal como acontece no Afeganistão.
Onde ficam
Distribuição de xiitas, sunitas e ibaditas no mundo |
Os sunitas predominam em grande parte no norte da África e na África subsaariana, no Egito e na Turquia, na Ásia Central e no Extremo Oriente.
Distribuição de xiitas e sunitas no Médio Oriente e Golfo Pérsico |
Após o fim dos Omíadas, uma segunda ocasião de reaproximação ocorreu durante a dinastia abássida (750-1258). Em 818, de facto, o califa al-Ma'mûn nomeou o xiita Al-al-Ridâ como seu sucessor. No entanto, pouco tempo depois, o imam morreu em circunstâncias misteriosas e, a partir daquele momento, a família de 'Ali teve que renunciar a qualquer reivindicação política directa.
Também no século XX houve várias tentativas de aproximação entre sunitas e xiitas, em particular em 2004 com a Mensagem de Amã um apelo à tolerância e à unidade no mundo islâmico. Essas tentativas baseiam-se no facto de que as duas comunidades são semelhantes em termos de comportamento prático. No que diz respeito ao direito religioso, os xiitas poderiam ser considerados como mais uma "escola jurídica", ao lado das quatro já admitidas entre os sunitas.
Todavia, a divisão permanece. E esta diferença introduz uma pergunta: do ponto de vista ocidental é mais "perigosa" a corrente xiita ou aquela sunita?
O perigo wahabista
Por quanto dito até aqui, a corrente xiita (com a figura do āyatollāh-Papa e um clero poderoso) pode parecer mais "conservadora" enquanto a sunita mais "democrática" e, em definitiva, mais perto das ideias ocidentais. Podemos juntar uma constatação: entre os xiitas é forte o culto dos mártires. E um terrorista que se faz explodir gritando Allahu akbar é um mártir. Portanto deve ser um xiita.
Na verdade acontece exactamente o contrário.
É preciso ter em conta que a corrente sunita está baseada exclusivamente nas palavras e nos actos do Profeta, um homem que viveu no século VII d.C., num País fortemente pobre e atrasado (a Arábia de 600 d.C.) e que durante boa parte da sua vida teve que combater para fazer que a sua religião não fosse apagada. A corrente xiita, pelo contrário, tem nas figuras dos āyatollāh uma espécie de "mediador": um āyatollāh é um homem vivo, não apenas um antigo escrito, portanto consegue adaptar as grandes decisões (suas e dos fieis) aos tempos nos quais vive.
Acerca do referido culto das mártires, é importante notar como nenhum clássico erudito muçulmano permitiu o assassinato de civis. Alguns estudiosos muçulmanos sunitas sustentam que a morte de civis inocentes pode ser inevitável se estes estiverem misturados com o inimigo mas, de outra forma, atacar civis intencionalmente é totalmente proibido. E esta ideia não é recente: já o estudioso do século VIII, Malik e al-Awza'i, declarava que matar mulheres e crianças nunca é permissível. Sobre a questão de se um muçulmano pode matar-se intencionalmente para atingir o inimigo também, a opinião geral dos estudiosos muçulmanos é negativa: "sacrificar-se" desta forma é proibido devido à inadmissibilidade do suicídio no Islão. Tal como os soldados ocidentais recebem uma medalha, um muçulmano pode envolver-se heroicamente numa ação que resultará na sua morte: mas isso não é o mesmo que fazer-se explodir no acto de matar o inimigo, o suicídio em si nunca é permitido. Tal como acontece no Ocidente, os mártires xiitas não são aqueles que escolheram suicidar-se mas quem foi morto ou quem sofreu as consequências do seu ser muçulmano (tortura, prisão, espancamento, etc.).
Isso vale no caso dos xiitas, mas também entre a grande maioria dos sunitas. Mas não entre todos os sunitas: entre estes há algumas facções extremistas (amplamente minoritárias) que encaram o suicídio com simpatia. Não é um acaso que o movimento jihadista tenha surgido entre os sunitas e não entre os xiitas: uma das características do jihadismo é a forte hostilidade em relação aos xiitas, rotulados como heréticos e julgados dignos de morte. Um jihadista não pode entender a figura do Imam (nos moldes xiitas) e, sobretudo, aquela do āyatollāh.
A visão mais extrema do pensamento sunita surgiu no interior dos Wahabistas, o movimento ortodoxo, ultraconservador, extremista, austero, fundamentalista e puritano. Os Wahabistas constituem uma pequena minoria no seio do Islão: grande parte deles fica no Qatar, nos Emirados Árabes Unidos e sobretudo na Arábia Saudita. No total, segundo as estimativas, os números falam de 5 milhões de wahabistas na zona do Golfo Pérsico (em comparação com 28 milhões de xiitas e 89 milhões de sunitas). No entanto, os wahabistas conseguiram posições de poder nos Países mais ricos, as chamadas Monarquias do Golfo: a casa reinante de Saud, na Arábia, é wahabista. As receitas do petróleo financiaram abundantemente a doutrina wahabista e são conhecidas as ligações do movimento com os terroristas islâmicos. Os grupos terroristas de Al-Shabaab (África do leste), Ansar Dine (África ocidental), Boko Haram (África central), Al-Qaeda e Al-Nusra são todos wahabistas, tal como é o Isis.
E os wahabistas são perigosos também para os outros árabes, não apenas xiitas. Na visão dos wahabistas, qualquer muçulmano que não seja um wahabista é um apóstata (a apostasia indica um afastamento definitivo e deliberado duma anterior fé): na Arábia Saudita, um apóstata tem que ser punido com a pena de morte enquanto no Irão, País xiita, o código penal não prevê penas e na Síria a pena máxima é de dois anos de prisão.
As outras vertentes
Para acabar, lembramos de que o Islão é muito menos monolítico daquilo que seria possível pensar (e aqui podemos encontrar outra analogia com o cristianismo).
Os muçulmanos são diferenciados em:
- sunitas e xiitas, dos quais já falámos.
- um grupo maioritário (duodecimano, imamita ou ithna'ashariyya)
- um grupo minoritário (ismaelitas ou saba'iyya), com presença na Índia
- um pequeno grupo (zayditas) concentrado no Yemen.
Além de xiitas e sunitas existem depois:
- os Ibaditas, maioria no Omã e também presente em alguns lugares do Norte da África e da África Oriental.
- os alawitas, pertencentes a uma minoria de inspiração xiita mas com fortes características gnósticas. Presente na Síria.
- os drusos, de inspiração ismaelita mas abundantemente diversificados, presentes no Líbano, na região montanhosa de Shuf, bem como na Síria (Golan) e em israel.
- os bahá'ís, forçados pela Revolução Islâmica do Irão a refugiar-se na Índia e no Ocidente, especialmente no Canadá e nos Estados Unidos da América. A sua reivindicação é de constituir uma religião inteiramente nova e não, portanto, uma simples heterodoxia do Islão.
- os alevitas de inspiração xiita mas com fortes aspectos próximos ao gnosticismo. Estão presentes principalmente na Turquia (15% da população).
- o yarsanismo, presente no Iraque e no Irão, de inspiração xiita, mas marcadamente heterodoxo.
- os aḥmadiyya, presentes no norte da Índia e no Paquistão.
- os sikhs, presentes na Índia, não são considerados uma heteroxia do Islão mas sim uma religião completamente separada que reconhece válidos alguns pontos das palavras do Profeta Muhammad.
- os yazidis, em origem uma religião pré-islâmica que, todavia, reconhece válidos alguns elementos do islamismo.
- a Nation of Islam, presente nos EUA, sunita de inspiração, mas distintamente pouco ortodoxa, cé hoje considerada como uma religião separada do Islão.
Ipse dixit.