Depois foi adquirido pela Google e agora podemos saber de como Miley Cyrus decidiu participar num festival de pornografia ou qual o melhor hambúrguer dos Estados Unidos segundo um painel de chefes.
Prioridades.
Todavia, de forma esporádica, alguns artigos normais ainda aparecem. São raras pérolas, provavelmente fruto da distracção de redacção. É o caso de The Golden Age of Black Ops, trabalho de Nick Turse.
O assunto é extremamente interessante: as Black Ops (Black Operations) são operações clandestinas que podem ficar no limite da legalidade segundo as leis internacionais; mas, na maior parte dos casos, são operações explicitamente ilegais, perpetradas por um governo com o auxílio de corpos especiais ou de empresas privadas.
No caso dos Estados Unidos, o termo Black Ops logo faz pensar na CIA por óbvias razões.
No ano de 2007, a Central Intelligence Agency desclassificou uma série de documentos que faziam luz sobre as Black Ops da organização entre os anos '50 e '70: apenas a ponta do icebergue, mas suficiente para ter uma ideia.
Segundo os documentos, cidadãos norte-americanos tinham sido submetidos a "involuntários" experimentos de drogas por parte da CIA para induzir a "modificação de comportamento"; a agência tinha também construído dossier ilegais acerca de 9.900 americanos envolvidos em actividades pacifistas; e planeou o assassinato de alguns líderes estrangeiros (Fidel Castro de Cuba - operação gerida pessoalmente por Robert Kennedy -, Patrice Lumumba da República Democrática do Congo, Rafael Trujillo da República Dominicana).
Mas isso foi o passado. Qual a situação hoje?
150 em 204
Durante o ano fiscal que terminou em 30 de Setembro de 2014, as SOF (U.S. Special Operations Forces, Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos) realizaram acções em 133 Países (cerca 70% de todas as Nações do mundo).
Isso no final dum período de três anos em que as "forças de elite" americanas têm sido activas em mais de 150 Países, realizando tarefas desde os simples exercícios até ataques nocturnos. E o ano em curso pode trazer novos recordes.
Como afirma o General Joseph L. Votel no simpósio GEOINT (a reunião anual entre chefias de forças de segurança militares):
Queremos estar em todas as partes.E não estão longe disso: 150 Países num total de 204...
Na verdade, para além das poucas informações divulgadas pelos militares e dalgumas "fugas" a partir da Casa Branca ou de ex-membros das forças especiais, pouco é sabido. Continua o General Votel:
O comando atingiu o auge absoluto É realmente uma época de ouro para as operações especiais.E não é tudo. Como resultado do trabalho começado pelo Almirante W.H. McRaven (o antecessor de Votel no comando SOCOM, United States Special Operations Command, o comando que reúne as forças especiais de Exército, Marinha, Aviação e Marines), o projecto é a criação duma rede global de SOF, composta de aliados e parceiros em 14 das principais embaixadas americanas, onde irão operar oficiais de ligação (os SOLO) para as operações especiais. Este oficiais terão a tarefa de orientar e coordenar as forças especiais do País aliado.
A rede global SOF já começou a ser implementada: actualmente encontra-se em funcionamento em Austrália, Brasil, Canadá, Colômbia, El Salvador, França, israel, Itália, Jordânia, Quénia, Polónia, Peru, Turquia e Reino Unido.
Falta alguém? Tranquilos, até 2019 o network SOF irá incluir outros 40 Países. Isso enquanto o SOCOM estabeleceu laços bem apertados com a Agência Central de Inteligência (a CIA), o Federal Bureau of Investigation (o FBI) e a Agência de Segurança Nacional (a NSA: exacto, aquela das escutas ilegais).
Mas tudo isso representa apenas a fachada: o alcance global do SOCOM estende-se bem além deste ponto, através de elementos menores e mais ágeis que operam nas sombras, a partir de bases que são colocadas em todo o mundo, tanto no interior do EUA quanto no mais remoto lugar do Sudeste Asiático ou num campo de refugiados em África.
E a propósito de África: é este o continente sede de numerosas missões secretas das forças especiais americanas. Ainda Votel:
Esta unidade em particular tem feito algumas coisas impressionantes. For na Europa ou na África, estão a contribuir significativamente para superar uma série de contingências.Líbia, Níger, Marrocos, Somália, Chade, Mali, Mauritânia são apenas alguns dos Países que participaram ou acolheram as forças especiais. Em Fevereiro do ano passado, por exemplo, as tropa de elite têm operado no Níger para um exercício militar de três semanas, como parte da operação anti-terrorismo Flintlock 2014, com a participação também de Canadá, França, Holanda, Nigéria, Senegal, Reino Unido e Burkina Faso.
Exercícios?
E seria um erro imaginar estes "exercícios" como algo secundário.
Alguns meses depois de ter recebido um treino anti-terrorista sob o auspicio do SOCOM (em 2012), um oficial do Burkina Faso tomou o poder por meio de um golpe (em 2013), enquanto as forças especiais que estavam presentes permaneceram completamente indiferentes.
O SOCOM recusa comentar a natureza das suas missões ou as vantagens que pretende alcançar ao intervir em tantos Países. Na verdade, o Comando recusa-se a nomear até um único País onde, ao longo dos últimos três anos, foram implantadas as "forças especiais" dos Estados Unidos.
No entanto, a filosofia é simples. Segundo os comandantes das Black Ops americanas o mundo é tanto mais instável quanto mais for interligado. Como afirmava W.H.McRaven:
Eu garanto que o que acontece na América Latina afecta o que acontece na África Ocidental, que por sua vez afecta o que acontece na Europa e segue no sudoeste da Ásia.A solução para combater a instabilidade? Muito simples: mais missões em mais Países. Doutro lado, qual resposta podemos pretender dum militar?
Ainda o simpático Votel no começo deste ano:
A nossa Nação tem expectativas muito altas sobre a SOF, espera de nós a realização de missões muito difíceis em condições muito difíceis.Isso enquanto a quase totalidade dos mesmos americanos ignora a verdadeira natureza e até a finalidade da maioria dessas "missões difíceis". Apesar disso, através de uma inteligente combinação de marketing e sigilo, de fugas controladas de informações, relações públicas e Hollywood, as forças especiais têm conquistado um lugar no imaginário do público americano.
Apesar dos resultados.
Os resultados
General J. L. Votel |
Em África têm sido armadas e equipadas algumas milícias, foi "formado" um líder golpista; no Iraque, as forças de elite estão envolvidas em casos de tortura, destruição de casas de civis, morte ou o ferimento de inocentes; no Afeganistão, Yemen, Paquistão e Somália aconteceu o mesmo.
E tudo isso é apenas uma pequena parte dos abusos perpetrados por parte das "forças especiais".
Depois de mais de uma década de guerras secretas, de vigilância em massa, de um número desconhecido de incursões nocturnas, de detenções ilegais, de assassinatos, para não mencionar os biliões e biliões de Dólares que foram gastos, os resultados falam por si.
Enquanto o tamanho do SOCOM mais do que duplicou desde o ano de 2001, no mesmo período surgiram 36 novos grupos terroristas com as suas ramificações e os seus aliados (incluindo os franchising de Al-Qaeda).
Estes grupos terroristas ainda operam no Afeganistão, no Paquistão, bem como no Mali, Tunísia, Marrocos, Nigéria, Somália, Líbano, Yemen, Síria. E nem falamos da Líbia, onde agora chegou o ISIS.
Uma ramificação destes grupos terroristas, surgida como resultado da invasão do Iraque por parte dos EUA, fundou o Estado islâmico (o ISIS), que agora controla uma grande parte do Iraque e da Síria. Um "proto-califado" no coração do Oriente Médio que, em 2001, era apenas um sonho para qualquer jihadistas. Hoje é realidade.
Estes são os resultados.
Explica Votel:
Precisamos de continuar a sincronizar a implantação da SOF no mundo, todos nós precisamos de preparar, coordenar e sincronizar-nos através do Comando.Mas tenta sincronizar o teu cérebro, que já não seria mal.
Os resultados de quase 15 anos de Black Ops são um fracasso, e isso se a intenção for ser clemente, pois muito mais poderia ser dito. O máximo que conseguiram foi a captura duma pessoa que tinha morrido há nove anos (Bin Laden), isso enquanto a "ameaça islâmica" espalhava-se no Oriente Médio todo com o suporte das monarquias do Golfo e dos "aliados" de Tel Avive.
Para mostrar um sucesso na guerra contra a pirataria da Somália, foi necessário enviar um navio da CIA e encenar uma peça que depois foi transformada num filme (Capitão Phillips). E na Nigéria? Não é este um dos Países que costuma aparecer nos exercícios anti-terrorismo do SOCOM? Guerra do delta no Sul e Boko Haram no Norte-Leste, estes são os resultados.
A não ser que estes sejam exactamente os resultados esperados, segundo o clássico divide et impera...
Ipse dixit.
Fontes: The Huffington Post, The Guardian, The Washington Post,