Uma cópia da Monnalisa, uma fotografia de Einstein, uma pedra das Pirâmides? Não: um automóvel, o que melhor consegue representar a nossa sociedade. Pena não haver mais espaço a bordo, porque um smartphone também teria ficado bem.
Mas voltemos ao princípio: um foguete privado. Estamos a entender isso? Não é a Nasa, não é a europeia Esa, nem são os chineses ou os indianos: é Elon Musk, empreendedor sul-africano-canadense-americano (nem um hebraico na família?!?), fundador e CEO da SpaceX (empresas espacial), co-fundador e CEO da Tesla Motors (automóveis eléctricos); vice-presidente da OpenAI (pesquisas sobre inteligência artificial); fundador e CEO da Neuralink (neurotecnologias); e co-fundador e presidente da SolarCity (energia renovável).
A nova Gilded Age
Enquanto o Falcon Heavy se levantava, Casey Dreier da think tank non-profit Planetary Society, declarava o seguinte:
A novidade deste lançamento é que as ambições das Corporações para ultrapassar o poder dos governos hoje mostram o seu verdadeiro rosto. [...] Estamos numa nova Gilded Age, com multi bilionários que querem redesenhar o futuro humano.
O sentido da frase de Dreier é simples de entender: estamos no começo (simbólico) da corrida das Corporações para ultrapassar o Estado.
Os Estados têm o poder único no mundo de fazer as leis de maneira democrática e de regular a vida dos seres humanos, tudo no interesse público. Podemos discutir acerca dos efeitos reais desta teoria, porque é óbvio que as coisas não funciona tão lindamente. Mas o que importante reter é que aos menos hoje há a ideia de Estados democrático, algo que para nós é "normal" mas que na verdade existe há cerca de setenta anos, e nem em todos os Países. Antes disso, a ideia dum Estado que democraticamente escolhesse as suas leis existia apenas nos livros que tratavam da história da Antiga Grécia.
O Estado: leis, regulamentação e impostos
Elon Musk com um Tesla Roadster |
quem diga "este medicamento é bom, podes vende-lo" ou "este medicamento é prejudicial, estás proibido de comercializa-lo". Funciona mal? Não há dúvida, funciona mal: mas no entanto existe, algo faz e é melhor do que nada. O mesmo acontece com alimentos, automóveis, casas, tecnologia, cultura, comércio, energia, finanças, empregos... com tudo. O Estado democrático moderno é um sistema de leis que representa uma barreira, no interesse público, entre o lucro do poder privado e nós cidadãos.
É esta a razão pela qual o sector privado (o grande Capital) tenta corrompe-lo e limitar a sua actuação. É desde o aparecimento das democracias que as empresas tentam condicionar as escolhas dos Estados, é para isso que foram introduzidas criadas as lobbies, o financiamento aos partidos, a corrupção e até mesmo uma inteira ideologia económica chamada Neoliberalismo cujo lema é "menos Estado!". Às vezes o Capital conseguiu impor-se, outras vezes não: mas até hoje os Estados existem e, mais ou menos, continuam em funções.
Continuam a existir os impostos de Estado: poucos sabem que uma das razões fundamentais para a invenção dos impostos foi precisamente impedir que uma oligarquia privada assumisse demasiado poder económico, ou seja dinheiro, para tornar-se mais poderoso do que o próprio Estado (antes dos Estados democráticos existiam os impostos nas monarquias, mas uma das funções era sempre esta: impedir que alguém se tornasse uma ameaça económica contra o Rei). Os impostos do Estado põem um travão à riqueza, mínimo mas sempre travão é: e o grande Capital sabe isso.
A guerra entre o poder privado e os Estados está longe de acabar, mas o lançamento do Falcon Heavy marca uma nova fase: a fase em que as Corporações (o novo rosto do grande Capital) tenta ultrapassar duma vez por todas o Estado. E aqui, pela primeira, o poder privado vê no horizonte objectivo tangível da destruição dos Estados. Esses alta tecnologia, essa inteligência artificial, esses algoritmos são muito complexos para serem regulados pelos Estados, e por um simples motivo: os Estados e os seus tecnocratas não entendem nada sobre isso. Mas, ao mesmo tempo, os Estados e os seus tecnocratas já não podem livrar-se disso. E nem têm os meios financeiros para contrariar as Corporações.
Os boosters da Nasa
Consideramos a exploração espacial: desde 1957 tudo tinha ficado nas mãos da Nasa, ente público americano. "Espaço" no Ocidente rimava com "Nasa" e com mais ninguém. Hoje Elon Musk da Tesla com SpaceX, Jeff Bezos da Amazon com Blue Origin e Richard Branson da Virgin com a Virgin Galactic suplantam completamente todo o domínio da exploração espacial da Nasa. E não se limitam a lançar foguetes: fazem muito mais.
Um exemplo. Lembram o Space Shuttle, o vaivém espacial da Nasa? Lembram os dois grandes foguetes laterais (os boosters) que forneciam impulso e carburante na fase do lançamento? Uma vez que o Space Shuttle alcançava os 46 quilómetros de altitude, os boosters separavam-se e precipitavam no mar, donde eram recuperados. No entanto, o impacto com a água era violento e, em vista da reutilização, tinham que ser fortemente reparados, quase reconstruidos, com enormes despesas.
Hoje Jeff Bezos da Amazon apresenta os boosters que, depois de cumprir o seu dever, voltam à atmosfera e aterram intactos, prontos para serem reutilizados. Um problema que a Nasa nunca tinha conseguido resolver, apesar do seu exercito de cientistas, foi resolvido em pouco tempo pelos privados. Como? Com a força do dinheiro: os donos destas multinacionais não precisam de exércitos, simplesmente compram o que de melhor estiver disponível no mercado, sempre. É assim no caso dos foguetes mas o mesmo acontece com medicina, engenharia, finanças, comunicações, transportes, tudo: o Estado não pode competir e começa a ser visto como obsoleto.
John Logsdon, professor da Universidade George Washington e fundador do Space Policy Institute:
De facto, tanto o Congresso, tanto Obama quanto o Trump têm diluído bastante as leis que regulam a experimentação espacial. A verdade é que hoje, se o poder privado tiver dinheiro suficiente para enviar um humano para a Lua, faz isso ignorando as regras públicas, muito rígidas, em vigor na Nasa.
Ipse dixit.
Fonte: Paolo Barnard