Silvio Gesell foi um dos grandes génios da história. De toda a história. E provavelmente poderia ter sido o maior benfeitor da humanidade. Mas não é, porque ninguém conhece Silvio Gesell. E isso não é um acaso. Vamos ver quem ele era e começamos com a vida, que mais parece uma novela.
A (desgraçada) vida
Gesell nasceu em 17 de Março de 1862 na aldeia de Sankt Vith, na Valónia belga, sétimo dos nove filhos de um modesto funcionário público. Começou a estudar mas, antes de poder frequentar a universidade, uma grave doença do pai obrigou-o a abandonar os estudos para começar a ganhar algum dinheiro necessário à família. Quando os irmãos mais velhos conseguiram abrir um negócio de produtos odontológicos em Berlim, decidiu juntar-se a eles e logo foi enviado como representante em Málaga, Espanha. No entanto, teve que voltar para Berlim e prestar o serviço militar obrigatório.
Em 1887, aos vinte e cinco anos, Silvio Gesell decidiu iniciar o seu próprio negócio, abrindo uma filial da empresa dos irmãos em Buenos Aires, emigrando assim para a Argentina. Apesar do grande sucesso inicial da actividade, Gesell não resistiu aos anos da Grande Depressão Argentina, que chegaram a paralisar completamente a economia do País. Foi mesmo este fenómeno que estimulou Gesell a submeter os problemas estruturais do sistema monetário a um exame detalhado e, em 1891, publicou o seu primeiro trabalho intitulado "A reforma do sistema monetário como acesso ao Estado social", no qual já exibia o embrião da sua mais relevante descoberta, algo que nunca tinha sido feito no campo monetário.
Gesell conseguiu vender a sua empresa argentina em 1892 e voltou para a Europa. Chegou à Alemanha, mas não pôde permanecer naquele País porque considerado um perigoso subversivo por causa do livro. Então emigrou para a Suíça, onde comprou uma pequena quinta, vivendo como agricultor e aprofundando as pesquisa sobre o dinheiro.
Em 1900, publicou a revista Geld-und Bodenreform ("Dinheiro e Reforma Agrária") para divulgar as suas ideias inovadoras, mas três anos depois teve que interromper a publicação devido a problemas económicos. De 1907 a 1911 Gesell esteve na Argentina para depois voltar para perto de Berlim, onde abriu uma comunidade agrícola com alguns amigos. Aqui começou a publicar uma nova revista, Der Physiokrat ("O Fisiocrate"), que saiu regularmente até ser proibida pela censura no início de 1916. Este facto forçou Gesell a refugiar-se novamente na Suíça.
Foi chamado para a Alemanha pelo efémero governo da República dos Conselhos da Baviera e nomeado Ministro das Finanças. No entanto, o seu mandato durou apenas sete dias, durante os quais Gesell preparou uma lei para criar livres corporações. O jovem governo da recém-formada República da Baviera foi deposto por um golpe sangrento e Gesell foi preso. Embora dentro de poucos meses o tribunal tivesse averiguado a sua inocência e também o tivesse absolvido de todas as acusações, uma vez livre não pôde voltar para a casa na Suíça porque, por causa da participação no governo revolucionário da Baviera, os suíços negaram-lhe o regresso.
Gessel voltou assim para a comunidade agrícola ao redor de Berlim, onde continuou o trabalho de disseminar novas ideias com os amigos. A permanência de Gesell na comunidade foi interrompida apenas por uma última viagem à Argentina, de 1924 a 1927. Morreu em 11 de Março de 1930, abatido por uma pneumonia.
A ideia genial
Até aqui a vida, bastante desgraçada, diga-se. Mas e que tal o trabalho? Qual a ideia "revolucionária" de Gesell?
No início do século XVI, Nicolau Copérnico descobriu que não era o Sol a girar em torno da Terra, mas sim que todos os planetas orbitavam ao redor do Sol. Esta foi uma descoberta de imenso alcance que mudou radicalmente a visão do mundo de toda a humanidade. A substituição da concepção geocêntrica pela heliocêntrica abriu o caminho para o Iluminismo e o progresso científico, dando origem à era moderna. Análoga é a importância da descoberta histórica de Silvio Gesell, que por essa razão foi também apelidado de "Copérnico da Economia". De facto, Gesell descobriu que a função do dinheiro é servir o ser humano e não, ao contrário, o homem servir o dinheiro.
Uma banalidade? Não: uma genialidade. Tão genial que ainda hoje não conseguimos assumi-la. A ideia em si é tão revolucionaria que enfraquece toda a ordem financeira capitalista.
Segundo Gesell, a análise profunda das causas e dos males do mundo mostram inevitavelmente que todas as disfunções têm uma raiz comum e que isso reside num erro estrutural do sistema monetário. Pobreza, guerra, concorrência, coerção, injustiça, poluição, manipulação e muito mais têm origem nesta anomalia inerente à maneira com a qual é concebido o dinheiro.
Durante a sua vida, Gesell publicou inúmeros livros e artigos para ilustrar e explicar de maneira abrangente a sua descoberta. Como explica em detalhes na sua obra-prima intitulada "A ordem económica natural por meio de terra e dinheiro livres", todos os nossos problemas são originalmente causados por uma característica intrínseca do dinheiro que viola completamente as leis naturais. A falta de naturalidade do dinheiro consiste no facto de que, ao contrário de todas as coisas criadas pela natureza, não é consumido pelo passar do tempo. Em síntese: não apodrece.
Também o economista John Maynard Keynes (1883-1946) observou no livro "A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda":
A maioria dos activos, excepto o dinheiro, estão sujeitos a diminuição ou simplesmente a causar custos devido da passagem do tempo.
O dinheiro, por outro lado, tem a hegemonia no mercado porque quem o possui não tem a mesma urgência de troca-lo com quem detém outro tipo de mercadoria. Mesmo Henry Ford reconheceu que:
O facto de que o banqueiro pode fechar na cara do credor a caixa, se este não estiver disposta a pagar os juros, e nada sabe sobre as preocupações que afligem o detentor das mercadorias, é unicamente devido à supremacia que esse dinheiro possui por si mesmo e no que diz respeito às mercadorias: e este é o ponto doente.
Os juros, sempre eles...
Gesell viu o defeito estrutural da moeda no facto desta poder ser acumulada, o que permite que aqueles que tiverem excesso de dinheiro possam guarda-lo e libertá-lo apenas se alguém estiver disposto a pagar-lhes uma recompensa, na forma de juros.
Um comerciante não pode acumular maçãs ao longo dum tempo indefinido, terá que vende-las antes destas apodrecerem. Mas o banqueiro não tem esta urgência: a sua mercadoria, o dinheiro, pode ser acumulada sem limites de tempo.
Se o comerciante tiver um excesso de maçãs, estas começarão a apodrecer e serão vendidas na forma mais rápida possível, até segundo as condições do comprador e não do vendedor (porque ganhar pouco é sempre melhor do que ganhar nada). O banqueiro, pelo contrário, pode acumular sem problemas e vender a mercadoria (lembramos: o dinheiro) só segundo as suas condições, que obviamente comportam um sensível ganho. Que tipo de ganho pode dar o dinheiro? Simples: os juros.
Ao longo de séculos os juros foram definidos com o termo inequívoco de "usura" e não há outra forma de definir os rendimentos do capital obtidos sem um correspondente desempenho. A Igreja Católica fez oposição ao juros no início, com bastante firmeza até, tendo como base os ensinamentos de Aristóteles e dos Padres da Igreja: em vários conselhos tinha estabelecido que exigir juros sobre o dinheiro emprestado era um pecado especialmente grave, para o qual era decretada até a excomunhão. Com o abandono deste preceito fundamental, a Igreja não apenas iniciou o seu declínio inexorável mas, ao mesmo tempo, permitiu que o polvo financeiro envolvesse o mundo com os seus tentáculos.
A condenação da usura pelo cristianismo tinha uma base sólida nas leis universais da natureza e foi ditada apenas pelo bom senso dos nossos ancestrais. De facto, o dinheiro não se reproduz, mas é sempre gerado do trabalho. Então, como Tolstoi disse:
Se alguém recebe uma renda sem ter trabalhado, outra pessoa trabalhou sem receber renda.
Mas agora uma pergunta deveras importante: qual a razão da constante necessidade dum crescimento económico? Por qual motivo a nossa sociedade tem sempre que crescer? Como é que "crescimento" é uma palavra fundamental nas discussões económicas? A economia nacional deve crescer, o produto interno bruto deve crescer, o volume dos negócios deve crescer... Porquê?
Gesell fornece a resposta, que será possível encontrar na segunda e última parte deste artigo; se calhar uma segunda parte pouco mais "técnica" mas fundamental para entender a genialidade do Copérnico da Economia.
Ipse dixit.
Fontes: na segunda e última parte.