- Boa tarde senhor Sahli.
- Boa tarde senhor comissário.
- Ora bem, senhor Sahli, obrigado por ter vindo a este encontro.
- Ora essa.
- Como sabe, o senhor encontra-se sob vigilância desde pelo menos o ano de 2006.
- Sim, eu sei.
- E sabe também que chegámos a vigiá-lo 24 horas por dia.
- Sim, sei também.
- Durante este período, o senhor desapareceu ao longo de três meses. Simplesmente, os nossos serviços de segurança não conseguiam estabelecer o seu paradeiro. Posso perguntar-lhe para onde foi?
- Com certeza, senhor comissário.
- E para onde foi?
- Fui visitar a minha tia Adelina que mora na Gronelândia.
- Ahhh, é por isso que não conseguíamos encontra-lo, óbvio... muito bem. E aquele seu amigo de Besançon, aquele que faz parte do movimento jihadista Tabligh, o que me pode dizer acerca dele?
- Tabligh? O meu amigo de Besançon pertence ao Tabligh?
- Eh sim, lamento informa-la...
- Não posso acreditar nisso, uma pessoa tão simpática...onde irá acabar este mundo...
- Pois, concordo, cada vez pior, não é? Mas olhe, tenho que dar-lhe uma outra má notícia.
- Outra?
- Sim, infelizmente... sabe aquele pregador que costumava frequentar, o Grande Alí, que vivia na região de Doubs?
- Sim?
- Foi expulso. Afinal recrutava milicianos para a Jihad islâmica.
- Não!!!
- Eh sim, lamento senhor Sahli, mas é mesmo assim...
- Já não há religião, já não há valores, nada...
- Eu sei, eu sei... mas basta de notícias negativas, falamos de si, senhor Sahli. A vigilância prosseguiu até este ano e reparámos que o senhor recebe pessoas na sua habitação, correcto?
- Sim, é correcto.
- São seus amigos ou parentes?
- São amigos.
- E são salafistas, justo?
- Justo.
- Senhor Sahli, dito entre nós: sabemos que o salafismo é uma corrente islâmica radical, que reza o regresso às origens, portanto reestabelecer as condições do tempo do Profeta Maomé. Hoje dizer salafista é como dizer "fundamentalista islâmico", entende o que quero dizer?
- Sim, mais ou menos...
- A pergunta é: o senhor é um fundamentalista islâmico?
- Não, sou salafista radical, mas pacifista.
- Ah, muito bem, muito bem... e os seus amigos?
- Também, somos todos salafistas radicais pacifistas.
- Excelente. E, peço desculpa por causa desta pergunta indelicada, mas por qual razão os seus amigos aparecem sempre camuflados com fatos miméticos?
- Porque são tímidos.
- Ah, sim, certo, acho que faz sentido. E acerca das conversas... sabe, a vigilância prevê também a escuta das conversas...
- Entendo, não há problema.
- Agradeço a sua compreensão. As escutas revelam que com os seus amigos falaram muitas vezes da Jihad e do Mali. Pode explicar qual a razão?
- Com certeza. Da Jihad falámos muitas vezes, é uma vergonha, nós radicais salafistas pacifistas
detestamos a violência e achamos que a Jihad deveria ser firme mas feita com flores e não com armas.
- Ah, como a Revolução dos Cravos em Portugal...
- Exacto, mesma coisa. O Amor é a maior de todas as forças.
- Folgo em ouvir isso, senhor Sahli. E acerca do Mali?
- Isso foi por causa das férias. A ideia é passar uns 15 dias em Araouane, em pleno deserto, onde fica uma avó dum dos meus amigos...
- Um daqueles tímidos?
- Sim, exacto. É avó Gertrudes, pessoa idosa e muito simpática.
- Entendo mas... porque em pleno deserto?
- Para bronzear-se melhor e por causa da vitamina D.
- Ah, sim óbvio, que pergunta estúpida... Olhe, senhor Sahli, uma última pergunta, se não ficar importunado.
- Ora essa, pergunte, senhor comissário, pergunte...
- O senhor trabalha numa empresa que trata materiais explosivos. Acha que pode haver motivos de preocupação?
- Não, senhor comissário, de forma nenhuma.
- Certeza? Não é que poderia surgir uma qualquer ideia estranha, tipo organizar um atentado, decapitar o seu empregador...?
- Eu? Oh, não, de forma nenhuma. Eu amo o meu empregador, é uma excelente pessoa e, além disso, abomino qualquer forma de violência ou sofrimento. Pense que na semana passada trouxe para casa um pássaro que tinha caído do ninho.
- Não me diga? Ohhh, que fofinho.... muito bem, senhor Sahli. Isso tranquiliza-me. Entenda: o senhor Salhi tem um dossier de tipo "S" que significa "sinalizado e vigiado" porque tem um índice de perigosidade de 13 numa escala que vai no máximo até 16.
- Eu?
- Sim, você, senhor Sahli. Mas depois desta conversa acho que todas as dúvidas foram resolvidas. Então, se o senhor concordar, acho que podemos suspender a sua vigilância, o que acha?
- Se isso não importunar... sabe, não quero causar problemas... mas é verdade que o 13 traz azar...
- Eu sei, eu sei: é muito incómodo. Mas não se preocupe, porque é verdade que nos últimos tempos o governo aumentou o orçamento para a vigilância dos suspeitos, mas é evidente que não há razões para continuar a seguir o senhor. Em qualquer caso, se numa determinada altura assim desejar, poderá sempre pedir que a sua vigilância seja retomada. Para nós será sempre um prazer.
- Ah, bem, isso deixa-me muito mais descansado.
-Não vou retê-la mais tempo. Tenha um bom dia, senhor Sahli e obrigado pela sua colaboração.
-Foi um prazer, acredite. Um bom dia para si também.
Nota: Nada de false flag por aqui. Estes não são novos Charlie Hebdo. Estes são atentados reais.
O paradigma mudou. Antes era preciso dar o exemplo. Agora é só deixa-los fazer. Os resultados são menos espectaculares (na Europa), mas o medo espalha-se na mesma.
Ipse dixit.
Fontes: Il Corriere della Sera, Le Monde
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