Ministro dos Assuntos Internacionais, Sidhartha Marin, para em Roma e concede uma entrevista ao site L'Antidiplomatico.
A Nicaragua, republica democrática de tipo presidencial, encontra-se acutalmente governada pelo terceiro mandato de Daniel Ortega, político que ganhou as eleições de 2011 com mais de 70% dos votos. Ortega é membro da Frente Sandinista de Liberación Nacional, um partido socialista que nas eleições legislativas de 2016 obteve 62.9% das preferências.
Vamos ler a entrevista, lembrando que estas são as declarações dum representante oficial do governo, empenhado numa operação de promoção política e económica.
Ministro, o que está a acontecer na Nicarágua?
Como uma premissa, gostaria de dizer e responder: "não o que você está a ler em muitas órgãos de comunicação ocidentais". A minha viagem à Europa tem como objetivo negar o relato dos recentes acontecimentos na Nicarágua. Vou explicar a todos os meus interlocutores a situação em termos reais. E é suficiente partir da economia para fazer isso de uma maneira simples.
Em que sentido?No sentido de que basta referir-se aos dados não do governo nicaraguense, mas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Desde 2007, quando o Presidente Ortega assumiu a liderança do governo, até 2016, o PIB [Produto Interno Bruto, ndt] da Nicarágua dobrou. Dobrou e isto foi possível graças a um trabalho harmonioso e frutuoso com todos os parceiros sociais. Os investimentos também dobraram e as exportações mais que dobraram. Para o governo no centro tem que existir sempre a justiça social e a redistribuição. Assim, enquanto PIB, exportações e investimentos dobraram, a pobreza caiu pela metade: de 48% em 2006 para 24% em 2016. E a pobreza extrema caiu pela metade de 17% para 6%. Foi um esforço enorme, com resultados incríveis que desmentem tudo o que nestes dias é dito sobre a Nicarágua.
Sidhartha Marin
Então, por que a necessidade da reforma do sistema de seguridade social, no centro dos protestos?
O governo da Nicarágua tentou lidar com uma questão que para o nosso País é, infelizmente, imparável. Não se trata apenas da Nicarágua, mas a nível global a reforma da segurança social é uma prioridade para um grande número de Países. Para nós, é uma questão que não pode mais ser adiada, porque o sistema actual não é sustentável. E o governo Ortega tentou colocar todos os parceiros sociais, no princípio, de acordo com a mediação do Instituto de Seguridade Social. Na impossibilidade, prosseguiu com uma proposta que protegeria os trabalhadores tanto quanto possível. Alguns parceiros sociais protestaram. E é legítimo, em qualquer democracia, é saudável que isso aconteça. Tudo começou com o Supremo Conselho das empresas privadas. Mas o problema é que alguns usaram essa discórdia para criar desestabilização que não existia, violência que não existia no País. Por exemplo, alguns que marcharam e protestaram com os alunos não eram estudantes e participavam com armas de fogo. Para criar uma imagem do País que não existia. Como pode um País estar em conflito e duplicar PIB, investimentos e exportações? Hoje o diálogo é bem sucedido e a violência parou.
Infelizmente, perdas de vidas humanas foram registradas durante os dias de violência causada pelos manifestantes. Quais medidas estão a ser tomadas pelas autoridades nicaraguenses para punir os culpados?
O Governo da Nicarágua promoveu imediatamente o "Grande Diálogo Nacional" e a Conferência Episcopal, para acompanhá-lo, pediu a retirada da reforma como primeira condição. O Presidente Ortega aceitou e hoje, graças também à importante e decisiva mediação do Papa Francisco, a conferência episcopal acompanhará o diálogo. Como primeiro efeito, a violência foi interrompida.
A Assembleia Legislativa também pronunciou-se a favor do diálogo com a criação de uma Comissão de Verdade, Justiça e Paz para esclarecer estes tristes dias na história do País. Um Comitê de Vítimas também foi formado. Além disso, a polícia liberou todos os manifestantes presos durante os protestos, além de todos aqueles que claramente, como certificado pela polícia, cometeram graves crimes contra a propriedade pública, privada ou mesmo humana. O Ministério do Interior, finalmente, convidou todos os cidadãos a fazerem os seus pedidos em caso de danos recebidos, com a apresentação de provas. Por enquanto, muito tem sido especulado através de vídeos facciosos e artisticamente produzidos através das redes sociais.
Daniel Ortega
Não nos estamos preocupados com o livre exercício de protesto por parte da população. De facto, um cidadão da Nicarágua pode demonstrar qualquer coisa. Seja qual for. Mas não pode danificar a propriedade pública, a propriedade privada e a vida de outros cidadãos. Isso não.
Vamos ver o uso dos media sociais para fomentar os protestos. Como em muitos outros Países, mais recentemente na Síria e na Venezuela, a violência na Nicarágua tem sido alimentada pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais. Como julga isso e acredita que a desestabilização do governo de Ortega segue um plano geopolítico preciso?
Pode-se dizer com absoluta certeza que a violência daqueles dias foi alimentada através das redes sociais e notícias falsas. As notícias falsas são um problema político sério. Não havia dimensões de violência e confrontos que quisessem acreditar na Nicarágua. Existem Países onde isso acontece com mais frequência e ainda assim ninguém fala sobre isso. É claro que as questões geopolíticas daqueles que querem desestabilizar a Frente Sandinista revolucionária também pesam. Um governo revolucionário que alcança esses extraordinários resultados económicos preocupa muito a Direita dos Estados Unidos. Além disso, o nosso Presidente imediatamente disse isso: há interesses estrangeiros em desestabilizar o nosso País. E podemos afirmar isso sem sombra de dúvida.
Muitos viram claras semelhanças com os Guarimbas da Venezuela, a dupla tentativa (2013 e 2017) da extrema Direita do País de subverter o governo com violência fomentada e financiada de fora. EUA e União Europeia em particular. Você acha que a comparação é apropriada?
Muitas semelhanças são verdadeiras. O método é o mesmo. Dois, três fogos de conflicto criados, notícias falsas e depois criar uma solidariedade social, uma suposta indignação social. É um manual agora conhecido por todos e que é aplicado em qualquer País para desestabiliza-lo. O paralelismo está lá, é visível para todos, mas o caminho da paz empreendido pelo Presidente Ortega está a ter sucesso.
No decorrer da sua carreira, já teve a oportunidade, em várias ocasiões, para representar Nicarágua em organizações regionais como Alba ou CELAC que ofereceram ao mundo uma possível alternativa às barbaridades do neoliberalismo. Nesta fase, vemos uma regressão clara e inegável através de golpes brandos e derrotas eleitorais em vários Países progressistas. É um fenómeno irreversível?
Hoje existe uma clara tendência na América Latina que consolida-se em vários Países com eleições democráticas e não democráticas. Mas os movimentos progressistas na Colômbia, no México, estão a crescer muito, atestando que tudo não é tão determinado. Nada é irreversível. O maior objectivo alcançado pela Revolução Boliviana do Comandante Chávez e todos aqueles que trabalharam para um modelo de desenvolvimento alternativo possível, como o comandante Ortega, é que, apesar da mudança de governo a ocorrer em alguns Países, a consciência crítica do povo da América Latina é algo totalmente diferente do passado colonial. A América Latina é um continente novo, graças a Chávez, graças a Ortega, graças a Cuba, graças a Evo, Correa, Kirchner, Lula, Mujica... As suas realizações criaram um ponto de não retorno. O povo da América Latina não está a regressar das imensas conquistas sociais.
O mais malignos têm visto como verdadeiro alvo do ataque ao governo da Nicarágua o grande projecto do chamado "Canal da Nicarágua", que, se concretizado, permitiria desviar do Canal do Panamá o tráfego comercial do Pacífico. Esse projeto ainda está em vigor segundo o governo da Nicarágua?
Sim, fica activo. Estudos sobre a viabilidade, o impacto ambiental e a sustentabilidade social foram feitos e tiveram resultados positivos. Dizem isso as empresas privadas e não o governo da Nicarágua. É importante ressaltar que este é um projecto privado que proporcionaria ao nosso País consequências políticas, económicas e sociais positivas. Apoiamos isso, mas reitero que é um projeto privado de vários bilhões de Dólares, com muitos investidores. Não apenas chineses, mas de diferentes Países.
Melhorar os dados económicos da Nicaragua não era muito complicado, pois ainda em 2017 o País ocupava a 135ª posição na classificação mundial do PIB: Mali, Chad e até Burkina Faso tinham um desempenho melhor.
Daniel Ortega e Rosario Murillo |
Numa só semana, este ano, foram contabilizadas 38 vítimas, o que representa o pior derramamento de sangue na história da País após o fim da guerra entre o Exército Sandinista e os Contras financiado pelos EUA, em 1990.
Ortega, como chefe supremo da polícia nacional, poderia e deveria ter travado a repressão, ordenando uma investigação tanto contra os manifestantes (na maioria estudantes) quanto contra os policiais envolvidos. Em vez disso, Presidente e Vice-Presidente (Rosario Murillo, esposa de Ortega...) limitaram-se a definir os jovens estudantes "cachos", "vampiros sugadores de sangue" ou "bandidos", e até ordenaram o aumento da repressão.
A triste realidade da Nicaragua é que, por mais de uma década, a polícia nacional tem sido uma instituição submetida à exploração do partido pessoal de Ortega, com a cumplicidade dos policiais Aminta Granera, Róger Ramírez e Francisco Díaz. Estes eram, em diferentes estágios do regime, e ainda são co-responsáveis pelas ações criminosas em que a polícia estiva envolvida, incluindo a repressão e a tortura.
A boa notícia é que o casal presidencial tem partilhado cada vez mais o poder nos últimos anos, num sinal de que os Ortegas podem estar a preparar o caminho para a sucessão. “Eles criaram uma ditadura dinástica. Passámos por isto com os Somozas, foi contra isso que lutámos”, disse à revista America’s Quarterly a fundadora do Movimento de Renovação Sandinista, Dora Téllez, referindo-se à ditadura da família Somoza que governou a Nicarágua entre 1934 e 1979.
Ipse dixit.
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Fontes: L'Antidiplomatico, Confidencial,