Tentamos pôr um pouco de ordem para quem vive fora do País, contando com a ajuda dos Leitores sul-americanos para eventuais desenvolvimentos.
Impeachment
E comecemos em 2015, um ano amargo na óptica da Esquerda da América do Sul: a desaceleração da economia chinesa (que alguns ainda continuam a negar...), acompanhada pela queda dos preços das commodities e dos ataques especulativos contra Títulos e Bolsas de Valores locais (sem contar as pontuais vozes de iminentes deafult), tem inevitáveis repercussões nas condições de vida e nas escolhas do eleitorado. Em 23 de Novembro, na Argentina é Mauricio Macri que ganha contra o candidato peronista; duas semanas depois, em 7 de Dezembro, é a vez da Venezuela, onde o partido chavista, liderado por Nicolas Maduro, perde as eleições depois de 17 anos de poder consecutivos. Dois estalos nada mal.
Mas o mosaico ainda não fica completo sem a decisiva peça brasileira: chega a recessão (PIB fecha 2015 com -3,8%), embora não suficiente para derrubar o recém eleito governo.
Em Dezembro é aberto um processo de impeachment (a medida constitucional de cassação do mandato) contra a Presidente Dilma Rousseff, algo que gira em torno da rejeição por parte do Tribunal Federal de Contas da União (TCU) do orçamento federal de 2014 e, em particular, da acusação de não ter contabilizado algumas dívidas aos bancos controlados pelo Estado.
Para já é importante realçar isso: o processo de impeachment é relativo a uma questão de contabilidade (federal) e nada tem a ver com o caso Petrobras.
Petrobras, Lava Jato & Igrejas
Petrobras, eis o nome. Uma empresa petrolífera estatal, um gigante que factura algo como 91 biliões de Dólares (dados de 2014). É muito dinheiro. O núcleo da acusação é o seguinte: a Petrobras teria "inchado" ou seus contratos para um valor de 2 bilhões de Dólares ao longo da última década, dinheiro que teria sido alegadamente distribuído a líderes políticos. E o período temporal cobre as presidências tanto de Dilma Rousseff quanto do seu antecessor, Lula da Silva.
O clima aquece em ocasião da "detenção" do ex-presidente Lula: no dia 4 de Março de 2016, 4 policiais federais invadem o seu apartamento para depois acompanha-lo para um rápido interrogatório (três horas). Este faz parte da Operação Lava Jato, uma investigação de amplo alcance que tem como objectivo apurar um esquema de lavagem de dinheiro: no caso de Lula, o ex-Presidente teria recebido fundos da Petrobras para financiar a sua campanha eleitoral.
A "mini-detençaõ" de Lula é sem dúvida um erro: não havia necessidade (contra o ex-Presidente nem é formulada uma acusação), tendo também em conta razões de ordem público. E, de facto, a tensão no País começa a crescer, com tumultos na frente da casa de Lula e de Dilma Rousseff. A Presidente responde com um erro crasso: nomeia o ex-Presidente e amigo Lula qual Ministro-Chefe da Casa Civil. Desta forma, Lula é subtraído à Justiça ordinária e fica passível de investigação apenas pelo Supremo Tribunal Federal.
Por qual razão erro crasso? Por duas boas razões. Para já, Dilma ou alguém da equipa dela deveria ter previsto quais as contra-medidas (o pedido de anulação da nomeação, depois pontualmente apresentado). Mas há algo de mais profundo e sinistro. A mensagem enviada por Dilma é simples: a política pode tornar-se um meio para fugir à Justiça (sobretudo se tivermos uma amiga Presidente do República, diga-se), as Leis podem ser contornadas se o fim é proteger... quem? Um cidadão qualquer, uma vítima dos acontecimentos? Não: um amigo, um colega de partido. Mau.
Voltamos um pouco atrás. Qual a principal suspeita que paira sobre Lula, Dilma e não só (a Operação Lava Jato é muito mais do que o Partido dos Trabalhadores)? Corrupção, o facto de ter gerido a Petrobras como fonte de rendimentos ilícitos. No caso de Lula há ainda a suspeita dele ter favorecido alguns contractos com empresas privadas em troca de "regalias" (o triplex, a fazenda...). As investigações estão em pleno andamento, portanto é difícil ter uma opinião bem definida acerca do assunto.
Mas estes são quase "pormenores": nesta altura o Brasil já está divido em duas fações, a que quer a cabeça de Dilma, a que vê a Presidente e Lula vítimas dum enredo surgido até fora do Brasil (em Washington). Raciocinar não adianta, pois não parece haver zonas neutras: ou se aceita a teoria da conspiração (e neste caso vale tudo, até nomear um amigo como Ministro para subtrai-lo à Justiça), ou se apoia a acção dos investigadores (então a publicação de conversas telefónicas privadas já não é uma flagrante violação da privacidade - e não apenas isso - mas um direito dos cidadãos "que têm que saber").
O clima aquece ainda mais e em meados de Março as manifestações multiplicam-se. Um papel interessante é também desenvolvido pelas igrejas evangélicas: em particular se destacam nas manifestações o televangelista Silas Malafaia, líder carismático da igreja pentecostal Assembleia de Deus Vitória em Cristo e dono dum império estimado em cerca de 150 milhões de Dólares, e Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e dono duma fortuna de dividida entre Brasil e Estados Unidos.
Entretanto, a tensão política no País atinge o nível de perigo: tanto Dilma Rousseff quanto Lula falam abertamente de golpe que quer quebrar a ordem democrática.
No dia 28 de Março o Partido do Movimento Democrático Brasileiro deixa definitivamente o governo, forçando Dilma a uma remodelação. No mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal anula a anulação da nomeação de Lula qual Ministro-Chefe da Casa Civil mas, logo a seguir, outros juízes avançam com novas anulações. É sem dúvida uma situação caricata na qual é cada mais evidente a fractura entre poder judicial e poder político.
Crise
O Brasil enfrenta uma crise institucional enquanto se encontra mergulhado numa crise económica também. E não é um mero acaso. Do espantoso sucesso económico sobra a desolação do desemprego, o PIB em queda, o encerramento das actividades económicas e 2.000.000 despedimentos só em 2015. As previsões não são positivas, pelo menos até 2020 quando está marcada a luz no fim do túnel da recessão (a propósito: bem vindos amigos brasileiros no clube dos que esperam a tal luzinha...).
Vista "de fora", a situação é de difícil interpretação. É necessário conhecer um mínimo de história do País para entender por quais razões foi possível chegar até este ponto. Um ponto de não regresso, provavelmente, no qual há a sensação de que algo tem ainda que acontecer antes que ás águas possam voltar a acalmar-se. Entretanto, tomar partido é complicado. Dum lado, uma Justiça que parece ter saído do âmbito das suas competências para desenvolver uma uma clara ação política, com excessos que fazem lembrar de perto a Operação Mani Pulite dos anos '90 em Italia. Do outro, um executivo sob pressão, desnorteado, com declarações e escolhas tanto absurdas quanto perigosas.
O futuro? Incerto. O sonho socialista da América Latina parece ter chegado ao fim: após a derrota de Maduro na Venezuela, após um Obama que saltita em Cuba, sobram realidades importantes sim, mas não tão emblemáticas. Mas seria um erro ver o Brasil como parte deste movimento: na verdade, o caminho escolhido foi outro, desde que o País foi entregue às leis do livre mercado.
Pouco importam a corrupção (que existe e bem enraizada), os sucessos em âmbito social do governo Lula (que não podem ser postos em causa) ou até as ideologias (frágeis cortinas de fumaça para capturar seguidores): não há uma verdadeira tentativa de golpe, pois o que se passa no Brasil é um duro choque entre dois grupos de poder, dois grupos internos mas com óbvias ligações ao exterior. Não existe o risco do regresso duma ditadura militar, pela simples razão que não é este o objectivo de quem segue as directivas de Washington. Tal como não há risco duma deriva socialista, porque quem olha para Pequim seguem bem outros modelos. E pouco importa se no governo quem decide for o Partido dos Trabalhadores ou outro movimento qualquer, pois são as leis do Capitalismo que mandam. E um Capitalismo com rosto humano ainda tem que ser inventado.
Ipse dixit.
Relacionados:
Acerca da Petrobras: A Petrobras e o charco
A Operação Lava Jato: Operação Lava Jato
Outras investigações: A Operação Zelotes - Parte I, Parte II, Parte III, Parte IV, A Operação Satiagraha - Parte I, Parte II