Água como arma? A Sempre Muy Nobre Maria sinaliza um artigo deveras interessante, focado no que acontece quando um bem essencial for gerido com intuitos criminosos. É a revista Foreign Affairs que dedica um artigo ao assunto: Rivers of Babylon descreve os acontecimentos ao longo dos rios Tigre e Eufrates durante os últimos anos.
As barragens turcas
A Turquia construiu muitas barragens em todo o País ao longo das décadas, para produzir eletricidade, mas também para irrigação; muita da água retida era depois perdida por causa da evaporação e devido a novas plantações de espécies que exigem muita irrigação. O resultado foi que os agricultores da Síria, localizados na secção inferior dos rios, começaram a ter sérios problemas, em particular durante os três anos de seca: entre 2006 e 2009, muitos agricultores deixaram as terras secas e mudaram-se para as cidades.
Por volta de 2011, o fracasso das colheitas por causa da seca tinha empurrado cerca de 1.5 milhão de ex-agricultores a emigrar: pessoas em muitos casos pobres, sem formação e, portanto, na quase impossibilidade de encontrar um novo trabalho. Essa legião de desenraizados tornou-se uma fonte de recrutas para o Exército Sírio Livre e outros grupos como o Isis ou Al-Qaeda.
Testemunhos recolhidos por repórteres e ativistas nas zonas do conflito sugerem que a falta de qualquer ajuda do governo durante a seca foi um dos factores centrais de motivação para a rebelião antigovernamental. Não acaso, as fortalezas dos rebeldes em Aleppo, Deir al-Zour e Raqqa estavam entre as áreas mais duramente atingidas pelo fracasso das colheitas.
A situação no Iraque, que historicamente viu as suas fortunas ligadas aos dois grandes rios, é similar, se não pior. Em Karbala, agricultores estão em desespero pela falta de água e consideram abandonar as suas terras; em Bagdade, as periferias mais pobres dependem da Cruz Vermelha para a água de beber e, em algumas ocasiões, a organização teve de fornecer 150 mil litros por dia.
Mais para o Sul, as áreas centrais do País (antigamente as maiores irrigadas de todo o Médio Oriente) estão a sofrer do mesmo mal: centenas de milhares de pessoas enfrentarão enormes dificuldades se os recursos hídricos continuarem a definhar.
É claro que a falta de água não é a única razão das guerras na Síria e Iraque; mas torna esses Países mais propensos a conflitos internos e mais vulneráveis à intromissão de actores externos. A água se torna assim uma arma contra a qual os governos de Síria e Iraque bem pouco podem fazer. Embora haja acordos sobre um fluxo mínimo de água a ser preservado entre Turquia, Síria e Iraque, não há meios pelos quais Síria e Iraque possam realmente pressionar a Turquia para que desimpeça o fluxo de água e preserve o fluxo fixado nos acordos.
Os acordos vigentes entre Síria e Turquia (assinados em 1987) deveriam garantir um fluxo de 500 metros cúbicos por segundo, 46% do qual destinado ao Iraque. Segundo Jasim al Asadi, hidrologista da Nature Iraque, quando o Eufrates alcança Nasiriyah (no Sul do País), seria necessário um fluxo mínimo de 90 metros cúbicos por segundo, para uso municipal, industrial e agrícola.
Mas a realidade é que por vezes o fluxo cai para 18 metros cúbicos por segundo. Antes da construção da maior barragem nos anos '70s, o fluxo médio no Eufrates era de 720 metros cúbicos por segundo: agora, é de cerca de 260 m³/s quando entra no Iraque.
Resultado: quase dois terços do fluxo que o Iraque deveria receber já não chegam e não há meio para substituí-los. E a situação pode piorar nos próximos tempos.
As barragens na Turquia, que já ultrapassam o total de 140, têm muito maior capacidade de armazenamento daquelas que ficam no curso inferior dos rios. E novas barragens são previstas para irrigar 1.2 milhão a mais de hectares: um aumento de oito vezes em relação ao que há hoje. Dada a relativamente melhor saúde hídrica da Turquia, seria razoável supor que Ankara parasse de construir barragens: mas o País faz exactamente o oposto e planeia concluir 1.700 novas barragens e açudes dentro das suas fronteiras (uma das principais razões para este projecto é inundar os vales e privar os curdos turcos de terreno onde se possam esconder e abrigar-se).
Chipre
Mas há mais projectos turcos para desviar a água para longe dos vizinhos.
Em 1974 a Turquia invadiu o Norte de Chipre. Os moradores gregos nativos daquelas áreas ocupadas foram dizimados em processos de limpeza étnica enquanto 150 mil turcos foram transferidos da Turquia e inseridos naquela terra grega.
A Turquia construiu aquedutos para fornecer com água os territórios ocupados na ilha: um aqueduto recentemente concluído, que cruza o fundo do Mediterrâneo, levará anualmente 75 milhões de metros cúbicos de água fresca, tornando os turcos cipriotas (que já recebem subsídios de Ankara para a sobrevivência económica) ainda mais dependentes da Turquia. E os cipriotas turcos terão ainda menos liberdade quando negociarem a reunificação com os compatriotas cipriotas gregos. O que tornará difícil alcançar alguma solução.
Outro projecto turco é construir aquedutos e gasodutos até israel: gás israelita por água turca. Água que, obviamente, faria uma terrível falta na Síria e no Iraque.
Na Ásia, na África...
A situação de Turquia, Síria, Iraque não é a única hoje no mundo. Paquistão e Índia lutam pela Caxemira (ocupada pela Índia), onde estão as nascentes do sistema do rio Indo. O Indo é a água que mantém vivo o Paquistão e a Índia tem usado o controle sobre a Caxemira para pressionar o Paquistão. Outras áreas críticas no Sul-Oeste asiático: Camboja, Laos, Tailândia e Vietname (rio Mekong).
E uma autêntica guerra da água poderia eclodir entre Uzbequistão e Tadjiquistão.
Na Áfica, a Etiópia está a construir uma megabarragem no Nilo, que ameaça o suprimento de água do Egipto.
Voltando ao Médio Oriente: não podemos esquecer o Estado Islâmico. O Isis tomou posse das barragens no norte do Iraque e na Síria e utiliza a água como uma arma: por um lado retém o líquido para que algumas regiões permaneçam secas, por outro lado literalmente afoga algumas regiões para que as pessoas fujam (600mil só na área de Falluja).
E não podia faltar a água como elemento de choque entre israel e a Palestina. A administração de Tel Avive aloca insuficientes recursos hídricos para a população palestiniana, o que bloqueia o desenvolvimento e as melhoria urbanas e industriais nos territórios ocupados.
A escassez de água cria uma série de problemas cada vez mais graves. Problemas que afectam negativamente a estabilidade das regiões interessadas e que tornam a água uma arma "anómala": fica longe das primeiras páginas dos meios de comunicação, tem uma progressão lenta, não cria efeitos "espectaculares" no imediato.
Já no passado a água era utilizada como arma: na Primeira Guerra Mundial, a Bélgica abriu as barragens dos rios e dos canais que desembocavam no Mar do Norte, em Nieuwpoort, para inundar a planície de Yser e pôr fim ao massacre das tropas alemãs; durante a guerra entre China e Japão, em 1938, o líder militar Chiang Kai-shek ordenou para rebentar os diques do Rio Amarelo, em Henan, com o resultado de matar mais de 800 mil civis.
Mas eram efeitos pontuais e revertíveis. Hoje as arma da água tem uma eficácia ainda mais aterradora: mudam por completo a aparência de inteiras regiões, obrigam centenas de milhares ou até milhões de pessoas a grandes movimentos em massa, implicam o desaparecimento de culturas, comportam pesadas consequências e novos problemas (sociais, económicos, etc.) em áreas aparentemente distantes.
Ipse dixit.
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Fontes: Foreing Affairs, DW, NavalBrasil, Outras Palavras